A Inteligência Artificial é identificada como a área com “mais carência de talento” em Portugal. As palavras são do country manager da IDC Portugal, numa entrevista recente à agência Lusa, citada pelo ECO. A empresa de market intelligence prevê também que a procura por estes profissionais aumente mais de 20% ao ano até 2026. Com estes dados em mente, questionámos duas startups portuguesas, a DareData e a Smartex, empresas que lidam com IA no seu dia-a-dia, para saber se sentem dificuldades no recrutamento de trabalhadores para esta área. As respostas dividem-se.

Ivo Bernardo, Partner e Senior Data Scientist da DareData Engineering, considera que não falta talento em IA em Portugal. Porquê? “Acho que temos escolas muito boas de engenharia. O talento de Inteligência Artificial muitas vezes é talento que migra das áreas de engenharia de software, das áreas de estatística, e temos muito talento nessas áreas também. Hoje em dia, o mundo muda tão rapidamente e eu acho que algumas empresas também têm culpa naquilo que procuram dentro desta área de IA” começa por dizer o responsável.

O Partner da DareData Engineering justifica a afirmação com uma história: havia “uma empresa que pedia 10 anos de experiência de uma determinada tecnologia de IA e essa tecnologia existia há 5 anos, portanto, aquilo que eles estavam a procurar era impossível. O próprio fundador pôs um tweet a brincar com isso, a dizer que nem ele era qualificado para trabalhar na tecnologia que ele próprio inventou. Não acho que seja preciso ter especialistas nas tecnologias para ter um bom talento em IA”, conclui o Senior Data Scientist da empresa especializada no desenvolvimento de infraestruturas de dados e projetos com base em IA generativa e machine learning.

Faltam profissionais seniores?

Por outro lado, Rita Santos, Director of People da Smartex, uma startup que combate o desperdício na indústria têxtil com Inteligência Artificial, afirma que Portugal tem falta de talentos seniores nesta área. “O que nós sentimos é que, quando estamos à procura de profissionais seniores na área de Inteligência Artificial, é difícil de encontrá-los, e isso tem que ver não só com o facto de o mercado ser exigente, mas sobretudo porque é uma função muito recente e existem muito poucos perfis seniores”, explica.

“O nosso produto é feito para a indústria têxtil. Muitas vezes, quando falamos de Inteligência Artificial em Portugal, falamos de empresas como a Defined.ai ou a Unbabel, que são empresas de IA, mas que não têm um produto de hardware propriamente dito. O facto de termos o nosso machine learning a trabalhar num produto de hardware e não na cloud torna o processo muito mais complexo” detalha Rita Santos.

A responsável contrapõe que “quando nós estamos à procura de perfis juniores, aí já não é tão complicado, porque a verdade é que esta é uma área super atrativa, todos os perfis juniores querem ir para machine learning”. Para Rita Santos, o aumento de cursos relacionados com IA nas universidades portuguesas também contribui para que haja mais jovens talentos em IA em Portugal.

Competição global

De acordo com as duas startups, o mercado de IA está a tornar-se cada vez mais competitivo, tanto a nível nacional como internacional. Rita Santos nota que “existe essa competição em Portugal”, mas destaca que o verdadeiro desafio está na competição global. “Sim, sem dúvida, o mercado é cada vez mais global e isso torna tudo mais difícil. Competir com empresas estrangeiras muitas vezes tem uma dificuldade: o salário”. A Director of People da Smartex nota que em países como os Estados Unidos, por exemplo, os salários são frequentemente mais atrativos do que aqueles que são praticados em Portugal.

Ivo Bernardo refere a globalização como outro fator que coloca pressão sobre as empresas portuguesas que querem reter talento. “A globalização permite que quem saia agora da universidade tenha acesso a oportunidades em qualquer país do mundo. Eu diria que o facto de as pessoas terem acesso a muitas oportunidades também faz com que acabem por ter a possibilidade de ter outras experiências internacionais, que são sempre muito enriquecedoras”.

Como manter os trabalhadores?

Ciente desta competição, Rita Santos conta que a Smartex aposta em stock options como uma estratégia para reter talento em IA. Stock options são opções de compra de ações que são oferecidas aos colaboradores ou outros membros da empresa como parte de um pacote de compensação ou como incentivo para a fidelização de talento. “O sucesso da empresa é também o sucesso deles e eu acho que stock options é algo que existe pouco em Portugal. Começa-se a ouvir falar mais em algumas startups, mas diria que a maioria não tem este formato de compensação, é muito mais habitual nos Estados Unidos, por exemplo”.

Ambos os profissionais concordam que há medidas, nomeadamente fiscais, que podem ser tomadas para melhorar a situação do talento em IA em Portugal. Ivo Bernardo defende que “pode haver alguma melhoria a nível fiscal, para garantir que estas pessoas possam ter mais do seu ordenado a chegar a si. Acho que isso é algo que deve ser feito e que iria ter impacto, mas também coloco aqui algum ónus do lado das empresas, principalmente na sua cultura. Ou seja, acho que ainda temos uma cultura muito tradicional em Portugal, a nível de gestão, o que afasta o talento mais jovem, porque é uma cultura associada ao presentismo e à microgestão”.

O Partner da DareData Engineering refere o caso dos Países Baixos como um país que está a receber muitos talentos em IA. O Senior Data Analyst detalha que os neerlandeses têm “uma cultura em que se respeita muito o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, em não há aquela noção de presentismo e de trabalhar mais horas”.

Há uma bolha da Inteligência Artificial?

Ivo Bernardo alerta ainda para o risco de haver expectativas inflacionadas em torno da IA. “Está em curso uma expectativa desajustada por parte das pessoas que pedem serviços ou soluções nesta área. Mas isso não significa que a Inteligência Artificial não vá transformar a sociedade de uma ponta à outra”, afirma. O responsável também não acredita num momento em que a bolha da IA vá rebentar. “Acredito que vão haver players que oferecem um determinado tipo de serviço que não tem a qualidade necessária para sobreviver e desaparecem, naturalmente, do mercado”.

O Senior Data Analyst remata dizendo que o que continuará a ser crucial é a alta qualidade dos serviços de IA oferecidos e a transparência sobre o que essas soluções realmente podem fazer. As empresas que não conseguirem manter esses padrões provavelmente não sobreviverão no mercado.