Se eu publicar no Instagram um vídeo das minhas férias com a música do verão - “Coração Não Tem Idade” do Toy, mais conhecida como “Toda a Noite” -, o mais provável será receber imediatamente uma notificação da rede social informando-me que o removeram por violação das normas de comunidade. Significará isto que não posso usar a música do Toy sem lhe pagar? Mesmo que o meu vídeo não tenha fins lucrativos e eu não ganhe um tostão?

A Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor no mercado único digital quer responder a esta e muitas outras questões.

A diretiva é, simplificando, um conjunto de normas que visam adaptar as regras dos direitos de autor na União Europeia à era da Internet e inclui dois artigos que têm gerado controvérsia. Dito de maneira mais prática: esta diretiva impõe aos grandes sites - como YouTube, Facebook ou Twitter - a responsabilidade de impedir que material com direitos autorais seja partilhado ilegalmente nas suas plataformas.

Os artigos em causa são os 11.º, que pretende cobrar um imposto sobre cada link ilegal (link tax = imposto de link ) e o 13.º, que proíbe os meme (meme ban = proibição de memes). Os defensores destas medidas pretendem assegurar uma remuneração justa para jornalistas, artistas, editoras e detentores de direitos quando o seu trabalho é publicado/difundido online; os críticos consideram que se trata de uma restrição severa à partilha de conteúdos que circulam na Internet e que as novas leis abrem caminho ao controlo da Internet.

As 500 palavras do alvoroço digital

Artigo 11.º
Proteção de publicações de imprensa no que diz respeito a utilizações digitais

1. Os Estados-Membros devem conferir aos editores de publicações de imprensa os direitos previstos no artigo 2.º e no artigo 3.º, n.º 2, da Diretiva 2001/29/CE relativos à utilização digital das suas publicações de imprensa.

2. Os direitos a que se refere o n.º 1 não prejudicam os direitos conferidos pela legislação da União a autores e outros titulares de direitos, no que se refere às obras e outro material protegido que integram uma publicação de imprensa. Tais direitos não podem ser invocados contra os autores e outros titulares de direitos e, em particular, não podem privá-los do direito de exploração das suas obras e outro material protegido de forma independente da publicação de imprensa em que estão integrados.

3. Os artigos 5.º a 8.º da Diretiva 2001/29/CE e a Diretiva 2012/28/UE são aplicáveis, mutatis mutandis, no respeitante aos direitos previstos no n.º 1.

4. Os direitos previstos no n.º 1 caducam 20 anos após a publicação da publicação de imprensa. O prazo é calculado a partir do primeiro dia de janeiro do ano seguinte à data de publicação.

Artigo 13.º
Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e outro material protegido carregados pelos seus utilizadores

1. Os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos, adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores de serviços devem facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o funcionamento e a implantação das medidas, bem como, se for caso disso, sobre o reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido.

2. Os Estados-Membros devem assegurar que os prestadores de serviços a que se refere o n.º 1 estabelecem mecanismos de reclamação e recurso para os utilizadores, em caso de litígio sobre a aplicação das medidas previstas no n.º 1.

3. Os Estados-Membros devem favorecer, sempre que adequado, a cooperação entre os prestadores de serviços da sociedade da informação e os titulares de direitos através de diálogos entre as partes interessadas com vista a definir melhores práticas, tais como tecnologias adequadas e proporcionadas de reconhecimento de conteúdos, tendo em conta, entre outros, a natureza dos serviços, a disponibilidade das tecnologias e a sua eficácia à luz da evolução tecnológica.

A realidade, frequentemente, está algures a meio caminho.

O pacote legislativo comunitário encontra-se na ronda final de negociações (os chamados “trílogos”, negociações entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão). Apesar de terem sido introduzidas várias alterações ao texto da lei, as vozes “contra”, multiplicam-se: numa carta aberta, assinada por figuras proeminentes da Internet e da tecnologia (como Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web, ou Jimmy Wales, co-fundador da Wikipedia) afirma-se que esta diretiva transformará a Internet numa “ferramenta para a vigilância automatizada e controlo dos seus utilizadores”. A este coro de vozes juntaram-se empresas como a Wordpress, Reddit e YouTube, uma das empresas que será uma das mais prejudicadas, caso a lei seja aprovada. Os gestores do YouTube criaram uma página específica, destinada a pressionar a opinião pública e a UE, com um título que é elucidativo de como encaram a ameaça: “Save Your Internet” [Salva a tua Internet] junta proeminentes artistas e criadores do YouTube a pedirem alterações à lei.

Patrícia Akester, advogada na área de Propriedade Intelectual na sociedade de advogados Sérvulo, resume a tensão em causa: “O tratamento que a proposta de diretiva acaba por dar às questões de direito de autor na Internet claramente não vai ser do agrado das grandes plataformas da Internet, porque dá conta do status quo existente.” E esse desagrado não foi subtil: a CEO da plataforma, Susan Wojcicki, escreveu alguns artigos sobre o que considera serem as possíveis consequências do Artigo 13.º e os youtubers responderam em força - os vídeos sobre o tema multiplicaram-se ao longo de 2018 e os vloggers assumiram-se assim como a tropa de choque contra as mudanças legislativas.

O lobbying, tanto a favor como contra, tem sido fortíssimo, mas a verdade é que as diretivas de copyright não são atualizadas há 18 anos, ou seja, as leis atuais regem um mundo que já não existe, como nos explica Manuel Lopes Rocha, advogado da PLMJ, especialista em propriedade intelectual: “Na altura não havia o que há hoje - não havia a Netflix, não havia o Facebook, não havia a Google e o YouTube como os conhecemos hoje - e as diretivas da altura apontavam para uma solução de compromisso com base no sistema de notice and take down [aviso e subsequente retirada de conteúdos].”

“As plataformas não eram responsáveis por nada; só se o lesado avisasse da existência de conteúdos ilícitos e, aí sim, retiravam-nos para não serem responsabilizadas. Foi este o panorama que perdurou anos até que a Internet ‘rebentou’, quando começaram a aparecer novos serviços, para os quais a lei se mostrou completamente desfasada”, clarifica o especialista. “O que está em causa, e sempre esteve, é a luta surda entre o modelo gratuito para a Internet - que é o modelo do YouTube - , e o direito de autor, que sempre conviveu mal com a Internet. O direito de autor tradicional foi feito para o livro e, portanto, convive mal com todas as tecnologias subsequentes”.

É assim que entra em cena o Artigo 13.º. “Esta regulamentação é uma tentativa de equilibrar as coisas e, sobretudo, de criar interpretações uniformes ao nível do Tribunal de Justiça da União Europeia”, resume Manuel Lopes Rocha. A verdade é que no mundo da Internet é enorme a discrepância económica entre os criadores de conteúdos e quem usufrui deles - é este value gap [diferença de valores], que coloca, de um lado, a indústria da música e, do outro, as plataformas da Internet, que dá origem ao Artigo 13.º. Vítor Palmela Fidalgo, advogado de propriedade industrial na Inventa International e docente na Faculdade de Direito de Lisboa, explica que esta tensão se prende com um simples facto: “o lucro das grandes plataformas é desproporcional relativamente ao que pagam aos titulares de direitos de autor. O que se pretende com esta diretiva é encontrar um equilíbrio entre as partes e conferir maior poder negocial aos representantes dos artistas e autores”.

“O YouTube e esse tipo de plataformas viveram, até hoje, quase como no Faroeste.”

A formulação do Artigo 13.º é curta mas vaga - sendo esta uma das críticas. Diz este que as plataformas devem assegurar o cumprimento dos acordos celebrados com os representantes dos autores ou impedir que obras protegidas sejam “carregadas” nas suas plataformas. A manter-se a formulação atual, o YouTube só vê uma interpretação possível: a CEO Susan Wojcicki afirma que é impossível fazer o escrutínio “à mão” e que a tecnologia atualmente disponível não permite distinguir o contexto de cada vídeo (a diferença entre replicar um vídeo inteiro e usar uma screenshot desse vídeo para fins ilustrativos, por exemplo, ou as nuances intrínsecas a memes, paródias, fan fictions, reacts, covers ou remixes de músicas). Perante estas limitações da tecnologia, a decisão dos gestores das plataformas será absoluta: é melhor proibir tudo do que permitir tudo, para evitar os contenciosos legais.

O advogado Manuel Lopes Rocha tem outra leitura. “Há uma norma expressa no art. 13.º que diz que os filtros não devem ser automáticos. O que se propõe são medidas adequadas e proporcionadas. Mas claramente a diretiva pretende fomentar acordos justos. O que é que, no fundo, a diretiva e a UE querem? Querem que o YouTube renegoceie com as grandes instituições que representam os autores”. O YouTube já atribui remunerações, através de uma tecnologia chamada Content ID, “mas obviamente os titulares dos direitos querem mais”.

“O YouTube e esse tipo de plataformas viveram, até hoje, quase como no Faroeste. Se é preciso tirar licenças para realizar peças de teatro, se as televisões pagam direitos, se todas as pessoas que estão interessadas em obras pagam direitos, porque é que este tipo de plataforma não terá de pagar?”, acusa Vítor Palmela Fidalgo. O jurista prevê que o texto do Artigo 13.º acabará por ditar que as grandes empresas tecnológicas sejam forçadas a estabelecer acordos de licenciamento de direitos de autor para os conteúdos que disponibilizam.

“Há uma norma expressa no art. 13.º que diz que os filtros não devem ser automáticos. O que se propõe são medidas adequadas e proporcionadas.”

Na visão da advogada Patrícia Akester, as grandes plataformas da Internet têm contestado estes artigos porque “alteram o equilíbrio de poderes entre as grandes empresas norte-americanas e os interesses culturais europeus”. A plataforma de vídeos da Google lançou várias ameaças e tem estado na linha da frente na campanha contra o Artigo 13.º, com a ajuda de inúmeros youtubers que responderam ao apelo. Em Portugal, foram precisamente os youtubers a chamar atenção para esta controvérsia, que chega agora à fase final após três anos de discussão alargada - mas que passou despercebida na imprensa portuguesa - assumindo mesmo um raro tom de preocupação cívica.

Insurgiram-se especialmente Wuant (cerca de 3 milhões de subscritores) Tiagovski (842 mil subscritores), Windoh (1,5 milhões subscritores) e Nuno Agonia (1,1 milhões subscritores), mas não foram os únicos: Miguel Paraíso compôs um rap com direito a videoclipe; Olivia Ortiz construiu um vídeo explicativo com a ajuda de três especialistas (Miguel Sabino, CEO da Thumbmedia, Eduardo Santos, presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais e Tito Rendas, especialista em Direito de Autor); Bumba na Fofinha (Mariana Cabral) fez um vídeo em que colocava perguntas que gostava que fossem respondidas pela Representação da Comissão Europeia em Portugal, com direito a uma sequela. Questionada pelo SAPO24 sobre o que esperava alcançar com o vídeo, Mariana Cabral respondeu que irá continuar “a fazer pressão (tanto do lado da CE, como do YouTube) para entender melhor o que se vai passar ”porque as respostas ainda não chegaram”.

“Se todas as pessoas que estão interessadas em obras pagam direitos, porque é que este tipo de plataforma não terá de pagar?”

A falta de clareza é também uma crítica de Tiago Pereira, ou TJI, (37 mil subscritores). Além de YouTuber, Tiago estuda Internet e Novos Media na Universidade Católica de Lisboa. Está preocupado com o Artigo 13.º pelo “manto de mistério em que está envolvido”. Tiago reconhece que estamos perante “uma questão complicada de resolver” e defende “um maior controlo no que toca a violações de direitos de autor”. Mas nada o incomoda tanto como “a inexistência de uma explicação coerente e clara sobre este assunto, porque até agora os poucos comunicados que vi da Comissão Europeia eram bastante vagos.”

Rúben Branco, comediante e youtuber, percebe e defende a necessidade de leis que protejam materiais criativos, mas o seu maior receio “prende-se com a impossibilidade de continuar a utilizar o YouTube como um todo, seja como consumidor ou como criador, já que o YouTube poderá limitar as funcionalidades para a Europa de forma a proteger-se de eventuais processos de editoras que vejam parte do trabalho que representam a ser utilizado de forma indevida.” Para tentar entender melhor o tema, o criativo entrevistou o eurodeputado António Marinho e Pinto, que defende o Artigo 13.º, Miguel Sabino (CEO da Thumb Media, uma empresa que gere canais de YouTube portugueses) e ainda Zorlak, um dos maiores streamers [aqueles que transmitem vídeos em tempo real, nomeadamente de videojogos] portugueses.

O projeto de diretiva tem sido apoiado por inúmeras personalidades. Entendem que o Artigo 13.º asseguraria aos artistas o devido pagamento pelo seu trabalho de criação, impedindo que plataformas gratuitas vendam espaço publicitário, através da presença de conteúdo não licenciado.

No Festival de Cinema de Veneza, em setembro de 2018, 165 realizadores e guionistas apelaram à União Europeia para que aprovasse a lei. Em julho, Paul McCartney fez parte de um grupo de 1.300 músicos que assinou uma carta a apelar para que a lei fosse aprovada, de forma a proteger-se o trabalho criativo da pirataria e repor a justiça no mercado online europeu. Um grupo de jornalistas europeus escreveu uma carta aberta ao Parlamento Europeu, também eles a favor da nova diretiva, mas com as atenções viradas para o Artigo 11º, que atribui direitos de autor a títulos e excertos noticiosos, o que requer que plataformas como a Google News paguem às empresas de media um link tax [taxa no link], caso queiram partilhar artigos.

No entanto, o apoio ao Artigo 13.º parece estar a evaporar-se. Estados-membros da UE têm expressado o seu desagrado em relação à lei. Mais de 4 milhões de pessoas assinaram uma petição contra o artigo, que se torna assim na maior petição de sempre do site change.org, e académicos e especialistas têm-na contestado desde o início. Numa reviravolta, um grupo de ligas desportivas e produtoras de filmes retirou o seu apoio ao Artigo 13.º, referindo numa carta aberta à União Europeia que a lei vai acabar por dar mais poder às mesmas grandes empresas que quer restringir; e mais: um grupo de diversas entidades representantes de artistas e outros detentores de direitos - as entidades cujos direitos a diretiva é suposto proteger - assinaram uma carta aberta no final de 2018 que expõe preocupações em relação às mais recentes alterações ao texto do Artigo 13.º.

Com tanta volta e reviravolta, será que a Internet vai mesmo mudar? Talvez; não se sabe se para melhor ou pior, mas uma coisa é certa: irá ter de acatar novas regras. Por agora, resta esperar por 21 de janeiro, dia em que será finalizado o texto a sair das discussões do trílogo.

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