Tudo começou quando, em 2015, Filipe Almeida foi convidado pelo vice-reitor do Santuário de Fátima a dar o seu contributo acerca da "ideia de instalar umas placas em braille" no recinto. Num local amplo e de grandes dimensões, Filipe detetou de imediato um problema: como é que as pessoas cegas, ou com baixa visão, vão saber onde estão essas placas?
A solução óbvia seria fazer marcações entre cada ponto, com recurso a um piso tátil colocado, e assim desenvolver um percurso entre os locais assinalados. Mas essa não era a ideia do Santuário, o que tornava a ideia praticamente inviável.
"Foi a partir daí que o Filipe começou a pensar que podia ajudar as pessoas".
A história é contada por Pedro Almeida, co-fundador e Chief Operating Officer (COO) da iKi® Technologies, a empresa que é também uma solução para um problema: a falta de inclusão.
"Começou a trabalhar-se a partir do telemóvel, objeto do dia a dia que oferece ao utilizador acesso a alta tecnologia. O Filipe começou a pensar numa ideia, contactou um programador, fez experiências, errou e, finalmente, com a equipa, acertou", conta Pedro, que relata um primeiro trabalho baseado em audioguias, dedicados à construção de itinerários, muito focado no setor do turismo, com especial foco nas pessoas cegas e de baixa visão, que foi um 'tiro ao lado' do que seria o grande projeto da empresa.
Rapidamente se percebeu que o caminho teria de ser outro, mantendo a inclusão como prioridade. Assim nasceu a aplicação móvel myEyes®, que permite, em áreas mapeadas pela tecnologia da iKi, a uma pessoa cega ou com baixa visão mover-se livremente, com app a ler o que está em seu redor e a comunicar com o utilizador. Mas não só.
A aplicação é versátil e facilmente adaptada a vários contextos, sejam eles macro, médios ou micro. Por exemplo, a empresa foi desafiada a ajudar, no polo da Universidade Nova de Lisboa em Carcavelos, uma aluna que era cega, tinha audição muito baixa e a parte sensorial também baixa. "Queríamos ajudá-la a fazer o percurso até às salas de aula, mas a aplicação acabaria por servir também para a inclusão de alunos estrangeiros logo, naquela altura inicial em que pode ser um bocado complicado saber exatamente onde fica o café ou os serviços da universidade".
Apesar de a empresa ter um grande foco na inclusão, num sentido mais amplo, o trabalho com pessoas cegas ou com baixa visão só começou a ganhar maior preponderância desde que a participação no concurso Big Smart Cities da Vodafone, em 2016, altura em que conseguiram também financiamento através do Fundo de Inovação Social, o que permitiu à iKi dar o salto.
A principal dificuldade que enfrentam? A perceção do país de inclusão. "Não é obrigatório ter esta solução, mas é obrigatório ter rampas. Se for obrigatório ter isto como é obrigatório ter rampas seria muito bom para as pessoas cegas", sublinha Pedro.
"Já havia no mercado algum trabalho para pessoas com algum tipo de deficiência, seja visual ou física ou auditiva, mas o que nós trazemos para a mesa é um bocadinho diferente, é tornar obsoleto ou reduzir a dependência de pessoas de plataformas ou circuitos e a sua bengala passar a ser uma coisa que usam no dia-a-dia, que é o seu telemóvel. Não se trata de ter um audioguia, porque [a tecnologia da iKi] é muito mais flexível", explica Ricardo Garcia, administrador da iKi.
O foco está em promover a autonomia, fazer com que estas pessoas não dependam de terceiros para poderem chegar onde desejam ou levarem a cabo o seu dia a dia normal. "Para nós tem sido muito rico este feedback das pessoas cegas ou com baixa visão, de percebermos que podemos ter um impacto na vida delas", acrescenta.
O que faz a aplicação da iKi?
Num cenário em que, por exemplo, toda uma cidade está mapeada, esta aplicação permitiria uma mobilidade total a uma pessoa invisual ou com baixa visão.
A app pioneira - disponível na Google Play e na App Store -, junta Geofence, Beacons e Text-to-Speach, com o objetivo de promover uma experiência virtual de comunicação, permitindo através das informações que são recebidas em tempo real, conforme a localização da pessoa, 'ver a cidade'.
Mas a tecnologia também pode ser adaptada a espaços mais pequenos, como um museu ou um cruzeiro, ou até, num cenário micro, a objetos, como já foi feito. Fixada em Torres Vedras, a empresa prepara-se para dar voz aos famosos pastéis de feijão do Benjamin. Basta abrir a app e encostar o telefone à caixa do bolo e este falará connosco.
"Não pomos o ónus no utilizador, é o contexto que comunica com o utilizador. O utilizador é um bocadinho passivo no sentido em que não tem de fazer grande trabalho para receber informação. É um curioso, é um explorador que recebe a informação que a aplicação tiver de acordo com as áreas", explica Ricardo Garcia.
"Nós achamos que isto tem imenso potencial porque não é o QR Code, não tens de sacar um audioguia... caminhas, vais passear a Torres Vedras, que é onde nós estamos, e ao entrares numa zona mapeada pela aplicação, vais andando e recebendo informações sobre os monumentos ou até sobre eventos que estão a decorrer na cidade", complementa Pedro.
"Somos também ativistas"
"Na Europa, há cerca de 30 milhões de pessoas cegas ou com baixa visão. Tem-se falado muito sobre o que é o turismo acessível, mas tem sido difícil, nos contactos que fizemos com regiões de turismo, perceber como é que "desbloqueamos" essas pessoas para o tema. O que nós vamos fazer é um acordo a nível europeu e mundial para tentarmos tornar Portugal o destino mundial do turismo inclusivo. Ou seja, vamos mapear zonas, hotéis e outros equipamentos para tornar o turismo — que já é, a meu ver — um direito humano. A pessoa vai poder visitar espaços, conhecer a cultura, etc. Vamos fazer acordos com estas instituições no sentido de dar a conhecer os espaços que estão mapeados. Nós não somos só uma empresa de tecnologia, somos também ativistas. Já do ponto de vista do ativismo, damos formação de novas tecnologias a pessoas cegas sobre como mexer no telefone ou até em aplicações para pessoas cegas", diz Ricardo Garcia.
"Somos ativistas, somos uma empresa e também estamos numa ótica de criar esta plataforma mundial do que é dar a conhecer Portugal como destino inclusivo", resume.
Atualmente, já há vários casos práticos em que se pode utilizar a aplicação myEyes. Em Lisboa, nos dois pólos do Museu da Água, o aqueduto das águas livres e a Mãe Água, nas Amoreiras, estão mapeadas, o que permite a uma pessoa invisual ou com baixa visão visitar os espaços livremente. Fora da capital, a zona história de Torres Vedras está mapeada, o que significa que se alguém ligar a aplicação dentro desse perímetro geográfico receberá várias indicações de locais para visitar, assim como de acessibilidades que pode utilizar. Nesse aspeto, Vilamoura é um destaque.
"Vilamoura tem uma ideia de inclusão muito forte. Todos os anos fazem melhorias nas vias, aproveitam sempre para meter aquele piso tátil, ligam-nos e dizem-nos: "vamos também fazer esta rua mapeada com myEyes". O piso tátil são as autoestradas, a aplicação é a sinalética dessas autoestradas", diz Pedro.
Para um futuro próximo, revela Ricardo, vai ser lançado um projeto piloto no aeroporto de Faro e também no posto de Turismo de Faro. "São projetos em parceria com a região de Turismo do Algarve e vamos depois lançar com a região de Turismo do Porto e Norte no aeroporto Francisco Sá Carneiro e no balcão do Turismo do Porto. Estamos também a trabalhar com a cidade de Conimbriga e queremos tornar Conimbriga uma cidade falante, poder se conhecer, através das ruínas, o que era a cidade. Neste caso associando também um bocadinho de VR, para as pessoas poderem também utilizar os óculos de realidade virtual e conhecer os espaços como seriam no antigamente", conta.
Lá fora, na Escócia, estão a ajudar a desenvolver o Museu Blind Compliant no Victoria & Albert Museum, que poderá ser 'visto' através da aplicação myEyes.
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