CAPÍTULO 2

1

Avancei outro passo e desci outro degrau. Os meus olhos continuavam a dizer-me que me encontrava no chão da despensa do restaurante, mas eu estava na vertical e o alto da minha cabeça já não tocava no teto, o que, claro, era impossível. O meu estômago começou a revoltar-se em resposta à minha confusão sensorial, e senti que a sandes de ovo e a fatia de tarte de maçã que comera ao almoço se preparavam para premir o botão ejetor.

Atrás de mim — ainda que a certa distância, como se se encontrasse a quinze metros em vez de a metro e meio —, Al disse:

— Fecha os olhos, companheiro, que é mais fácil.

Quando o fiz, a confusão sensorial desapareceu de imediato. Foi como descruzar os olhos. Ou como pôr os óculos especiais para ver um filme a 3D, talvez isso se aproxime mais da realidade. Movi o pé direito e desci outro degrau. Eram degraus; com os olhos fechados, o meu corpo não tinha nenhuma dúvida acerca disso.

— Só mais dois, depois abre-os — indicou Al. A sua voz parecia mais distante. Na outra ponta do restaurante, em vez de à porta da despensa.

Baixei o pé esquerdo, depois outra vez o pé direito, e de repente senti um pequeno estalido dentro da cabeça, exatamente igual ao que sentimos quando estamos num avião e a pressão muda de repente. O campo escuro atrás das minhas pálpebras tornou-se vermelho e experimentei uma certa calidez na pele. Era a luz do sol. Indiscutivelmente. E aquele vago odor a enxofre tornara-se mais denso, deslocando-se pela escala sensorial do «pouco percetível» para o «nauseabundo». Também isso era indiscutível. Abri os olhos.

Já não estava na despensa, nem no Al’s Diner. Embora na despensa não houvesse nenhuma porta para o mundo exterior, eu estava lá fora, na rua. No pátio. Mas este já não era de tijolo, e não se via nenhum outlet à volta. Encontrava-me de pé sobre uma superfície de cimento suja e gretada. Vários contentores enormes de metal alinhavam-se contra o muro branco onde deveria estar a Your Maine Snuggery. Estavam cheios de qualquer coisa e cobertos com serapilheiras do tamanho de velas de um barco.

Voltei-me para ver a enorme casa móvel prateada onde se encontrava o Al’s Diner, mas o restaurante tinha desaparecido.

2

No sítio onde ele deveria estar erguia-se agora a vasta massa dickensiana da Fábrica Têxtil Worumbo, que funcionava em pleno. Ouvi o troar das máquinas de tinta e de secagem, o chat-UCH, chat-UCH dos gigantescos teares que outrora tinham ocupado o primeiro andar (vira fotografias daquelas máquinas, operadas por mulheres de lenço na cabeça e batas, no minúsculo edifício da Sociedade Histórica de Lisbon, no cimo da Main Street). Das três chaminés que tinham tombado durante um vendaval nos anos oitenta saía um fumo cinzento-esbranquiçado.

Eu estava de pé junto a um grande edifício cúbico pintado de verde; o edifício de secagem, supus. Ocupava metade do pátio e elevava-se a uma altura de seis metros. Embora tivesse acabado de descer um lanço de escadas, este já não existia. Não havia caminho de regresso. Fui invadido por uma sensação de pânico.

— Jake? — Era a voz de Al, mas muito ténue. Parecia chegar-me aos ouvidos graças a um mero efeito acústico, como uma voz a serpentear durante quilómetros por um desfiladeiro comprido e estreito. — Podes voltar a entrar da mesma forma que saíste. Tateia à procura dos degraus.

Levantei o pé esquerdo, baixei-o, e senti um degrau. O pânico diminuiu.

— Vai. — Ao longe. Uma voz aparentemente impelida pelo seu próprio eco. — Dá uma olhadela às imediações e volta.

De início não fui a lado nenhum, continuei simplesmente ali, a limpar a boca com a palma da mão. Sentia os olhos a sair das órbitas. Alguma coisa parecia rastejar pelo meu couro cabeludo e descer por uma faixa estreita de pele até meio das costas. Estava assustado, quase aterrado, mas a compensar isso e a manter o pânico afastado (por enquanto) havia uma poderosa curiosidade. Vi a minha sombra sobre o cimento, tão nítida como se fosse recortada num tecido preto. Vi lascas de ferrugem na corrente que separava o edifício de secagem do resto do pátio. Cheirei o eflúvio potente que emanava do trio de chaminés, suficientemente forte para me fazer arder os olhos. Qualquer inspetor do Departamento de Proteção Ambiental que respirasse aquela merda fecharia a fábrica em menos de um minuto. Só que... não me parecia que houvesse inspetores do Departamento nas imediações. Duvidava até de que a Agência já tivesse sido criada. Sabia onde estava; Lisbon Falls, no Maine, no centro do condado de Androscoggin.

A verdadeira pergunta não era onde, mas sim quando.

3

Um letreiro que eu não conseguia ler pendia da corrente; os dizeres estavam voltados para o outro lado. Comecei a andar na sua direção, mas depois voltei para trás. Fechei os olhos e avancei arrastando os pés, forçando-me a dar passos de bebé. Quando o meu pé esquerdo chocou com o degrau inferior das escadas que subiam até à despensa do Al’s Diner (assim esperava eu ardentemente), apalpei o bolso de trás e tirei uma folha de papel dobrada: a nota do meu augusto diretor de departamento. «Tem um bom verão e não te esqueças da reunião em julho.» Perguntei a mim mesmo o que acharia ele se Jake Epping desse no ano letivo seguinte um curso de seis semanas chamado Literatura de Viagens no Tempo. Rasguei uma tira do cabeçalho, fiz uma bola e deixei-a cair no primeiro degrau da escada invisível. Aterrou no chão, claro, mas de qualquer forma servia para assinalar o local. Estava uma tarde amena, sem vento, e não me parecia que a bola levantasse voo, mas encontrei um pequeno pedaço de cimento e usei-o como pisa-papéis, só para ter a certeza. Aterrou no degrau, mas também na bola de papel. Porque não havia degrau. Veio-me à memória a letra de uma antiga canção: Primeiro há uma montanha, a seguir não há montanha, depois há.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

«Dá uma olhadela às imediações», dissera Al, e decidi seguir o seu conselho. Achei que se ainda não tinha perdido o juízo, provavelmente aguentaria mais um pouco. A menos que visse um desfile de elefantes cor de rosa ou um ovni a pairar sobre a John Crafts Auto, claro. Tentei convencer-me de que aquilo não estava a acontecer, que não podia estar a acontecer, mas não resultou. Os filósofos e os psicólogos podem debater sobre o que é real e o que não é, mas a maioria das pessoas que leva uma vida normal conhece e aceita a textura do mundo que nos rodeia. Aquilo estava a acontecer. Além do mais, aquele maldito fedor descartava qualquer alucinação.

Aproximei-me da corrente, que pendia à altura da minha coxa, e passei por baixo. Do outro lado, escrito com tinta preta, lia-se PROIBIDA A ENTRADA ATÉ O CANO DE ESGOTO ESTAR REPARADO. Olhei de novo para trás, não vi sinais de nenhuma reparação a ser preparada no futuro imediato, dobrei a esquina do edifício e quase tropecei no homem que estava ali a apanhar sol, embora fosse difícil ele conseguir bronzear-se. Vestia um velho sobretudo preto que se espraiava à sua volta como uma sombra amorfa. Havia manchas de ranho seco em ambas as mangas. O corpo dentro do sobretudo era praticamente esquelético. O cabelo cinzento-ferro pendia acachapado junto às faces cobertas por uma barba em desalinho. Era a perfeita representação de um vagabundo.

Na cabeça, inclinado para trás, usava um chapéu de feltro que parecia saído de um filme negro dos anos cinquenta, daqueles em que todas as mulheres têm um bom par de mamas e todos os homens falam depressa com um cigarro no canto dos lábios. E, sim, a espreitar da fita do chapéu, como um antigo passe de imprensa, havia um cartão amarelo. Provavelmente já tinha sido amarelo-vivo, mas o excessivo manuseio de dedos sujos conferira-lhe um tom pardacento.

Quando a minha sombra caiu sobre o seu regaço, o Homem do Cartão Amarelo voltou-se e observou-me com olhos inflamados.

— Quem és tu, porra? — perguntou numa voz arrastada.

Al não me dera instruções pormenorizadas sobre como responder às suas perguntas, portanto respondi o que considerei mais seguro.

— Que porra te interessa isso?

— Então vai-te foder também.

— Muito bem. Estamos de acordo.

— Hum?

— Tem um bom dia.

Dirigi-me à cancela, que estava aberta sobre um carril. A seguir, à esquerda, estendia-se um parque de estacionamento que nunca ali estivera antes. Encontrava-se cheio de carros, muitos deles amolgados e todos suficientemente antigos para estarem num museu de automóveis. Havia Buicks com entradas de ar laterais e Fords com frentes de torpedo. Pertencem a operários da fábrica, pensei. Operários que neste momento estão lá dentro a trabalhar e a ser pagos à hora.

— Tenho um cartão amarelo da frente verde — disse o vagabundo. A sua voz era ao mesmo tempo truculenta e preocupada. — Portanto, dá-me um dólar porque hoje é dia de duplicar o dinheiro.

Estendi-lhe a moeda de cinquenta cêntimos. Então, sentindo-me como um ator que só tem uma fala na peça, recitei:

— Não te posso dar um dólar, mas aqui tens meio.

Depois dás-lhe a moeda, dissera Al, mas não foi necessário. O Homem do Cartão Amarelo arrancou-a e segurou-a perto da cara. Por um instante pensei que ia mesmo mordê-la, mas limitou-se a fechar a mão de dedos compridos num punho em volta dela, fazendo-a desaparecer. Observou-me desconfiado, com uma expressão quase cómica.

— Quem és tu? Que fazes aqui?

— Raios me partam se sei — respondi, e voltei-me para a cancela. Esperava que ele continuasse a fazer perguntas às minhas costas, mas houve apenas silêncio. Atravessei a cancela.

4

O veículo mais moderno do parque de estacionamento era um Plymouth Fury de, creio, meados ou fins dos anos cinquenta. A placa de matrícula parecia uma versão impossivelmente antiga da do meu Subaru; a pedido de Christy, a minha tinha pintado um laço cor de rosa da luta contra o cancro da mama. Na matrícula para onde eu estava a olhar nesse momento lia-se também VACATIONLAND, mas tinha o fundo cor de laranja em vez de branco. Tal como na maioria dos estados, as matrículas do Maine agora incluíam letras — a do meu Subaru é 23 383 IY — mas a daquele Fury vermelho e branco quase novo era 90-811. Sem letras.

Toquei na tampa do porta-bagagens. Era sólida e estava quente do sol. Era real.

Atravessa a linha férrea e estarás no cruzamento da Main com a Lisbon. Depois disso, companheiro, o mundo é teu.

Nenhuma linha férrea passava diante da antiga fábrica — pelo menos no meu tempo não —, mas ali estava ela, com efeito. Polida, reluzente: também não tinha um aspeto abandonado. E algures ao longe ouvia-se o apito de um comboio real. Há quanto tempo não passavam comboios em Lisbon Falls? Provavelmente desde que a fábrica fechara e a U.S. Gypsum ainda funcionava vinte e quatro horas por dia.

Mas ela ainda funciona vinte e quatro horas por dia, pensei. Apostaria qualquer coisa. E a fábrica também. Porque isto já não é a segunda década do século vinte e um.

Tinha recomeçado a andar sem dar por isso, a andar como um homem num sonho. Parei na esquina da Main Street com a Estrada 196, também conhecida como Antiga Estrada de Lewiston. Só que naquele momento ela nada tinha de antiga. E na diagonal do cruzamento, na esquina em frente...

Estava a Kennebec Fruit Company, um nome certamente pomposo para uma loja que estivera à beira do esquecimento, ou assim me parecera, durante os últimos dez anos, desde que dava aulas naquela terra. A sua inverosímil raison d’être e único meio de subsistência era o Moxie, o mais estranho dos refrigerantes. O proprietário, um afável idoso chamado Frank Anicetti, dissera-me uma vez que a população mundial se dividia de forma natural (e provavelmente por herança genética) em dois grupos: os escassos mas bem-aventurados eleitos que gostavam de Moxie acima de todas as outras bebidas... e o resto. Frank definia este segundo grupo como «a maioria tristemente incapacitada».

A Kennebec Fruit Company do meu tempo era um edifício de um amarelo-esverdeado deslavado, com uma montra suja desprovida de mercadoria... a menos que o gato que às vezes lá dorme esteja à venda. O telhado foi abaulado pela neve de vários invernos. Há pouca oferta no interior com exceção das lembranças do Moxie: camisolas laranja-vivo onde se lê TENHO MOXIE!, bonés da mesma cor, calendários, letreiros de metal que parecem antigos mas que provavelmente foram fabricados no ano anterior na China. Durante quase todo o ano, o lugar não tem clientes e as prateleiras estão vazias... embora ainda se consigam comprar coisas doces ou uma embalagem de batatas fritas (para quem gosta daquelas com sabor a sal e vinagre, claro). A vitrina dos refrigerantes só tem Moxie. A das cervejas está vazia.

Todos os anos, quando chega o mês de julho, celebra-se em Lisbon Falls o Festival Moxie do Maine. Há bandas de música, fogo de artifício e um desfile onde participam — juro que é verdade — carros alegóricos da Moxie e beldades locais em fatos de banho de cor Moxie, o que é sinónimo de um laranja tão brilhante que pode provocar queimaduras da retina. O mestre do desfile está sempre vestido de Doutor Moxie, ou seja, com bata branca, um estetoscópio e um daqueles espelhos que os médicos usam na testa. Há dois anos o mestre foi Stella Langley, a diretora da escola secundária, que nunca mais se libertará dessa imagem.

Durante o festival, a Kennebec Fruit Company ganha vida e faz bastante dinheiro, sobretudo graças aos desconcertados turistas a caminho das zonas mais populares do Maine ocidental. O resto do ano é pouco mais do que uma casca vazia, infestada por um ténue odor a Moxie, um odor que sempre me recordou — provavelmente porque pertenço à maioria tristemente incapacitada — Musterole, um remédio hediondo que a minha mãe insistia em esfregar-me na garganta e no peito quando eu me constipava.

O que eu agora contemplava desde o outro lado da Antiga Estrada de Lewiston era uma loja próspera na sua época áurea. O cartaz pendurado sobre a porta (REFRESCA-TE COM 7-UP em cima, BEM-VINDO À KENNEBEC FRUIT COMPANY em baixo) era suficientemente brilhante para me lançar dardos solares aos olhos. A pintura era recente, o telhado estava incólume. Entravam e saíam pessoas. E na montra, em vez de um gato...

Laranjas, santo Deus. A Kennebec Fruit Company chegara mesmo a vender fruta. Quem haveria de dizer?

Comecei a atravessar a rua, mas recuei ao ver um autocarro interurbano aproximar-se de mim a roncar. Na parte de cima do pára-brisas lia-se LEWISTON EXPRESS. Quando o autocarro travou e se deteve junto à passagem de nível, vi que a maioria dos passageiros estava a fumar. A atmosfera lá dentro devia ser semelhante à atmosfera de Saturno.

Livro: "22/11/63"

Autor: Stephen King

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 11 de janeiro de 2024

Preço: € 24,40

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Depois de o autocarro seguir viagem (deixando atrás de si o cheiro do gasóleo semiqueimado que se misturou com o fedor a ovo podre expelido pelas chaminés da Worumbo), atravessei a rua perguntando a mim mesmo o que aconteceria se fosse atropelado por um carro. Desapareceria? Acordaria estendido no chão da despensa de Al? Provavelmente nem uma coisa nem outra. Provavelmente morreria aqui, num passado do qual muita gente sentia nostalgia. Talvez por se terem esquecido de como o passado cheirava mal, ou porque nunca haviam sequer considerado esse aspeto dos Gloriosos Anos Cinquenta.

À porta da loja encontrava-se um rapaz de botas pretas, com um pé apoiado na parede. Tinha a gola da camisa levantada na nuca e o cabelo penteado num estilo que identifiquei (graças aos velhos filmes, principalmente) como Elvis Inicial. Ao contrário dos rapazes que estava habituado a ver nas minhas aulas, não tinha barbicha, nem sequer uma mosca sob o lábio. Percebi que no mundo que agora visitava (e onde eu esperava estar simplesmente de visita), ele seria expulso da escola por se apresentar com qualquer vestígio de pelos faciais. Ato contínuo.

Cumprimentei-o com uma inclinação de cabeça. James Dean retribuiu o gesto e disse:

— Que tal, velhote?

Entrei. Por cima da porta soou uma campainha. Em vez de pó e madeira num lento processo de decomposição, senti o cheiro a laranjas, maçãs, café e tabaco perfumado. À minha direita havia um expositor de livros de banda desenhada com as capas arrancadas: Archie, Batman, Capitão Marvel, O Homem de Plástico, Contos de Arrepiar. O letreiro escrito à mão por cima deste tesouro, que teria provocado um paroxismo a qualquer aficionado do eBay, dizia: BD 5 CENT UM. TRÊS POR 10C. NOVE POR 50C. POR FAVOR NÃO MANUSEIE SE NÃO TENCIONA COMPRAR.

À esquerda havia um expositor de jornais. Não vi nenhum exemplar do New York Times, mas sim do Press Herald de Portland e um único Boston Globe. A primeira página deste apregoava DULLES ADMITE CONCESSÕES SE CHINA COMUNISTA RENUNCIAR AO USO DA FORÇA NA FORMOSA. A data em ambos era quinta-feira, 9 de setembro de 1958.

5

Peguei no Globe, que custava oito cêntimos, e dirigi-me ao balcão com tampo de mármore que não existia no meu tempo. Atrás dele encontrava-se Frank Anicetti. Era ele, sem dúvida, até ao pormenor dos distintos cabelos grisalhos nas têmporas, só que esta versão — chamemos-lhe Frank 1.0 — era magra em vez de roliça e usava lentes bifocais sem armação. Também era mais alta. Sentindo-me um estranho no meu próprio corpo, instalei-me num dos bancos.

Ele indicou o jornal com um aceno de cabeça.

— Deseja só isso, ou posso servir-lhe alguma coisa?

— Qualquer coisa fria que não seja Moxie — ouvi eu próprio dizer. Frank 1.0 sorriu em resposta.

— Não vendemos, filho. Que tal uma salsaparrilha?

— Parece-me bem. — E era verdade. Tinha a garganta seca e a cabeça a arder. Parecia estar com febre.

— De cinco ou de dez?

— Desculpe?

— A salsaparrilha. De cinco ou de dez cêntimos?

— Ah! De dez, acho eu.

— Acho que acha bem. — Abriu uma arca e tirou uma caneca gelada aproximadamente do tamanho de um jarro de limonada. Encheu-o de uma torneira e senti o cheiro sumptuoso e intenso da bebida. Frank retirou a espuma com o cabo de uma colher de pau, depois encheu a caneca até cima e depositou-a no balcão. — Aqui tem. Com o jornal são dezoito cêntimos. Mais um cêntimo para o governador.

Entreguei-lhe um dos dólares antigos de Al e Frank 1.0 deu-me o troco.

Bebi um gole por entre a espuma do cimo e fiquei boquiaberto. Era... uma bebida completa. Deliciosa em todos os sentidos. Não consigo exprimi-lo melhor do que isto. Este mundo desaparecido há cinquenta anos cheirava pior do que eu jamais teria imaginado, mas sabia infinitamente melhor.

— Que maravilha — disse eu.

— Sim? Ainda bem que gosta. O senhor não é daqui, pois não?

— Não.

— De fora do estado?

— Do Wisconsin — respondi. Não era de todo mentira; a minha família vivera em Madison até eu fazer onze anos, quando o meu pai arranjara trabalho como professor de Inglês na Universidade do Maine. Eu andara a deambular pelo estado desde então.

— Bem, escolheu a melhor altura para vir — disse Anicetti. — A maioria dos veraneantes já partiu, e assim que isso acontece os preços baixam. O que está a beber, por exemplo. Depois do Labor Day, uma salsaparrilha de dez cêntimos só custa um décimo de dólar.

A campainha sobre a porta tilintou; as tábuas do chão rangeram. Era um som agradável. Da última vez que me aventurara a entrar naquela loja, na esperança de encontrar um antiácido (apanhei uma desilusão), tinham gemido.

Um rapaz com cerca de dezassete anos esgueirou-se para trás do balcão. Tinha o cabelo muito curto, quase como um militar. As suas semelhanças com o homem que me atendera eram inconfundíveis, e percebi que aquele era o meu Frank Anicetti. O homem que retirara a espuma da minha salsaparrilha era o pai. Frank 2.0 nem sequer olhou para mim; para ele, eu era apenas mais um cliente.

— O Titus já começou a trabalhar no camião — disse ele ao pai. — Diz que está pronto por volta das cinco.

— Isso é ótimo — disse Anicetti Sénior, e acendeu um cigarro. Naquele momento reparei que o balcão de mármore estava cheio de pequenos cinzeiros de cerâmica. Escrito de lado num podia ler-se WINSTON SABE BEM, COMO UM CIGARRO DEVE SABER! Voltando-se de novo para mim, perguntou: — Quer uma bola de baunilha na sua bebida? Por conta da casa. Gostamos de tratar bem os turistas, em especial quando aparecem no fim da estação.

— Obrigado, mas está bem assim — respondi, e era verdade. Fosse mais doce e a minha cabeça explodiria. Além disso, era forte, como beber um café gaseificado.

O rapaz dirigiu-me um sorriso tão doce como o líquido na caneca gelada; não havia ali nenhum do divertido desdém que sentira emanar do aspirante a Elvis lá fora.

— Lemos uma história nas aulas — disse o rapaz — em que os locais comiam os turistas que os visitavam fora da temporada.

— Frankie, isso é coisa que se diga a um visitante? — repreendeu o senhor Anicetti. No entanto, sorria ao dizer aquilo.

— Não faz mal — retorqui. — Eu próprio já dei essa história. É da Shirley Jackson, não é? «Gente do Verão.»

— Essa mesmo — confirmou Frank. — Não a percebi muito bem, mas gostei.

Bebi outro gole da minha salsaparrilha e quando a pousei no balcão de mármore (onde pousou com um belo som), não fiquei muito surpreendido ao ver que a caneca estava quase vazia. Podia viciar-me nisto, pensei. É mil vezes melhor do que o Moxie.

O mais velho dos Anicettis soprou um penacho de fumo para o teto, onde uma ventoinha o dispersou com as suas pás azuis.

— Dá aulas no Wisconsin, senhor...?

— Epping — respondi. Fora apanhado tão desprevenido que nem conseguira pensar em dar um nome falso. — Por acaso dou, mas este é o meu ano sabático.

— Isso quer dizer que ele tirou um ano de férias — explicou Frank.

— Eu sei o que quer dizer — retorquiu Anicetti.

Tentou parecer irritado, mas não foi bem-sucedido. Decidi que gostava tanto daqueles dois como da salsaparrilha. Gostava até do aspirante a rufia adolescente lá fora, ainda que apenas porque ele não sabia que já era um estereótipo. Havia ali uma certa sensação de segurança, uma sensação de, não sei, predeterminação. Era sem dúvida falsa, aquele mundo era tão perigoso como qualquer outro, mas eu sabia uma coisa que, antes dessa tarde, julgara estar apenas reservada a Deus: sabia que o rapaz sorridente que gostara da história de Shirley Jackson (embora não a tivesse percebido) ia sobreviver a esse dia e a mais de cinquenta anos de dias vindouros. Não ia morrer num acidente de viação, nem sofrer um ataque cardíaco, nem contrair cancro do pulmão por respirar o fumo em segunda mão do pai. Frank Anicetti viveria.

Olhei para o relógio da parede (COMECE O DIA COM UM SORRISO, lia-se no mostrador, BEBA CAFÉ CHEER-UP). Marcava 12h22. A hora não me dizia nada, mas fingi sobressaltar-me. Bebi o resto da salsaparrilha e levantei-me.

— Tenho de ir andando se quiser chegar a horas a Castle Rock para encontrar os meus amigos.

— Bom, vá devagar pela 117 — aconselhou Anicetti. — É uma estrada traiçoeira.

— Assim farei — respondi. — Obrigado. Rapaz, a respeito dessa história da Shirley Jackson...

— Sim, senhor?

Senhor, ainda. E dito sem qualquer sarcasmo. Eu começava a achar que 1958 fora um bom ano. Tirando o fedor da fábrica têxtil e do fumo dos cigarros, claro.

— Não há nada para perceber.

— Não? Não é o que diz o senhor Marchant.

— Com o devido respeito, diz ao senhor Marchant que o Jake Epping declarou que às vezes um charuto é apenas uma coisa que se fuma e que às vezes uma história é apenas uma história.

Ele riu-se.

— Assim farei! Tenho aula com ele amanhã de manhã!

— Ótimo. — Inclinei a cabeça na direção do pai, desejando poder contar-lhe que, graças ao Moxie, a sua loja iria permanecer na esquina da Main Street com a Antiga Estrada de Lewiston muito tempo depois da sua morte. — Obrigado pela salsaparrilha.

— Volte quando quiser, amigo. Estou a pensar em baixar o preço da grande.

— Para um décimo de dólar?

Sorriu. Tal como o filho, exibia um sorriso natural e aberto.

— Acho que começamos a entender-nos!

A campainha soou. Entraram três mulheres. Não vestiam calças, mas sim vestidos que lhes davam pela barriga das pernas. E chapéus! Duas tinham pequenos véus de gaze branca. Começaram a revolver os caixotes da fruta, em busca da melhor peça. Eu comecei a afastar- -me do balcão, mas depois lembrei-me de uma coisa e voltei atrás.

— Sabe dizer-me o que é a frente verde? Pai e filho trocaram um olhar divertido que me fez pensar numa velha anedota. Um turista de Chicago ao volante de um luxuoso modelo desportivo encosta o carro numa quinta no meio do campo. O velho agricultor está sentado no alpendre, a fumar um cachimbo feito com sabugo de milho. O turista inclina-se pela janela do Jaguar e pergunta: «Ei, velhote, sabe dizer-me como chego a East Machias?» O velho agricultor puxa duas baforadas do cachimbo com ar pensativo, e então responde: «Não se mexa nem um milímetro.»

— O senhor não é de cá, pois não? — perguntou Frank. Não tinha um sotaque tão cerrado como o do pai. Provavelmente vê mais televisão, pensei. Não há nada como a televisão para suavizar um sotaque regional.

— Não — confirmei.

— Tem graça, porque me pareceu ter ouvido uma certa cadência ianque.

— É a cadência do dialeto peninsular — expliquei. — Quero dizer, da Península Superior.

Só que — raios! — isso ficava no Michigan.

No entanto, nenhum dos dois parecia sabê-lo. De facto, o jovem Frank virou-se e começou a lavar a louça. À mão, reparei.

— A frente verde é a loja de bebidas — explicou Anicetti. — Mesmo do outro lado da rua, se quiser comprar uma garrafa de qualquer coisa.

— Acho que fiquei satisfeito com a salsaparrilha — respondi. — Era só para saber. Um bom dia para os senhores!

— Igualmente, meu amigo. Volte a visitar-nos.

Ao passar pelo trio que examinava a fruta, murmurei: «Minhas senhoras.» E nesse momento desejei ter um chapéu para levantar. Um chapéu de feltro, talvez.

Como os que se veem nos filmes antigos.

6

O aspirante a rufia deixara o seu posto e eu pensei em subir a Main Street para ver o que mais tinha mudado, mas o meu propósito durou um segundo. Não fazia sentido tentar a sorte. E se alguém me fizesse perguntas sobre a minha roupa? O meu blusão e calças passariam mais ou menos despercebidos, achava eu, mas não tinha a certeza absoluta. Já para não falar do cabelo, que me chegava ao colarinho. Na minha época isso era perfeitamente adequado para um professor do ensino secundário — até conservador —, mas poderia atrair olhares numa década em que rapar a nuca era considerado uma parte normal do serviço de barbearia e onde as patilhas estavam reservadas aos rockabillies, como aquele que me chamara «velhote». Claro que eu podia dizer que era turista, que no Wisconsin todos os homens usavam o cabelo um pouco comprido, que era a última moda, mas o cabelo e a roupa — essa sensação de dar nas vistas, como uma espécie de alienígena num disfarce humano imperfeito — eram apenas uma parte do problema.

Acima de tudo, sentia-me um pouco perturbado. Não é que estivesse mentalmente instável, pois creio que um cérebro humano moderadamente equilibrado pode absorver uma grande quantidade de estranheza antes de se ir abaixo, mas alterado, sim. Continuava a pensar nas senhoras de vestidos compridos e chapéus, senhoras que teriam vergonha de mostrar sequer a alça de um sutiã em público. E no sabor da salsaparrilha. Que sabor tão robusto.

Do outro lado da rua havia uma loja com uma montra modesta onde se liam as palavras VENDA DE ÁLCOOL gravadas em relevo no vidro. E sim, a fachada era verde-clara. Lá dentro reconheci o meu amigo do edifício de secagem. O comprido sobretudo preto pendia-lhe largo dos ombros; tirara o chapéu e tinha o cabelo espetado como o de uma personagem da banda desenhada que tivesse inserido o Dedo A na Tomada B. Gesticulava com as duas mãos ao falar com o empregado, e vi o seu valioso cartão amarelo numa delas. Calculei que segurava o meio dólar de Al Templeton na outra. O empregado, que envergava uma bata branca curta parecida com a usada pelo Doutor Moxie no desfile anual, não parecia especialmente impressionado.

Fui até à esquina, esperei que os carros passassem e atravessei a Antiga Estrada de Lewiston até à Worumbo. Dois homens atravessavam o pátio empurrando um carrinho carregado de fardos de tecido, fumando e rindo. Perguntei a mim mesmo se teriam ideia do que aquela combinação de fumo de tabaco e poluição da fábrica estava a fazer às suas entranhas, e calculei que não. Provavelmente isso era uma vantagem, embora se tratasse mais de uma pergunta para um professor de Filosofia do que para um tipo que ganhava a vida a expor adolescentes de dezasseis anos às maravilhas de Shakespeare, Steinbeck e Shirley Jackson.

Quando entraram na fábrica, fazendo rolar o carrinho por entre as maxilas de metal oxidado de portas com uma altura equivalente a três andares, cheguei à corrente que tinha pendurado o cartaz a dizer PROIBIDA A ENTRADA. Forcei-me a não andar demasiado depressa e a não olhar em volta, a evitar fazer qualquer coisa que pudesse chamar a atenção sobre mim, mas era difícil. Agora que me encontrava quase no local por onde tinha chegado, a vontade de me apressar era quase irresistível. Sentia a boca seca, e a salsaparrilha que bebera borbulhava-me no estômago. E se não conseguisse regressar? E se a marca que deixara a assinalar o local tivesse desaparecido? E se ainda lá estivesse, mas os degraus invisíveis tivessem desaparecido?

Calma, disse a mim próprio. Calma.

Não consegui resistir a uma rápida inspeção antes de me agachar para passar sob a corrente, mas o pátio estava deserto. Algures ao longe, como um som proveniente de um sonho, chegou-me de novo aquele ténue chufe-chufe do comboio. Fez-me recordar um outro verso de outra canção: Este comboio tem a melancolia das vias a desaparecerem.

Avancei até ao flanco verde do edifício de secagem, com o coração a bater forte e alto no peito. O papel com o bocado de cimento em cima continuava ali; até agora tudo bem. Dei-lhe um pontapé com cuidado, pensando: Por favor, meu Deus, que isto funcione, por favor, meu Deus, deixa-me voltar.

A ponta do sapato atingiu o bocado de cimento — vi-o rebolar —, mas também chocou contra o cimo do degrau. Estas duas ações simultâneas eram em si mesmas impossíveis, mas ambas aconteceram. Lancei outra olhadela em volta, embora ninguém no pátio conseguisse ver-me naquele corredor estreito, a menos que passasse por acaso mesmo em frente, de um lado ou de outro. Não vi ninguém.

Subi um degrau. O meu pé sentia-o, embora os olhos me dissessem que continuava no pavimento gretado do pátio. A salsaparrilha agitou-se de novo no meu estômago. Fechei os olhos e experimentei uma certa melhoria. Dei o segundo passo, depois o terceiro. Eram baixos, aqueles degraus. Quando pisei o quarto, o calor estival desapareceu da minha nuca e a obscuridade atrás das minhas pálpebras tornou-se mais intensa. Tentei subir o quinto degrau, só que não havia um quinto degrau. Em vez disso, bati com a cabeça no teto baixo da despensa. Uma mão agarrou-me o antebraço e quase gritei.

— Descontrai-te — disse Al. — Descontrai-te, Jake. Já voltaste.

7

Ele ofereceu-me um café, mas abanei a cabeça; o meu estômago ainda estava às voltas. Encheu uma chávena para ele, e voltámos ao compartimento onde tivera início aquela viagem de loucos. A minha carteira, o telemóvel e o dinheiro estavam amontoados no centro da mesa. Al sentou-se com um arquejo de dor e alívio. Parecia um pouco menos tenso e um pouco mais descontraído.

— Bem — começou. — Já foste e voltaste. O que achas?

— Al, não sei o que pensar. Estou profundamente abalado. Encontraste isto por acaso?

— Completamente. Menos de um mês depois de me instalar aqui. Ainda devia ter o pó da Pine Street nas botas. Da primeira vez, caí mesmo por aqueles degraus, como a Alice na toca do coelho. Julguei que enlouquecera.

Podia imaginar. Eu pelo menos tivera uma certa preparação, ainda que fraca. E realmente, haveria algum método adequado para preparar alguém para uma viagem no tempo?

— Quanto tempo estive fora?

— Dois minutos. Já te disse, dura sempre dois minutos. Independentemente do tempo que passares lá. — Tossiu, cuspiu para um novo punhado de guardanapos, dobrou-os e guardou-os no bolso. — E quando desces os degraus, são sempre 11h58 da manhã do dia 9 de setembro de 1958. Cada viagem é a primeira. Onde foste?

— À Kennebec. Bebi uma salsaparrilha. Fantástica.

— Sim, as coisas sabem melhor lá. Menos conservantes, ou o que era.

— Sabes quem é o Frank Anicetti? Vi-o quando era um rapaz de dezassete anos.

De algum modo, apesar de tudo, esperava que Al se risse, mas ele considerou aquilo normal.

— Claro. Já vi o Frank muitas vezes, mas ele só me vê uma vez... no passado, quero eu dizer. Para o Frank, cada vez é a primeira vez. Ele entra na loja, não é? Vem da Chevron. «O Titus já começou a trabalhar no camião», diz ele ao pai. «Diz que está pronto por volta das cinco.» Já ouvi isso umas cinquenta vezes, pelo menos. Não entro na loja sempre que lá vou, mas quando o faço, é o que ele diz. Depois chegam as mulheres e põem-se a escolher fruta. A senhora Symonds e as amigas. É como ver o mesmo filme uma e outra vez.

— Cada vez é a primeira vez — repeti lentamente, espaçando as palavras. Tentando encontrar ali sentido.

— Certo.

— E cada pessoa que vemos encontra-se connosco pela primeira vez, independentemente das vezes que a encontrámos antes.

— Certo.

— Poderia voltar e ter a mesma conversa com o Frank e o pai e eles não o saberiam.

— Acertaste de novo. Ou poderias mudar alguma coisa, pedir um gelado de banana em vez de um refrigerante, por exemplo, e o resto da conversa tomaria outro rumo. O único que parece desconfiar de alguma coisa é o Homem do Cartão Amarelo, mas está demasiado bêbedo para saber o que sente. Se eu estiver certo, claro, e ele sentir alguma coisa. Se sente, é porque está sentado perto da toca de coelho. Ou o que for. Talvez emane uma espécie de campo de forças e ele...

Então desatou a tossir e não conseguiu continuar. Vê-lo dobrado, agarrado ao flanco e a tentar ocultar-me a dor que sentia, e como o rasgava por dentro, era já de si doloroso. Ele não pode continuar assim, pensei. Em menos de uma semana estará no hospital, e provavelmente é apenas uma questão de dias. E não fora por essa razão que me telefonara? Porque tinha de transmitir a alguém o seu incrível segredo antes que o cancro lhe fechasse os lábios para sempre?

— Achei que conseguia pôr-te a par de tudo esta tarde, mas é impossível — disse Al quando recuperou o domínio de si mesmo. — Tenho de ir para casa, tomar alguns medicamentos, e deitar-me. Nunca em toda a minha vida tomei alguma coisa mais forte que uma aspirina, e aquela porcaria do OxyContin apaga-me como um fósforo ao vento. Vou dormir seis horas e depois sinto-me melhor durante algum tempo. Um pouco mais forte. Podes passar por minha casa pelas nove e meia?

— Podia se soubesse onde vives — respondi.

— Numa casinha na Vining Street. O número 19. Procura o gnomo junto ao alpendre. Não há que enganar. Está a agitar uma bandeira.

— De que iremos falar, Al? Quero dizer... já me mostraste. Acredito em ti.

Era verdade, mas... por quanto tempo? A minha breve visita a 1958 já estava a adquirir a evanescente textura de um sonho. Dali a algumas horas (ou dias) seria provavelmente capaz de me convencer de que o tinha sonhado.

— Temos muito de que falar, companheiro. Apareces lá? — Não falou do «último pedido de um moribundo», mas li-o nos seus olhos.

— Está bem. Queres que te leve a casa?

Os seus olhos brilharam.

— Tenho a minha camioneta, e são apenas cinco quarteirões. Consigo guiar até lá.

— Claro que sim — disse eu, esperando ter soado mais convencido do que me sentia. Levantei-me e comecei a guardar as minhas coisas nos bolsos. Encontrei o maço de notas que Al me entregara e tirei-o. Agora percebia as mudanças na nota de cinco. Provavelmente havia também diferenças nas outras.

Estendi-lhe as notas e ele abanou a cabeça.

— Não, fica com ele. Tenho muito.

No entanto, pousei-o na mesa.

— Se cada vez é a primeira vez, como é que ficas com o dinheiro que trouxeste? Porque não se esfuma em cada viagem?

— Não faço ideia, companheiro. Já te disse, há muitas coisas que desconheço. Existem regras, e percebi algumas, mas não muitas. — O seu rosto iluminou-se num sorriso ténue mas genuinamente divertido. — Trouxeste contigo a salsaparrilha, não? Ainda anda a chocalhar-te na barriga, não anda?

Por acaso, andava.

— Bom, aí tens. Vejo-te esta noite, Jake. Já terei descansado e podemos falar disto.

— Só mais uma pergunta.

Agitou uma mão na minha direção, como que a dizer «força». Reparei que as suas unhas, que mantivera sempre escrupulosamente limpas, estavam amareladas e lascadas. Outro mau sinal. Não tão revelador como ter perdido os quinze quilos, mas igualmente mau. O meu pai costumava dizer que se pode deduzir muito acerca da saúde de uma pessoa pelo estado das suas unhas.

— O famoso Fatburger.

— Que tem? — perguntou, mas detetei-lhe um ligeiro sorriso nos lábios.

— Podes vender barato porque compras barato, não é verdade?

— Carne picada do Red & White — declarou. — Um dólar e dezanove o quilo. Vou lá todas as semanas. Ou ia até à minha última aventura, que me levou até muito longe de Falls. Faço negócio com o senhor Warren, o talhante. Se lhe peço cinco quilos de carne picada, ele responde: «Vai já.» Se lhe peço seis ou sete, diz: «Tem de me dar um minuto para lha picar. Vai ter alguma reunião de família?»

— Sempre a mesma coisa.

— Sim.

— Porque é sempre a primeira vez.

— Certo. É como a história dos pães e dos peixes na Bíblia, se pensarmos bem. Compro a mesma carne picada semana após semana. Servi-a a centenas ou milhares de pessoas, apesar dos estúpidos rumores da carne de gato, e renova-se sempre.

— Compras a mesma carne uma e outra vez — repeti, tentando assimilar aquilo.

— A mesma carne, à mesma hora, do mesmo talhante, que diz sempre a mesma coisa, a não ser que eu diga algo diferente. Admito, companheiro, que já me passou pela cabeça a ideia de me aproximar e dizer: «Como vai isso, senhor Warren, seu careca de uma figa? Tem fodido muitas galinhas ultimamente?» Ele nunca se lembraria. Mas nunca o fiz, porque ele é um bom homem. A maior parte das pessoas que conheci naquela altura são boas pessoas.

Ao dizer isto pareceu um pouco nostálgico.

— Não percebo como podes comprar carne lá, servi-la aqui... e depois tornar a comprá-la.

— Junta-te ao clube, companheiro. Agradeço-te muito ainda aqui estares; poderia ter-te perdido. De facto, não precisavas de ter atendido o telefone quando te liguei para a escola.

Uma parte de mim desejava não o ter feito, mas não o disse. Provavelmente não era preciso. Al estava doente, mas não cego.

— Vem lá a casa esta noite. Vou dizer-te o que tenho em mente, e depois podes fazer o que achares melhor. Mas terás de decidir depressa, porque o tempo escasseia. É um pouco irónico, tendo em conta onde desembocam os degraus invisíveis da minha despensa, não achas?

Mais devagar que nunca, repeti:

— Cada... vez... é... a... primeira vez.

Al voltou a sorrir.

— Acho que já percebeste essa parte. Vejo-te logo à noite, está bem? Vining Street, número 19. Procura o gnomo com a bandeira.

8

Saí do Al’s Diner pelas três e meia. As seis horas entre esse momento e as nove e meia não foram tão estranhas como visitar Lisbon Falls cinquenta e três anos antes, mas quase. O tempo parecia simultaneamente arrastar-se e acelerar. Fui de carro até à casa que estava a pagar em Sabattus (Christy e eu tínhamos vendido a que possuíamos em Falls e dividido os lucros quando nos divorciámos). Pensei em fazer uma sesta, mas é claro que não consegui dormir. Depois de vinte minutos deitado de barriga para cima, teso que nem um carapau, com os olhos no teto, fui à casa de banho urinar. Enquanto via a urina salpicar a sanita, pensei: Isto é salsaparrilha processada em 1958. No entanto, ao mesmo tempo pensava que era tudo mentira, que Al me tinha de alguma forma hipnotizado.

Era aquela coisa do desdobramento, sabem?

Tentei acabar de ler os últimos trabalhos da minha turma, e não fiquei admirado ao ver que não era capaz de fazê-lo. Brandir a temível caneta vermelha do senhor Epping? Exprimir juízos críticos? Apetecia-me rir. Nem sequer conseguia ligar as palavras. Portanto liguei a televisão e fiz zapping durante algum tempo. No TCM deparei com um filme antigo chamado O Rapaz do Descapotável. Dei por mim a olhar com tanta intensidade para carros antigos e adolescentes dominados pela angústia que acabei com dores de cabeça, de modo que a desliguei. Salteei carne e legumes, mas apesar de estar faminto não consegui comer. Ali sentado, a olhar para o prato, pensei em Al Templeton a servir os mesmos seis quilos de carne picada uma e outra vez, ano após ano. Era realmente como o milagre dos pães e dos peixes, e que importava se, devido aos preços baixos, circulassem rumores sobre carne de gato e de cão? Tendo em conta o que ele pagava pela carne, devia estar a conseguir um lucro absurdo em cada Fatburger que vendia.

Quando percebi que andava às voltas na cozinha — incapaz de dormir, incapaz de ler, incapaz de ver televisão, uma refeição perfeita deitada no lixo —, enfiei-me no carro e regressei à cidade. Faltavam quinze para as sete e na Main Street havia imensos lugares onde estacionar. Parei em frente à Kennebec e fiquei sentado ao volante, a contemplar uma relíquia com a tinta a lascar que outrora fora uma loja próspera numa cidade pequena. Já fechada àquela hora, parecia pronta para a bola de demolição. O único sinal de vida humana eram uns cartazes na montra empoeirada (BEBA MOXIE PELA SUA SAÚDE!, dizia o maior), tão antiquados que podiam estar ali há anos.

A sombra da loja estendia-se pela rua até tocar no meu carro. À minha direita, onde estivera a loja de bebidas, erguia-se agora um edifício de tijolo que albergava uma sucursal do Key Bank. Quem precisava de uma frente verde quando se podia ir a qualquer mercearia do estado e sair alegremente com uma garrafa de Jack ou de licor de café? E nada de sacos de papel; nestes tempos modernos usamos plástico, filho. Dura mil anos. E por falar em lojas, nunca ouvira falar de uma chamada Red & White. Para comprar comida em Falls ia-se ao supermercado IGA a um quarteirão de distância pela 196. Ficava mesmo em frente à velha estação dos comboios. Que era agora um misto de loja de camisolas e estúdio de tatuagens.

Fosse como fosse, naquele momento o passado parecia estar muito próximo; talvez se devesse ao tom dourado da última luz estival, que sempre me parecera ligeiramente sobrenatural. Era como se 1958 ainda ali permanecesse, oculto apenas sob uma fina película de anos intermédios. E se eu não imaginara o que me acontecera naquela tarde, isso era verdade.

Ele quer que eu faça alguma coisa. Alguma coisa que ele próprio teria feito se o cancro não o tivesse detido. Disse que voltou e ficou lá quatro anos (pelo menos era o que eu julgava que ele dissera), mas quatro anos não foram suficientes.

Estaria eu disposto a voltar a descer aqueles degraus e a ficar quatro anos ou mais? Praticamente a fixar lá residência? Regressar dois minutos mais tarde... só que já na casa dos quarenta, com alguns brancos na cabeleira? Não conseguia imaginar-me a fazer isso, mas também não conseguia imaginar o que Al teria descoberto assim de tão importante. Sabia apenas que pedir-me quatro ou seis ou oito anos de vida era pedir demasiado, mesmo para um moribundo.

Ainda faltavam duas horas para ir ter com ele. Decidi voltar a casa e preparar outro jantar, e desta ver iria obrigar-me a comer. Depois, tentaria acabar de corrigir os trabalhos. Eu podia ser uma das poucas pessoas que tinham viajado no tempo — na verdade, talvez Al e eu fôssemos os únicos na história do mundo —, no entanto, os meus alunos de poesia continuavam à espera das suas notas.

No trajeto rumo à cidade não tinha ligado o rádio, mas liguei-o naquele momento. Tal como a minha televisão, recebe a programação de sondas espaciais operadas por computador que giram em torno da Terra a uma altitude de trinta e cinco mil quilómetros, uma ideia que com certeza teria sido recebida pelo adolescente Frank Anicetti com um arregalar de olhos (embora provavelmente sem excessiva incredulidade). Sintonizei uma estação de música dos anos sessenta e apanhei Danny & the Juniors a cantarem «Rock’n’Roll is Here to Stay», três ou quatro vozes harmoniosas e rápidas a cantarem sobre um piano martelante. Seguiu-se Little Richard a gritar «Lucille» a plenos pulmões, e depois Ernie K-Doe mais ou menos a gemer «Mother-in-Law»: Ela acha que o seu conselho é uma contribuição, mas caso se fosse embora essa seria a solução. Tudo parecia tão melodioso e fresco como as laranjas que a senhora Symonds e as amigas tinham estado a escolher nessa mesma tarde.

Parecia novo.

Será que eu queria passar vários anos no passado? Não. No entanto, sim, queria voltar. Ainda que fosse apenas para ouvir como soava Little Richard quando ainda estava na crista da onda. Ou para entrar num avião da Trans World Airlines sem ter de descalçar os sapatos, ser apalpado e passar por um detetor de metais.

Além disso, apetecia-me outra salsaparrilha.