Naquela manhã, uma plateia de jovens e menos jovens, de advogados e não-advogados (muitos não-advogados) ouviu Johnson Semedo contar como os “pressupostos inerentes” quase lhe tinham lixado a vida. Assim mesmo, sem uma camada de açúcar refinado para tornar a frase mais doce ou socialmente mais conveniente. Johnson Semedo, o português de São Tomé, sem papéis que provassem ser nem de um lado nem de outro, foi preso por tráfico de droga e condenado a 14 anos de prisão. Sendo que a prisão não era o pior castigo. Pior mesmo foi o juiz que o julgou ter determinado que, uma vez cumprida a pena, seria extraditado ... para São Tomé e Príncipe. O local onde Johnson tinha nascido, mas fora mesmo só isso que acontecera. Mais nada o ligava à terra, e ninguém o podia receber se para lá tivesse de ir.

Johnson Semedo não sabia nada disto e nada disto entendia enquanto ouvia o juiz, enquanto se dirigia à sua cela, enquanto aprendia como viver na que seria a sua ‘casa’ por 14 anos. A prisão. O que o assustava dia e noite não era estar preso, era o que faria quando enfim estivesse livre. Em São Tomé, a terra onde apenas nasceu e onde ninguém o esperava. Viveu assim entre a ignorância e o medo com muita atenção aos termos que desconhecia. Em especial a um: reunir “os pressupostos inerentes”. Um termo jurídico relativamente banal que para ele se tornou uma espécie de muro ou de “coisa cujo nome não podemos dizer a seguir”. E foi assim que aprendeu a responder que ‘não’ cada vez que lhe perguntavam “cumpre os pressupostos inerentes?”. Não, dizia sempre, não cumpro. Não, achava ele, era uma coisa boa – não significava, na realidade, sim. Sim, estou a portar-me bem, não, não reúno os pressupostos inerentes a estar a fazer qualquer coisa de errado. E era por esta razão – simples – que Johnson Semedo respondia sempre que não quando lhe perguntavam se reunia os pressupostos inerentes uma saída precária da prisão para uma visita à família.

“Ele pensava que aquela pergunta era ‘se eu disser que sim, não saio’, então respondia sempre que não. Reunir os pressupostos inerentes significa em linguagem corrente ‘tencionas ir lá para fora fazer porcaria?’ ou ‘juras que voltas no dia certo?’ ou ‘vais usar pulseira eletrónica?’. Isso é que era reunir os pressupostos inerentes à liberdade precária, e ele dizia ‘estão a fazer-me perguntas, se eu faço isto, eu não faço”. Achava que se dissesse sempre que não, saía”. Margarida Couto, advogada, CEO da Fundação Vasco Vieira de Almeida, explica – e parece simples assim.

A verdade é que não é simples e nem sequer é necessário invocar casos tão limites quanto o de alguém que está preso. A não compreensão da lei é uma causa de desigualdade na sociedade. A lei é para todos, mas não somos todos iguais a partir do momento que não a compreendemos na sua totalidade e nas suas nuances, que não sabemos como a usar para nos defendermos ou para podermos usufruir das suas oportunidades, e tudo isto são atos bem mais quotidianos do que podemos pensar. Das multas que recebemos no correio aos contratos em letras pequeninas que assinamos ou dos termos de utilização de uma rede social.

“A lei é cada vez mais difícil de perceber, por várias razões. Primeiro, porque há uma crescente multiplicidade de realidades que ao serem novas têm de ser reguladas. E as leis vão-se multiplicar para acompanhar e regular esse número crescente de atividades. Mas também porque, tipicamente, os juristas trabalham muito em silos e não têm a preocupação de desconstruir aquilo que, na brincadeira e na gíria, se chama o “legalês. Então o que acontece é que mesmo cidadãos informados, quando leem uma lei não a compreendem na sua integralidade e isso pode fazer a diferença entre ficar ou não ficar na prisão, entre pagar ou não pagar uma multa ou um imposto que não é devido”.

Ou seja, a distância do cidadão comum à lei, ou à sua compreensão, não é assim tão diferente da situação em que Johnson Semedo se viu ao não compreender os “pressupostos inerentes”. “Vou-lhe dar um exemplo”, continua Margarida Couto, “há o instituto da prescrição, ao fim de um tempo uma dívida fiscal prescreve, mas o fisco tem a obrigação de notificar mesmo dívidas prescritas. Se eu sou um cidadão informado ou sou advogado, olho para aquilo, vejo a data, vou à lei e digo “eu não vou pagar isto porque prescreveu”. Mas a prescrição tem de ser invocada, se eu não invocar a prescrição ela não opera, então, o simples facto do comum dos cidadãos não saber de cor o que é o prazo de prescrição do fisco, da segurança social, da EMEL, o que seja, faz com que cada um de nós exerça os seus direitos de uma forma muito diversa e, provavelmente, aquele que vai pagar a dívida prescrita é o que tem menos recursos para a pagar, porque não pôde perguntar a opinião a um advogado ou não pôde compreender uma lei, porque a linguagem não era acessível”.

Se o leitor chegou até aqui nesta história, o termo “legal hackaton” já não o irá afastar como se um pressuposto inerente se tratasse. Porque apesar de a expressão não ser comum, o seu objetivo é bastante transparente. Hackaton é um termo usado na língua franca das startups e que significa maratona, tipicamente 24 horas seguidas a trabalhar para resolver um problema. Legal, bom, legal em inglês como em português é isso mesmo – o que respeita à lei.

O primeiro Legal Hackaton em Portugal teve lugar nos dias 16 e 17 de março promovido pela Fundação Vasco Vieira de Almeida e pela Startup Lisboa. “A ideia nasceu no contexto de um plano estratégico de inovação que fizemos. Dentro desse plano havia um eixo destinado a fazer surgir novas ideias viradas para a sociedade em que o facto de nós sermos prestadores de serviços jurídicos pudesse ser posto ao serviço da comunidade, mas de forma inovadora”, conta Margarida Couto.

A ideia foi evoluindo, mas, na verdade, só com o nascimento da Fundação Vasco Vieira de Almeida é que se criaram as condições para avançar enquanto iniciativa de cidadania. “Como a missão da Fundação Vasco Vieira de Almeida é a educação para a cidadania, fez-nos todo o sentido considerar que chegou o momento de pôr de pé uma ideia que já estava a ser amadurecida há quase dois anos”.

Explicado o conceito, passemos à prática. E, na prática, esta maratona juntou gente de locais – reais e conceptuais – muito diferentes, da tecnologia à psicologia, da sociologia à gestão. Juntou sobretudo dois mundos que não nos habituámos a ver juntos – o da tecnologia e o do direito. Mas pode ser mesmo falta de hábito apenas. ”Acreditamos que o direito e a cidadania são uma das áreas em que a tecnologia pode fazer toda a diferença, porque pode simplificar extremamente uma panóplia de processos e situações que têm a ver com o dia-a-dia das pessoas. Por exemplo, hoje um advogado é chamado a defender um cidadão em que o processo judicial tem não sei quantos volumes. Se um advogado tiver de ler, e tem, toda a informação demora horas, semanas, meses, se for uma solução tecnológica e que tenha um bom algoritmo por trás pode ler a informação em dez minutos, extrair a que interessa e alimentar o advogado com essa informação”.

Então, e numa versão mais-que-perfeita deste uso da tecnologia, para que precisamos de advogados? Está a “espécie” a condenar-se a si própria? Nem por isso – mas talvez nos devamos preparar para um outro tipo de advogado. Não forçosamente o advogado extinto como preconizado num livro que a CEO da Fundação Vasco Vieira de Almeida cita, “The End of The Legal Profession”, que elabora uma visão em que vão ser substituídos por imensas coisas que não só robôs. “Eu acredito que não”, diz Margarida Couto sem hesitar. “Pelo contrário, se isto for bem feito - e claro que a tecnologia tem um lado negro e tem um lado bom, e isto pode correr bem ou mal, consoante a tecnologia seja bem usada ou mal usada -, o papel do advogado até pode sair melhorado, no sentido de que é liberto de um conjunto de tarefas burocráticas, maçadoras, cansativas, consumidoras de recursos e fica com todo o seu saber, todo o seu potencial jurídico e potencial humano para aquilo em que é preciso um ser humano”. Ou, em síntese “deixamos o advogado para aquilo em que é preciso um ser humano e usamos a tecnologia para aquilo em que o lado humano da equação não faz falta nenhuma”.

A esta altura da entrevista, entre o poder do direito e o poder das máquinas, vem à conversa um programa recente de John Oliver, uma rábula às robot-calls [chamadas telefónicas programadas que têm uma lei que as regula mas que ninguém faz cumprir], tema que serviu para o humorista ir recuperar uma série de autorizações que assinamos com empresas, nós todos, quando contratamos certos serviços. “Acha que este tipo de iniciativas como o Legal Hackathon também pode ter impacto nestas coisas do dia-a-dia, desde como aceitar uma política de privacidade porque queremos ver um certo conteúdo e não queremos perder tempo, ou contratar um serviço bancário ou telecomunicações e não ver que na página 9 está lá escrito que eles nos podem ligar quantas vezes entenderem?”, perguntamos à mentora da maratona que decorre enquanto falamos. A resposta é concludente. “Um dos aspetos que está muito na nossa expectativa com a realização desta iniciativa é o empoderamento do cidadão-consumidor.

Ou seja, todos nós, todos os dias, com a pressa e com a dificuldade em compreender os papéis que nos estão a dar para assinar, assinamos um grande número de coisas sem fazer ideia nenhuma do que estamos a assinar, até porque geralmente as letras são minúsculas e é de propósito que o são. E muitas vezes aquele contrato que acabei de assinar que é de adesão a um serviço qualquer tem uma cláusula que por acaso até é nula e a seguir a empresa com base nessa cláusula que é nula diz que eu tenho de pagar não sei quantos mil euros e eu olho para aquilo e penso 'eu não li e assinei, se eu assinei sem ler, a culpa é minha, portanto, vou pagar'. Exemplos destes multiplicam-se, e a privacidade é um bom exemplo com o famoso RGPD, todos nós quando chegamos a qualquer evento, qualquer site, pedem-nos um “ok” ou um clique, e na verdade quem é que tem tempo de ir ler a política de privacidade para aceitar? Simplesmente aceitamos e se calhar tardiamente descobrimos que aceitámos que nos invadissem por completo a privacidade. Um dos objetivos deste Legal Hackathon é criar awareness para este tipo de problemas e sobretudo para o nascimento de soluções tecnológicas para os resolver”.

Enquanto conversávamos no átrio dos escritórios da Vieira de Almeida, 70 participantes selecionados entre 185 candidaturas iniciavam o processo de discussão da que seria a sua “grande ideia” para o Legal Hackaton. Alguns já ali tinham chegado com um projeto pensado, outros apenas tinham vontade de participar. Uns e outros misturaram-se em equipas, um etapa que contém um dos elementos-surpresa mais interessantes num evento desta natureza. A maior parte das pessoas não se conhece, muitas vão acabar a fazer uma maratona de 24 horas com mais duas ou três pessoas que eram perfeitos estranhos até aí. Antes disso, todos tiveram de vender a sua ideia aos outros – e a ideia melhor vendida é a que seguiu em frente, já que cada grupo só pode desenvolver um projeto.

Aprender a defender uma ideia é um roteiro que a Startup Lisboa conhece bem – ou não fosse essa uma parte fundamental da matéria de que são feitos os sonhos das muitas startups que acolhe e apoia. Ser o parceiro da Fundação Vieira de Almeida – num grupo que também contou com a Microsoft e Outsystems, além de ter reunidos algumas das principais universidades e ordens profissionais – teve, no entanto, o sabor a estreia pela área a que se destinava. “Temos no nosso ADN, na nossa missão, não só apoiar empreendedores a desenvolverem os seus modelos de negócio, as suas ideias, as suas startups, mas também a desenvolver o próprio ecossistema de inovação e de empreendedorismo e, portanto, quando nos batem à porta com uma ideia que tem na sua génese inovação e empreendedorismo, normalmente nós gostamos de dizer que sim. Começámos a colaborar e rapidamente vimos que era uma iniciativa muito interessante até porque se insere numa área nova que é a promoção da cidadania, de uma cultura de direitos mais ativa, e como é que a tecnologia pode contribuir para esse papel, e esse é o desafio”, relata Miguel Fontes, diretor –executivo da Startup Lisboa.

O grupo que saiu vencedor deste primeiro Legal Hackaton trabalhava para a mesma entidade – o Ministério da Saúde – mas os elementos da equipa não se conheciam. Apenas tinham sido convencidos pelo mesmo “chefe” a inscrever-se. “A iniciativa não foi nossa”, começa logo por dizer Inês Sousa, a porta-voz da equipa. “Trabalhamos os quatro no mesmo local, nos serviços partilhados do Ministério da Saúde, e o Presidente do Conselho de Administração tendo tido conhecimento desta iniciativa achou por bem que a empresa participasse e incentivou que nas diversas direções fosse escolhida uma pessoa de acordo com as diversas competências”. Foram escolhidas duas pessoas com competências em sistemas de informação, dois engenheiros de software, Mário Santos, 21 anos, e João Tomás, 27, e duas pessoas com competências jurídicas, uma jurista e uma advogada, Alexandra Adão, de 30, e Inês de Sousa, de 26 – mas os quatro não souberam uns dos outros até se encontrarem no evento. “Demorámos algum tempo até perceber quem era quem aqui nos corredores, encontrámo-nos e conhecemo-nos, começámos a conversar um bocadinho e foi aí que a equipa se juntou”.

E aos vencedores aconteceu o mesmo que à maioria: começar foi complicado. “A primeira dificuldade foi encontrar um tema. Não tínhamos quaisquer ideias, porque pensámos que viríamos aqui e que nos seria feito um desafio e que teríamos de ultrapassá-lo. Entretanto, começámos a falar com os mentores e a perceber que não havia um desafio concreto, que era um desafio geral e que nós tínhamos de fazer algo relacionado com isto. Foi aí que começámos a falar uns com os outros, passámos o dia inteiro de sábado a pensar no que é que íamos fazer, sem chegar a conclusão nenhuma. Até que a ideia surgiu às seis da tarde [de sábado] e a partir daí foi trabalhar até às duas da tarde de hoje [domingo] sem parar para desenvolver a ideia que nos tinha suscitado” conta Alexandra. “E depois, o desafio maior foi que a Inês conseguisse resumir isto tudo, porque ela fala muito, em três minutos, e a apresentação dela foi fantástica”.

Não sem que antes passassem horas de verdadeira “montanha-russa”, como descrevem. “Tivemos o azar de ter uma máquina que de duas em duas horas desligava, foi preciso muita paciência”, relata Inês. “Ríamos cada vez que eles [os dois programadores da equipa] tentavam ligar o site e não dava, mas também pensávamos que estávamos aqui pela desportiva, se não corresse bem íamos para casa e tínhamo-nos divertido”.

créditos: MadreMedia

E foi assim que “O meu amigo jurista” levou para casa o primeiro prémio no valor de sete mil euros e a expectativa de agora tornar o protótipo de uma maratona num projeto a sério. A ideia? Uma tecnologia que permitirá aos escritórios de advogados e aos gabinetes jurídicos de empresas melhorar a forma como transmitem essa informação. A ideia é transformar o tal “legalês” numa linguagem mais clara e acessível, partindo a iniciativa de quem produz os documentos que com esta ferramenta os pode tornar mais simples e inclusivos.

No segundo lugar ficou o projeto Vínculus que juntou Gastão Sèves e Diogo Fonseca, alunos do curso de Direito na Universidade de Lisboa, ambos com 21 anos, Inês Gaspar, de 22 anos, também jurista, Manuel Catarino, estrategista de negócios de 32 anos, e Miguel Matos, estudante de Engenharia Informática, de 22 anos. O projeto focou-se na formulação dos contratos e no objetivo de ajudar quem não domina a linguagem jurídica a manusear este tipo de documentos.

E no terceiro lugar ficou o projeto Advogário promovido por três engenheiros de software, Bruno Hora, Hugo Larcher e Ivo Oliveira, respetivamente com 36, 39 e 25 anos, e pelo business developer João Mota, de 42 anos. O projeto já está no ar e consiste numa espécie de glossário para “traduzir” o idioma das leis. Basta “tirar uma fotografia ao documento em que constam” os termos que causam dúvidas e obtém-se “de forma imediata e simples uma explicação.

À vista desarmada, todos cumprem com o desígnio que a CEO da Fundação Vasco Vieira de Almeida gostaria de ver cumprido. “O que nós gostávamos que resultasse deste primeiro Legal Hackathon era uma solução implementável, ou seja, que fosse mais do que uma boa ideia, embora se for uma boa ideia já é bom. Que fosse uma solução que pudesse ser transformada num produto e que esse produto – produto em sentido alargado, não necessariamente um produto monetizável- , mas que fosse para o 'mercado' e que pudesse ser utilizado no dia-a-dia dos cidadãos e lhes facilitasse, de alguma maneira, a vida no acesso ao direito ou aumentasse a sua literacia jurídica. Que fosse adotável, que fosse de tal modo útil que a generalidade do publico destinatário dessa solução se sentisse efetivamente motivado a utilizá-la”.

Reveja o magazine The Next Big Ideia exibido na SIC Notícias a 23 e 24 de março e gravado durante o primeiro Legal Hackaton.

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