A divergência crypto
Sensivelmente a meio da manhã, cerca das 10h30, teve lugar no Center Stage da Web Summit uma das principais talksdo dia. E diga-se principal não por envolver um ator de Hollywood — par romântico de Mischa Barton em “O.C.: Na Terra dos Ricos” —, que por acaso até é licenciado em Economia e está a escrever um livro sobre fraudes com criptomoedas, mas sim pelo facto de envolver divergências relativamente ao futuro do mercado financeiro.
Ou seja, esta conversa envolveu o ator Ben McKenzie (na qualidade de jornalista da Slate), Molly White (autora do site “Web3 is going just Great”, um blog onde expõe os problemas/fraudes com moedas digitais) e Charles Hoskinson(alguém muito badalado no meio ou não tivesse ajudado a criar a Ethereum, a blockchain mais conhecida do mercado, e depois fundado a Cardano, outra blockchain igualmente celebrada no seio crypto. Os dois primeiros são céticos, quer quanto ao futuro destas moedas, quer quanto à possibilidade de o mercado ser descentralizado; já o último é um ávido defensor e crítico do sistema financeiro regulado como o conhecemos hoje.
Ben McKenzie tomou a palavra e iniciou a discussão para atacar de pronto as criptomoedas. “Penso que o crypto está à procura de novas histórias para contar”, disse, para depois salientar “que grande parte do ar já saiu da bolha”. Por outras palavras, na sua opinião, falar que o futuro pertence à Web3 e ao mercado financeiro descentralizado é demasiado precoce. “É preciso deixar a poeira assentar” para tirar conclusões, porém, a verdade é que os “dois mil milhões de dólares que desapareceram nos últimos seis meses” não são bons indicadores.
Além disso, McKenzie considerou a adoção das Bitcoin por parte de El Salvador “um fracasso”, uma vez que visitou o país em pessoa e “não via muitas pessoas a utilizá-la”. Neste ponto, Hoskinson foi rápido a contrariar esta noção "bizarra", uma vez que a Bitcoin é um bem digital e El Salvador está a utilizá-lo como um sistema bi-monetário, explicando que fazem o mesmo que os Estados Unidos, já que os EUA, por exemplo, não recorrem diretamente ao ouro para fazer transações.
Depois, Hoskinson capitalizou no facto de as criptomoedas e os seus criadores estarem a reimaginar o sistema financeiro. “Inspirámos uma geração inteira a reimaginar como é que o dinheiro funciona, como é que as finanças funcionam. Vamos ser honestos, aqui. A indústria financeira lixa as pessoas”, rematou o fundador da Cardano. Em jeito de resposta às críticas, lembrou que se passaram 13 anos desde o aparecimento da Bitcoin. “Estamos apenas a começar”, disse, reconhecendo que nem tudo é perfeito na blockchain — e que esta só existe porque “há injustiça para qualquer lado que se olhe”.
Já Molly White aproveitou a discussão para se centrar nos esquemas fraudulentos e na falta de segurança destas plataformas. “Têm havido ataques na ordem dos milhões de dólares, repetidamente. Ao ponto de já nem me surpreender. Ó, só 100 milhões? É incrível. E o facto de se estar a dizer a pessoas comuns para porem o seu dinheiro nestes projetos e depois estarem à mercê da boa vontade destes projetos para os compensarem na eventualidade de existir um ataque…”, explicou a engenheira de software norte-americana, que criticou que seja amplamente aceite na indústria que existam players a dizer que “80% a 90% do que se vê fraudulento, mas também há coisas genuínas".
A conclusão? Os três acabaram por “concordar em discordar”. Ainda que admitam que nenhum dos lados (o mercado financeiro regulado e o descentralizado das criptomoedas) é perfeito e que as pessoas não devem sair lesadas de esquemas fraudulentos ou de vícios de um sistema financeiro que as prejudica, a visão dos céticos pareceu simplesmente demasiado diferente da do homem que ajudou a fundar a blockchain.
“A Meta não vai ser a dona do metaverso”
A par da Web3 e das criptomoedas, o metaverso dominou os palcos e palestras na Web Summit. E não seria certamente no último dia que iria ser diferente. Por isso, encara-se com alguma naturalidade que se tenha deixado para o fim do evento a discussão que envolveu a representante da empresa que mais tem investido nesta área. Falamos, claro, da Meta. E coube a Naomi Gleit, Chefe de Produto da empresa, frisar que o investimento anual de mil milhões de dólares no metaverso vai acabar por compensar, à medida que a tecnologia se torna cada vez mais imersiva.
Porque, note-se: o metaverso não é apenas sobre jogos. Vai ter implicações na educação e na medicina, onde as suas propriedades imersivas estão a ser utilizadas para formar, por exemplo, cirurgiões.
Naomi Gleit, de resto, discordou também das vozes que auguram que o metaverso é mera visão distópica e salientou que nunca irá substituir as interações cara-a-cara. Vai, sim, aumentar a qualidade do tempo passado online.
Outro ponto forte tocado por Gleit foi o receio de monopólio, ao rejeitar a noção de que a Meta vai assumir uma posição dominante no mercado — algo que tem sido frequentemente apontado como forte possibilidade, já que Zuckerberg está a comprar várias empresas mais pequenas que estão a desenvolver tecnologia para e no metaverso.
Na visão da Chefe de Produto, a Meta nunca poderia assumir essa posição uma vez que a Apple e outras entidades também estão a investir na mesma área, e, tal como a Internet, não há entidade individual que a possa “controlar”. Noutros termos, a representante concordou que a Meta está realmente a fazer uma "grande aposta" no metaverso, mas que é importante assumir riscos para que a tecnologia e os negócios se desenvolvam. “A Meta não vai ser a dona do metaverso”, enfatizou.
Para rematar, num gesto de futurologia, Gleit afirmou acreditar que, daqui a uns anos, vamos ter com dispositivos de realidade virtual a mesma relação que temos hoje com os nossos smartphones.
Noam Chomsky desiludido com a IA
Noam Chomsky está desiludido com o progresso e evolução da Inteligência Artificial (IA). E sabemo-lo porque o "pai da linguística moderna" juntou-se ao cientista e investigador Gary Marcus para dar uma das palestras mais aguardadas da programação da Web Summit deste ano. Os dois autores, ainda que contemplem percursos distintos, possuem um vastíssimo currículo na filosofia da linguagem e nas ciências cognitivas. O primeiro, com 94 anos, estava à distância e a falar em modo remoto; o segundo, com 52, estava em Lisboa. Mas, apesar da distância, estavam em sintonia: o que se está a fazer com a Inteligência Artificial (IA) não é bom.
Essencialmente, a ideia que os ambos deixaram esta sexta-feira foi a de que é preciso injetar mais “fator humano” na inteligência artificial das máquinas. O progresso está a ser feito, mas a verdade, sublinha Chomsky, é que IA ainda “não é capaz de entender a linguagem humana”. E o linguista explica onde está o erro: está no modo como os cientistas mudaram o “chip” e estão a levar a que a inteligência artificial esteja a recorrer à estatística e não à cognição. Isto é, a IA está a ser cada vez melhor a prever e antecipar, mas não está a aprender como é que o cérebro humano pensa — e por causa disso não evolui. Gary Marcus concorda com esta ideia e explica que os sistemas de IA atuais são algoritmos turbinados de “sistemas autocomplete em esteróides”. Replicam, mas replicam mal. Preveem, mas não sabem interpretar.
“Paddy, you're the best!”
Não foi a primeira vez que Marcelo Rebelo de Sousa fechou a Web Summit. E a julgar pela reação do público na Altice Arena esta sexta-feira, dificilmente será a última. Durante a sua intervenção, o Presidente da República arrancou aplausos, ovações e até levantou muitos da plateia enquanto aplaudiam e ovacionavam. Há uns tempos falava-se de alguma fadiga das constantes aparições públicas do Chefe de Estado, mas, no maior evento de tecnologia europeu, Marcelo é dono e senhor do palco.
“Paddy, és o maior. És mesmo”, disse Marcelo ao irlandês depois deste último insinuar que “só há uma pessoa possível para encerrar a Web Summit”. Na verdade, foi uma troca de saudações e admiração que resultou num abraço-quase-placagem a Paddy Cosgrave durante a sua subida para o palco.
“Mesmo depois da pandemia e da guerra. Quem diria?”, frisaria depois o Presidente, que elencou cinco pontos a ter em conta para o futuro antes de terminar a intervenção - este ano mais curta do que em anos anteriores. “Temos de ter paz, temos de reconstruir a Ucrânia, temos de recuperar as imensas economias e sociedades que sofrem com a inflação, temos de acelerar a transição energética e nunca, nunca, nunca esquecer a ação climática.”
Antes, provocou risos e boa disposição aos presentes ao dizer que se sentiu novamente como um “adolescente” por ter escutado o linguista Noam Chomsky. “Quando tinha 18 anos, Noam Chomsky era uma das razões de debate na minha faculdade. E agora com 94 anos… Está vivo, muito vivo! E ainda acredita no digital”.
Durante a sua intervenção e antes de se despedir com um “até 2023”, Marcelo confessou esperar que no próximo ano se comece a preparar “uma nova fase” da Web Summit, de modo a que se possa trabalhar na sua “estadia” em Lisboa para lá de 2028, ano em que termina o acordo com Portugal.
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