CAPÍTULO 1

Até àquele dia, Sal Clitheroe nunca tinha ouvido o marido berrar. Depois desse dia, nunca mais o ouviu a fazê‑lo, exceto em sonhos.

Era meio‑dia quando Sal chegou a Brook Field. Ela sabia a hora pela qualidade da luz que brilhava tenuemente através das nuvens cinzento‑pérola que cobriam o céu. O campo era composto por quatro acres planos de lamaçal com um ribeiro que corria rápido ao longo de uma extrema e uma colina baixa na extremidade a sul. O dia estava frio e seco, mas tinha chovido durante uma semana, pelo que, enquanto ela atravessava as poças, a lama viscosa tentava arrancar‑lhe os sapatos artesanais. Não era um caminho fácil de percorrer, mas ela era uma mulher grande e forte e não se cansava facilmente.

Quatro homens curvados estavam a apanhar uma colheita de inverno de nabos, arrancando as raízes castanhas e nodosas e empilhando‑as em cestas largas e pouco profundas. Quando uma cesta estava carregada, um homem levava‑a para o sopé da colina e despejava os nabos para dentro de uma robusta carroça de carvalho com quatro rodas. Sal percebeu que a tarefa estava praticamente terminada, porque a parte do campo em que se encontravam já quase não tinha nabos e os homens estavam a trabalhar perto da colina.

Vestiam‑se todos da mesma maneira. Usavam camisas sem colarinho, calções pelo joelho fiados em casa pelas suas mulheres e coletes comprados em segunda mão ou descartados por homens abastados. Os coletes nunca se gastavam. O pai de Sal tivera um muito elegante, trespassado, com riscas vermelhas e castanhas e bainhas entrançadas, que algum janota da cidade tinha deitado fora. Ela nunca o vira com outro colete, e ele tinha sido enterrado com ele vestido.

Nos pés, os trabalhadores agrícolas traziam botas em segunda mão, com intermináveis consertos. Cada homem tinha um chapéu e todos eram diferentes: um gorro de pele de coelho, um chapéu de palha de aba larga, um chapéu alto de feltro e um tricorne que provavelmente pertencera a um oficial da marinha.

Sal reconheceu o gorro de pele. Pertencia ao seu marido, Harry. Ela fizera‑o com as próprias mãos, tendo apanhado o coelho, que depois matou com uma pedra, esfolou e cozinhou numa panela com uma cebola. Mas teria reconhecido Harry sem o chapéu, mesmo à distância, pela barba ruiva. Harry era um homem esguio, mas seco e enganadoramente forte: carregava a cesta com tantos nabos como os homens maiores. Só de olhar para aquele corpo magro e rijo ao fundo de um campo lamacento, Sal sentiu um pequeno brilho de desejo dentro de si, algures entre o prazer e a antecipação, como quando estamos na rua, ao frio, e entramos em casa, sentindo o cheiro quente de uma lareira acesa.

Enquanto atravessava o campo, começou a ouvir as vozes dos homens. A cada poucos minutos, um chamava o outro e havia uma breve troca de palavras que terminava em gargalhadas. Ela não conseguia perceber as palavras, mas facilmente adivinhava o tipo de coisas que estariam a dizer. Seria a galhofa simuladamente agressiva dos homens que trabalhavam no campo: insultos joviais e vulgaridade divertida, brincadeiras que aliviavam a monotonia da tarefa dura e repetitiva.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

Um quinto homem observava‑os, de pé junto à carroça, com um chicote comprido e fino na mão. Estava mais bem vestido, com uma casaca azul e reluzentes botas pretas até ao joelho. Chamava‑se Will Riddick, tinha trinta anos e era o filho mais velho do fidalgo de Badford. O campo pertencia ao seu pai, tal como o cavalo e a carroça. Will tinha o cabelo preto e espesso cortado à altura do queixo e parecia pouco satisfeito. Sal podia calcular porquê. Supervisionar a colheita dos nabos não era trabalho seu, e ele considerava‑se muito acima daquele tipo de atividade, mas o administrador das propriedades do fidalgo tinha adoecido, e Sal calculou que Will tivesse sido chamado para o substituir, a contragosto.

Ao lado de Sal, o seu filho tropeçava, descalço, no terreno lamacento, esforçando‑se por acompanhá‑la, até que ela se virou, baixou‑se e pegou nele sem esforço; depois, continuou a andar com ele num braço e a cabeça no ombro dela. Sal abraçou o seu corpo magro e quente talvez com mais força do seria necessária, só porque o amava tanto.

Teria gostado de ter mais filhos, mas tinha sofrido dois abortos espontâneos e parido um nado‑morto. Deixara de ter esperança e começara a dizer a si própria que, pobres como eram, um filho bastava. Era dedicada ao seu filho, talvez demasiado, porque os filhos eram frequentemente levados pela doença ou por um acidente, e ela sabia que perdê‑lo lhe partiria o coração.

Ela dera‑lhe o nome Christopher, mas quando ele começou a aprender a falar, saía‑lhe algo semelhante a Kit, e assim era como se chamava agora. Tinha seis anos e era pequeno para a idade. Sal esperava que ele crescesse e se tornasse como Harry, magro, mas forte. Tinha seguramente herdado o cabelo ruivo do pai.

Estava na altura da refeição do meio‑dia e Sal levava um cesto com queijo, pão e três maçãs murchas. Atrás dela, vinha outra esposa da aldeia, Annie Mann, uma mulher vigorosa da idade de Sal; e mais duas com a mesma missão aproximavam‑se da direção oposta, descendo a colina, com cestos nos braços e crianças a reboque. Os homens pararam de trabalhar, gratos pela pausa, limparam as mãos enlameadas nos calções e dirigiram‑se para o ribeiro, onde se podiam sentar num leito de erva.

Sal alcançou o carreiro e pousou Kit com suavidade.

Will Riddick tirou um relógio do bolso do colete ao qual estava preso com uma corrente e consultou‑o de sobrolho franzido.

— Ainda não é meio‑dia — disse ele.

Ele estava a mentir, Sal tinha a certeza, mas mais ninguém tinha relógio.

— Continuem a trabalhar, homens — ordenou. Sal não ficou surpreendida. Will tinha um laivo de maldade. O seu pai, o fidalgo, podia ser insensível, mas Will era pior. — Acabem o trabalho e depois podem almoçar — disse ele.

Havia uma nota de desdém na forma como ele disse «podem almoçar» como se houvesse algo desprezível nas refeições dos trabalhadores. O próprio Will iria regressar ao solar para comer carne assada e batatas, pensou ela, e provavelmente um jarro de cerveja forte para acompanhar.

Três homens curvaram‑se e voltaram ao seu trabalho, mas o quarto, não. Era Ike Clitheroe, o tio de Harry, um homem de barba grisalha com cerca de cinquenta anos. Num tom brando, disse:

— É melhor não sobrecarregar a carroça, senhor Riddick.

— Deixa que seja eu a julgar isso.

— Peço desculpa — insistiu Ike —, mas aquele travão está quase gasto.

— Não há nada errado com a maldita carroça — retorquiu Will. — Vocês só querem parar de trabalhar mais cedo. É sempre a mesma coisa.

O marido de Sal interveio. Harry estava sempre pronto a juntar‑se a uma discussão.

— Devia dar ouvidos ao tio Ike — disse ele a Will. — Caso contrário, pode vir a perder a carroça, o cavalo e o raio dos nabos também.

Os outros homens riram‑se. Mas nunca era sensato fazer troça da nobreza, pelo que Will franziu o sobrolho e disse:

— Cala a tua boca insolente, Harry Clitheroe.

Sal sentiu a mãozinha de Kit aproximar‑se da sua. O pai estava a envolver‑se num conflito e, apesar de jovem, Kit pressentiu o perigo.

A insolência era a fraqueza de Harry. Era um homem honesto e trabalhador, mas não acreditava que a pequena nobreza fosse melhor do que ele. Sal adorava‑o pelo seu orgulho e pelo seu pensamento independente, mas os patrões ressentiam‑se disso e ele metia‑se frequentemente em sarilhos por causa da sua insubordinação. No entanto, agora que já tinha dado a sua opinião, calou‑se e voltou ao trabalho.

As mulheres pousaram os cestos na margem do ribeiro. Sal e Annie foram ajudar os seus maridos a apanhar nabos, enquanto as outras duas mulheres, que eram mais velhas, se sentaram com os almoços.

O trabalho ficou concluído rapidamente. Nessa altura, tornou‑se óbvio que Will tinha cometido um erro ao deixar a carroça no sopé da colina. Devia tê‑la posicionado umas cinquenta jardas mais abaixo, para dar ao cavalo espaço para ganhar velocidade antes de enfrentar a encosta. Ele pensou por breves instantes e depois disse:

— Homens, empurrem a carroça por trás, para dar balanço ao cavalo.

Depois, sentou‑se na carroça, estalou o chicote e disse:

— Upa!

A égua cinzenta aguentou o esforço.

Os quatro trabalhadores puseram‑se atrás da carroça e empurraram‑na. Os pés escorregavam‑lhes no carreiro molhado. Os músculos dos ombros de Harry estavam retesados. Sal, que era tão forte como qualquer deles, juntou‑se aos homens. O pequeno Kit também, o que fez os homens sorrir.

As rodas mexeram‑se, a égua baixou a cabeça e inclinou‑se para os trilhos, o chicote estalou e a carroça moveu‑se. Os ajudantes recuaram e ficaram a vê‑la a subir a encosta. Mas a égua abrandou, e Will gritou:

— Continuem a empurrar!

Todos correram para a frente, puseram as mãos na parte de trás da carroça e voltaram a empurrar. Mais uma vez, a carroça ganhou velo‑ cidade. Durante algumas jardas, a égua correu bem, com os ombros fortes retesados debaixo do arnês de couro, mas não conseguiu manter o ritmo. Abrandou e depois tropeçou na lama escorregadia. Pareceu recuperar o equilíbrio, mas perdera o ímpeto, e a carroça deteve‑se.

Livro: "A Armadura de Luz"

Autor: Ken Follett

Editora: Editorial Presença

Data de Lançamento: 4 de outubro de 2023

Preço: € 26,90

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Will chicoteou o animal, e Sal e os homens empurraram com todas as suas forças, mas não conseguiram segurar a carroça, e as altas rodas de madeira começaram a girar lentamente para trás. Will puxou o manípulo do travão, depois todos ouviram um estalido bem alto, e Sal viu as duas metades de uma patilha de travão de madeira partida a voar da roda traseira esquerda. Depois, ouviu Ike dizer:

— Eu avisei o sacana, eu avisei‑o.

Empurraram o mais que puderam, mas foram obrigados a recuar, e Sal teve uma sensação sinistra de perigo iminente. A carroça ganhou velocidade em marcha‑atrás. Will gritou:

— Empurrem, seus cães preguiçosos!

Ike tirou as mãos da parte de trás da carroça e disse:

— Não vai aguentar! O cavalo voltou a escorregar e, desta feita, caiu. Partes do arnês de couro partiram‑se, e o animal tombou no chão e foi arrastado.

Will saltou do assento. A carroça, agora desgovernada, começou a rolar mais depressa. Sem sequer pensar, Sal pegou em Kit com um braço e saltou para o lado, afastando‑se do caminho das rodas. Ike gritou:

— Saiam todos do caminho!

Os homens dispersaram‑se no preciso instante em que a carroça guinou e se virou de lado. Sal viu Harry bater em Ike e os dois caíram. Ike tombou para o lado da via, mas Harry caiu no caminho da carroça, que aterrou com a borda da pesada plataforma de carvalho em cima da perna dele.

Foi nessa altura que ele berrou.

Sal ficou petrificada, com um medo frio a apertar‑lhe o coração. Ele estava ferido, gravemente ferido. Passou um instante em que todos ficaram a olhar, horrorizados. Os nabos da carroça rebolaram pelo chão e alguns caíram ao ribeiro. Harry gritou com voz rouca:

— Sal! Sal!

— Tirem‑lhe a carroça de cima, vamos! — gritou ela.

Todos puseram as mãos na carroça. Levantaram‑na de cima da perna de Harry, mas o processo foi dificultado pelas grandes rodas, e Sal percebeu que teriam de içá‑la pelos aros das rodas antes de conseguirem pô‑la na vertical.

— Vamos pôr os ombros por baixo! — gritou ela, e todos perceberam a sua intenção.

Mas a madeira era pesada e tinham de fazer força contra a inclinação ascendente da colina. Houve um momento terrível em que ela pensou que corriam o risco de deixar cair a carroça, que tombaria novamente e esmagaria Harry uma segunda vez.

— Vamos, força! — gritou ela.  — Todos juntos!

E todos disseram:

— Força!

E, de repente, a carroça inclinou‑se e ficou direita, ouvindo‑se o estrondo provocado pelas rodas do lado contrário a aterrarem no chão.

Foi então que Sal viu a perna de Harry e ficou horrorizada. Estava achatada da coxa à canela. Fragmentos de osso sobressaíam da pele, e os calções estavam empapados em sangue. Ele tinha os olhos fechados e saiu‑lhe um terrível gemido pelos lábios entreabertos. Ela ouviu o tio Ike dizer:

— Oh, meu Deus, poupa‑o.

Kit começou a chorar.

Sal também tinha vontade de chorar, mas dominou‑se: tinha de arranjar ajuda. Quem conseguiria correr depressa? Perscrutou o grupo, e o seu olhar fixou‑se em Annie.

— Vai à aldeia, Annie, o mais rápido que conseguires, e chama o Alec. — Alec Pollock era o barbeiro‑cirurgião. — Diz‑lhe para ir ter connosco a minha casa. O Alec saberá o que fazer.

— Tomem conta dos meus filhos — disse Annie, e pôs‑se a correr.

Sal ajoelhou‑se ao lado de Harry, com as pernas na lama. Ele abriu os olhos.

— Ajuda‑me, Sal — disse ele. — Ajuda‑me.

— Vou levar‑te para casa, meu amor — disse ela.

Sal pôs as mãos debaixo de Harry, mas quando tentou aguentar o peso e levantar‑lhe o corpo, ele voltou a berrar. Sal tirou as mãos, dizendo:

— Jesus, ajuda‑me.

Entretanto, ouviu Will dizer:

— Homens, comecem a pôr os nabos de volta na carroça. Vamos lá, acordem.

— Que alguém lhe feche a boca antes que eu a feche por ele — disse Sal baixinho.

— E o seu cavalo, senhor Riddick? — perguntou Ike. — Consegue levantar‑se?

Ele deu a volta à carroça para ver como estava a égua, distraindo Will, que deixou de prestar atenção a Harry. «Obrigada, tio Ike, por seres tão esperto», pensou Sal.

Ela virou‑se para o marido de Annie, Jimmy Mann, o dono do tricórnio.

— Vai à estância de madeiras, Jimmy — disse ela. — Pede‑lhes que façam rapidamente uma maca com duas ou três tábuas largas para conseguirmos transportar o Harry.

— Estou a caminho — disse Jimmy.

— Ajudem‑me a pôr este cavalo de pé — gritou Will.

— Ela nunca mais se vai levantar, senhor Riddick — contrapôs Ike.

Houve uma pausa e depois Will disse:

— Acho que és capaz de ter razão. — Porque não vai buscar uma arma? — sugeriu Ike. — Para acabar com o sofrimento do animal.

— Sim — disse Will, mas não parecia decidido, e Sal apercebeu‑se de que, por detrás da sua arrogância, ele estava chocado.

— Beba um pouco de brandy — sugeriu Ike —, se tiver o seu cantil consigo.

— Boa ideia.

Enquanto ele estava a beber, Ike disse:

— Aquele pobre rapaz com a perna esmagada bem que precisava de uma bebida. Talvez lhe alivie a dor.

Will não respondeu, mas, pouco depois, Ike voltou a dar a volta à carroça com um cantil de prata na mão. Ao mesmo tempo, Will afastava‑se rapidamente na direção oposta.

— Muito bem, Ike — murmurou Sal.

Ike entregou‑lhe o cantil de Will e ela encostou‑os aos lábios de Harry, deixando um fio escorrer para a boca dele. Ele tossiu, engoliu e abriu os olhos. Ela deu‑lhe mais e ele bebeu com avidez.

— Dá‑lhe o máximo possível — disse Ike. — Não sabemos o que é que o Alec vai ter de fazer.

Durante alguns instantes, Sal perguntou‑se o que Ike poderia querer dizer, até que percebeu que ele achava que a perna de Harry poderia ter de ser amputada.

— Oh, não — disse ela. — Por favor, meu Deus.

— Dá‑lhe só mais brandy.

O álcool devolveu um pouco de cor ao rosto de Harry. Num sussurro quase inaudível, ele disse:

— Dói, Sal, dói muito.

— O cirurgião está a caminho. — Foi tudo do que ela se lembrou de dizer. Estava exasperada com a sua própria impotência.

Enquanto esperavam, as mulheres alimentaram as crianças. Sal deu a Kit as maçãs do seu cesto. Os homens começaram a apanhar os nabos espalhados e a colocá‑los novamente na carroça. Era algo que teria de ser feito, mais cedo ou mais tarde.

Jimmy Mann regressou com uma porta de madeira equilibrada precariamente no ombro. Baixou‑a até ao chão com dificuldade, ofegante devido ao esforço de carregar o pesado objeto ao longo de meia milha.

— É para aquela casa nova que está a ser construída junto à fábrica — disse ele. — Pediram‑me para não a estragar.

Pousou a porta ao lado de Harry.

Agora, Harry tinha de ser içado para a maca improvisada, o que iria doer. Sal ajoelhou‑se ao lado da cabeça dele. O tio Ike deu um passo em frente para ajudar, mas ela afastou‑o. Ninguém mais se esforçaria tanto quanto ela para ser gentil. Ela agarrou os braços de Harry junto aos ombros e girou lentamente a parte de cima do corpo dele para 22 cima da porta. Ele não reagiu. Ela puxou‑o, uma polegada de cada vez, até que o tronco ficou todo apoiado na porta. Mas, por fim, teve de lhe deslocar as pernas. Ela pôs‑se por cima dele, com uma perna de cada lado, depois baixou‑se, agarrou‑lhe nas ancas e passou‑lhe as pernas para cima da porta num movimento rápido.

Ele berrou pela terceira vez.

O berro diminuiu e transformou‑se num soluço.

— Vamos levantá‑lo — disse ela.

Ajoelhou‑se num dos cantos da porta e três dos homens ficaram com os outros cantos.

— Devagarinho — disse ela. — Mantenham‑no nivelado.

Agarraram na madeira e levantaram‑na gradualmente, passando para baixo dela num movimento o mais rápido possível e depois equilibraram‑na nos ombros.

— Preparados? — perguntou ela. — Tentem manter o ritmo. Um, dois, três, vamos.

Atravessaram o campo. Sal olhou para trás e viu Kit, atordoado e perturbado, mas seguindo‑a de perto e carregando o cesto dela. Os dois filhos pequenos de Annie seguiam atrás do pai, Jimmy, que carregava o canto posterior esquerdo da maca.

Badford era uma aldeia grande, com cerca de mil habitantes ou mais, e a casa de Sal ficava a uma milha. Ia ser uma caminhada longa e lenta, mas ela conhecia o caminho tão bem que provavelmente poderia tê‑lo feito de olhos fechados. Vivera aqui toda a sua vida, e os seus pais jaziam no cemitério ao lado da Igreja de São Mateus. O único outro sítio que conhecia era Kingsbridge, e a última vez que lá tinha estado fora há dez anos. Mas Badford tinha mudado durante a sua vida e, atualmente, não era tão fácil percorrer a aldeia de uma ponta à outra. As novas ideias tinham transformado a agricultura, e havia agora cercas e sebes no caminho. O grupo que transportava Harry teve de passar por portões e caminhos sinuosos entre reinos privados.

A eles, juntaram‑se homens que trabalhavam noutros campos e depois mulheres que saíram das suas casas para ver o que se passava, além de crianças pequenas e cães, todos os quais os seguiram, conversando entre si, falando sobre o pobre Harry e o seu terrível ferimento.

Enquanto Sal caminhava, agora já com dores nos ombros por causa do peso de Harry e da porta, recordou‑se de como ela própria, aos cinco anos — chamada Sally naquela altura — considerava o terreno do lado de fora da aldeia como uma periferia vaga, mas estreita, muito parecida com o jardim em redor da casa onde ela morava. Na sua imaginação, o mundo inteiro era apenas ligeiramente maior do que Badford. A primeira vez que a tinham levado a Kingsbridge, ela achara a cidade desconcertante: milhares de pessoas, ruas apinhadas, as bancas do mercado cheias de comida e roupas e coisas de que nunca ouvira falar: um papagaio, um globo, um livro para escrever, um prato de prata. E depois a catedral, impossivelmente alta, estranhamente bela, fria e silenciosa por dentro, obviamente o lugar onde Deus vivia.

Kit era agora apenas um pouco mais velho do que ela seria por altura daquela primeira viagem surpreendente. Ela tentou imaginar o que ele estava a pensar naquele momento. Supunha que ele sempre tivesse visto o pai como invulnerável — os meninos geralmente viam os pais assim — e agora estava a tentar habituar‑se à imagem de Harry ferido e indefeso. «O Kit deve estar assustado e confuso», pensou ela. Iria precisar de ser muito tranquilizado.

Finalmente, começaram a ver a casa dela. Era uma das casas mais pobres da aldeia, construída de turfa e num entrelaçado de ramos e galhos a que se chamava caniçada. As janelas tinham portadas, mas não tinham vidros.

— Kit, vai à frente e abre a porta — pediu Sal.

Ele obedeceu, e entraram logo com Harry. A multidão ficou do lado de fora, a espreitar.

A casa tinha apenas uma divisão. Havia duas camas, uma estreita e outra larga, ambas simples plataformas de tábuas não envernizadas pregadas por Harry. Cada uma estava coberta por um colchão de lona com recheio de palha.

— Vamos deitá‑lo na cama grande — disse Sal.

Baixaram cuidadosamente Harry, ainda deitado na porta, e pousaram‑no na cama.

Os três homens e Sal permaneceram de pé, esfregando as mãos doridas e esticando as costas massacradas. Sal olhou para Harry, que estava pálido e imóvel, quase sem respirar.

— Senhor, por favor, não o leves de junto de mim — murmurou ela.

Kit pôs‑se à frente dela e abraçou‑a, com o rosto encostado à barriga dela, que perdera a firmeza desde o seu nascimento. Ela acariciou‑lhe a cabeça. Queria dizer palavras reconfortantes, mas não lhe ocorria nenhuma. Qualquer coisa verdadeira seria assustadora.

Ela reparou que os homens perscrutavam a sua casa. Era bastante pobre, mas a deles não seria muito diferente, pois eram todos trabalhadores agrícolas. A roda de fiar de Sal ocupava o centro da divisão. Era muito bonita, esculpida com precisão e envernizada. Herdara‑a da mãe. Ao seu lado, havia uma pequena pilha de bobinas com fio acabado enrolado à sua volta, à espera de serem recolhidas pelo fabricante de tecidos. A roda pagava os luxos: chá com açúcar, leite para Kit, carne duas vezes por semana.

— Uma Bíblia! — disse Jimmy Mann, ao ver o único outro objeto caro da casa.

No centro da mesa, estava pousado o livro volumoso, cujo fecho de latão ganhara verdete com o passar dos anos e cuja encadernação de couro fora manchada por muitas mãos gordurentas.

— Era do meu pai — disse Sal.

— Mas consegues lê‑la?

— Ele ensinou‑me.

Ficaram impressionados. Ela supôs que nenhum deles sabia ler mais do que algumas palavras: os seus nomes, provavelmente, e talvez os preços afixados nos mercados e nas tabernas.

— Achas que devíamos deslizar o Harry da porta para o colchão? — perguntou Jimmy.

— Ele ficaria mais confortável — disse Sal.

— E eu ficarei mais feliz quando devolver essa porta em segurança à estância de madeiras.

Sal passou para o outro lado da cama e ajoelhou‑se no chão de terra batida. Estendeu os braços para receber Harry quando ele deslizasse da porta. Os três homens pegaram nele do outro lado.

— Devagarinho, com cuidado — disse Sal.

Eles levantaram a berma do seu lado, a porta inclinou‑se, e Harry deslizou uma polegada e gemeu.

— Inclinem mais um bocadinho — pediu ela.

Desta vez, ele deslizou até à borda da madeira. Sal posicionou as mãos debaixo do corpo dele.

— Mais um bocadinho — pediu ela. — E retirem a porta uma ou duas polegadas.

Enquanto Harry deslizava, ela passou as mãos e depois os antebraços por baixo dele. A sua intenção era mantê‑lo o mais imóvel possível. Parecia estar a funcionar, porque ele não emitiu qualquer som. Passou pela cabeça de Sal a ideia de que o silêncio podia ser mau sinal.

Mesmo no fim, retiraram a porta com alguma brusquidão, e a perna esmagada de Harry caiu no colchão com um leve baque. Ele berrou outra vez. Desta feita, Sal ouviu o som como um sinal positivo de que ele continuava vivo.

Annie Mann chegou com Alec, o cirurgião. A primeira coisa que fez foi verificar se os seus filhos estavam bem. A seguir, olhou para Harry. Não disse nada, mas Sal percebeu que ela ficou chocada com o seu mau aspeto.

Alec Pollock era um homem elegante, vestido com uma casaca e calças velhas, mas bem conservadas. Não tinha tido formação médica alguma além da que aprendera com o pai, que fizera o trabalho antes dele e lhe legara as facas afiadas e outras ferramentas que eram as únicas qualificações de que um cirurgião precisava.

Trazia consigo um pequeno baú de madeira com uma pega, que pousava agora no chão perto da lareira. Depois, olhou para Harry.

Sal analisou o rosto de Alec, à procura de algum sinal, mas a sua expressão não revelava nada.

— Harry, consegues ouvir‑me? — perguntou ele. — Como é que te sentes?

Harry não respondeu.

Alec olhou para a perna esmagada. O colchão debaixo dela estava agora empapado em sangue. Alec tocou nos ossos que se projetavam através da pele. Harry soltou um grito de dor, mas não foi tão terrível quanto os seus berros. Alec sondou a ferida com um dedo, e Harry gritou novamente. Em seguida, Alec agarrou no tornozelo de Harry e levantou a perna, e Harry berrou.

— É mau, não é? — perguntou Sal.

Alec olhou para ela, hesitou, depois disse simplesmente:

— Sim.

— O que é que se pode fazer? — Não consigo consertar os ossos partidos — diz. — Às vezes, consegue‑se: se houver só um osso partido e não estiver muito deslocado; às vezes, consigo colocá‑lo na posição certa, prendê‑lo com uma tala e dar‑lhe uma oportunidade de sarar. Mas o joelho é demasiado complexo e os danos causados aos ossos do Harry são demasiado graves.

— Então...?

— O maior perigo é se a contaminação entrar na ferida e provocar a corrupção da carne. Isso pode ser fatal. A solução é amputar a perna.

— Não — disse ela, com a voz a falhar‑lhe de desespero. — Não, não podes serrar‑lhe a perna, ele já passou por demasiada agonia.

— É possível que isso lhe salve a vida.

— Deve haver mais alguma coisa.

— Posso tentar selar a ferida — disse ele, duvidoso. — Mas se isso não funcionar, então a amputação é a única solução.

— Tenta, por favor.

— Está bem.

Alec curvou‑se e abriu o baú de madeira. Depois, disse:

— Sal, podes pôr alguma lenha na lareira? Preciso dela bem quente.

Ela apressou‑se a avivar o lume debaixo da chaminé.

Alec tirou do seu baú uma tigela de barro e um frasco com rolha.

— Suponho que não tenhas brandy — disse ele a Sal.

— Não — retorquiu Sal, mas depois lembrou‑se do cantil de Will. Ela enfiara‑o no vestido. — Sim, tenho — disse ela, e tirou‑o para fora.

Alec arqueou as sobrancelhas.

— É do Will Riddick — explicou ela. — O acidente foi culpa dele, o maldito idiota. Quem me dera que fosse o joelho dele que tivesse ficado esmagado.

Alec fingiu não ouvir o insulto ao filho do fidalgo.

— Faz o Harry beber o mais possível. Se ele desmaiar, tanto melhor.

Ela sentou‑se na cama ao lado de Harry, levantando‑lhe a cabeça e deitando‑lhe brandy para dentro da boca, enquanto Alec aquecia óleo na tigela. Quando o frasco ficou vazio, o óleo estava a borbulhar na tigela, uma visão que fez Sal sentir‑se nauseada.

Alec fez deslizar um prato largo e raso para debaixo do joelho de Harry. Uma audiência horrorizada assistia com Sal: os três trabalhadores agrícolas, Annie e os seus dois filhos e um Kit muito pálido.

Quando chegou o momento, Alec agiu com precisão rápida. Usando uma pinça, tirou a tigela do lume e despejou o líquido em ebulição sobre o joelho de Harry.

Harry soltou o pior berro de todos, e depois perdeu os sentidos.

Todas as crianças começaram a chorar.

Sentia‑se um cheiro nauseabundo a carne humana queimada.

O óleo acumulou‑se no prato raso sob a perna de Harry, e Alec fez oscilar o prato, certificando‑se de que um pouco do óleo quente queimava a parte de baixo do joelho para completar a selagem. Depois, retirou o prato, deitou o óleo novamente para dentro do frasco e tapou‑o.

— Vou mandar a minha conta ao fidalgo — disse ele a Sal.

— Espero que ele te pague — disse Sal. — Eu não consigo.

— Ele tem obrigação de me pagar. Um fidalgo tem um dever para com os seus trabalhadores. Mas não há nenhuma lei que diga que ele o tem de fazer. De qualquer forma, isso é entre mim e ele. Não te preocupes com isso. O Harry não vai querer comer nada, mas tenta que ele beba, se conseguires. Chá é o melhor. Cerveja não faz mal, ou água fresca. E mantém‑no quente.

Começou a arrumar as suas coisas no baú.

— Há mais alguma coisa que eu possa fazer? — perguntou Sal.

Alec encolheu os ombros.

— Reza por ele — respondeu ele.