Quando Yeongsuk Yeom se apercebeu de que a bolsa em que guardava todos os seus documentos já não estava na sua mala, o comboio já passava a toda a velocidade perto de Pyeongtaek. O verdadeiro problema era que não conseguia lembrar-se de onde poderia tê-la perdido, e este vazio na memória deixava-a mais preocupada do que a perspetiva de já não ter os documentos.

Banhada em suor, tentou reconstituir o que fizera naquele dia. Estava certa de ainda ter a bolsa consigo quando comprara o bilhete para o comboio KTX na Estação Central de Seul. Caso contrário, não teria conseguido tirar o cartão para pagar. Depois esperara pelo comboio cerca de meia hora, sentada a ver as notícias no ecrã da televisão da sala de espera. Já no comboio, adormecera com a mala ao colo, e, quando acordara, não lhe parecera que lhe tivessem mexido nela. Só quando a abrira para tirar o telemóvel é que se apercebera do desaparecimento das suas coisas. Ao pensar que já não tinha consigo a bolsa, a caderneta do banco e a sua agenda, sentiu-se sem ar.

Tentou reaver a memória, inverter desesperadamente a direção da paisagem que desaparecia fora das janelas da carruagem, com os pensamentos a correrem à velocidade do comboio.

O homem de meia-idade sentado ao seu lado tossiu, talvez incomodado pelo comportamento bizarro daquela mulher que balbuciava sozinha e agitava as pernas num esforço por se concentrar.

Mas não foi aquele golpe de tosse que interrompeu o fio dos seus pensamentos, mas sim o toque do telemóvel proveniente da mala.

Era uma canção dos ABBA, mas ela não conseguia lembrar-se do título. Seria «Chiquitita»? Ou «Dancing Queen»?

Oh, não, lamento, Junbee, mas acho que a avó tem mesmo Alzheimer, disse para si mesma.

Só quando pegou no telemóvel com as mãos a tremer é que a senhora Yeom se lembrou de que o título da canção era «Thank You for the Music». E, ao mesmo tempo, percebeu que lhe ligavam de um número desconhecido com o prefixo 02. Respirou fundo e atendeu.

— Estou?

Por um instante, não obteve resposta, mas o ruído de fundo fê-la especular que o interlocutor se encontraria num local público.

— Quem fala?

—É a Yeongsuk... Yeom?

Uma voz tão roufenha que nem parecia humana. Como a de um urso que acabou de acordar da sua hibernação, de sair da sua toca e berrar ao fim de um longo silêncio.

— Sim, sou eu.

— A... bolsa.

— Ah, encontrou-a? Posso perguntar-lhe de onde está a ligar?

— Seul.

— De onde, exatamente? É, por acaso, da estação central?

— Sim. Da estação... central.

A senhora Yeom deixou escapar um suspiro de alívio. Depois pigarreou.

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— Muito obrigada por me ter ligado. Estou de momento no comboio, mas na próxima estação saio e volto para trás imediatamente.

Entretanto, se preferir, pode deixar os meus documentos num local seguro e ir à sua vida. Seja como for, far-lhe-ei chegar uma recompensa.

— Não sei... para onde ir.

— Ah, compreendo. Na estação central, onde posso ir ter consigo?

— À loja de conveniência GS... perto da linha do comboio para o aeroporto.

— Obrigada. Chegarei o mais depressa possível.

— Tenha... cuidado.

— Claro, até mais logo.

Desligada a chamada, a senhora Yeom teve uma sensação de mal-estar. A julgar pelo modo de falar arrastado que ouvira ao telemóvel, que quase parecia a voz de um animal, tratava-se provavelmente de um sem-abrigo. Aliás, tinha quase a certeza.

Percebia-se pelas suas palavras, «não sei para onde ir», e pelo prefixo 02, o dos telefones públicos: era evidente que quem quer que fosse não tinha telemóvel.

O medo da senhora Yeom era que o sem-abrigo quisesse algo em troca pela bolsa. Mas também era improvável que um homem que se dera ao trabalho de lhe ligar só para devolver as suas coisas comportasse desse modo. Disse a si mesma que bastariam quarenta mil wons em dinheiro como recompensa. Precisamente nesse instante, ouviu-se na carruagem o aviso da paragem seguinte, na cidade de Cheonan. A senhora Yeom guardou o telemóvel na mala e levantou-se.

O comboio acabara de passar por Suwon quando o telemóvel voltou a tocar. A senhora Yeom murmurou algumas palavras da letra de «Thank You for the Music» para prevenir o Alzheimer e olhou para o ecrã. Era o mesmo número de há pouco. Tentando controlar a ansiedade, atendeu.
— ... Sou eu.

Era a voz rouca do homem. A senhora Yeom tentou adotar um tom de voz firme, como quando, no passado, se dirigia aos seus alunos.

—Diga.

— Desculpe... senhora... tenho fome.

— Perdão?

— Será que posso comprar... um dosirak para comer?

O coração da senhora Yeom derreteu-se um pouco, quer ao ouvir o interlocutor tratá-la por senhora, quer pelo pedido do dosirak, uma daquelas refeições pré-confecionadas que são vendidas nas lojas de conveniência. Num ímpeto de generosidade, disse:

— Claro. Compre qualquer coisa para comer. E deve ter sede, por isso, compre também uma bebida.

— O... Obrigado.

Mal desligou a chamada, recebeu uma mensagem de aviso de pagamento. Foi tão rápido que se perguntou se o homem não lhe teria ligado diretamente da caixa da loja de conveniência.

Para estar assim tão esfomeado, devia tratar-se mesmo de um dos sem-abrigo que grassavam pela estação central, fazendo conluio com os pombos.

A mensagem dizia: «Dosirak de Park Chanho — GS, 4900 wons».

Deve ter sentido vergonha de comprar também uma bebida, pensou ela.

Abandonando a ideia de pedir a alguém que a acompanhasse, por segurança, a senhora Yeom decidiu ir sozinha ao encontro do homem.

Com setenta anos, e apesar dos primeiros indícios de Alzheimer, ainda tinha muita confiança em si mesma. Chegara à reforma sem nunca ter cedido a nenhum compromisso e lidara com todo o tipo de alunos, por isso, não havia motivo para ter medo.

Chegada à estação central, procurou as escadas rolantes para a linha do aeroporto. A loja de conveniência GS ficava do lado direito, em frente às escadas rolantes, e o homem com a voz de urso estava acocorado em frente à entrada, com o rosto afundado num dosirak. Agora que estava tão perto, a situação pareceu-lhe subitamente mais real, e ela sentiu um nó de preocupação na garganta. O homem tinha o cabelo comprido e tão incrustado de sujidade que fazia lembrar as franjas de uma esfregona de lavar o chão; usava um casaco desportivo leve e calças de algodão que poderiam ser ou castanhas ou bege. Estava absorvido a comer minissalsichas da caixa do dosirak, agarrando-as atentamente com os pauzinhos.

Era um sem-abrigo, sem sombra de dúvida.

A senhora Yeom encheu-se de coragem e aproximou-se. De repente, contudo, três homens lançaram-se sobre o sem-abrigo que comia descansado a sua refeição, obrigando-a a parar a meio do caminho.

Os recém-chegados, ferozes como hienas, deviam ser vagabundos da estação. Diante dos olhos dela, empurraram e bateram no homem do dosirak, enquanto tentavam tirar-lhe qualquer coisa.

A senhora Yeom voltou-se e tentou chamar a atenção das pessoas que passavam, mas estas apenas viam uma briga entre sem-abrigos e prosseguiam indiferentes.

O homem largou a caixa com a comida lá dentro e dobrou-se em posição fetal para se proteger dos murros. No entanto, acabou por ser dominado pelo grupo e levantou um braço para permitir que os assaltantes lhe roubassem o que estava a defender. A senhora Yeom, que assistia ansiosa à cena, viu finalmente do que se tratava. Era a sua bolsa cor-de-rosa!

Depois de terem pontapeado o homem estendido no chão, os outros sem-abrigo começaram a afastar-se. A senhora Yeom, tão chocada que já nem sentia as pernas, quase desabou.

Contudo, de repente, o homem levantou-se como um raio e lançou-se contra um dos seus agressores, que tinha nas mãos a pequena bolsa cor-de-rosa.

— Agh!

Com um grunhido, o homem do dosirak agarrou na perna do ladrão e fê-lo cair, atirando-se para cima dele e arrancando-lhe a bolsa. Num instante, os outros caíram em cima dele. Os olhos da senhora Yeom animaram-se. Levantou-se e correu até eles, gritando a plenos pulmões.

— Seus delinquentes! O que pensam que estão a fazer?

Ao ouvir os gritos, os três homens pararam. Enquanto corria, a senhora Yeom ergueu a mala e bateu num em plena face. Os outros dois começaram a recuar.

— Agarra que é ladrão! Roubaram-me a bolsa! Socorro! Socorro!

Perante os gritos da senhora Yeom, desta vez, os transeuntes começaram a parar, e os três homens, um a um, viraram costas e fugiram.

Só o do dorisak ficou no chão, encolhido, ainda agarrado à bolsa.

A senhora Yeom aproximou-se.

— Está bem?

O homem ergueu o rosto para ela. Os olhos inchados, o nariz sujo de sangue e muco, e a boca coberta por uma barba descuidada, davam-lhe um ar de um homem primitivo acabado de regressar de uma caçada. Só nesse momento pareceu aperceber-se de que os seus agressores tinham desaparecido e, lentamente, reergueu-se, sentando-se. A senhora Yeom tirou um lenço
da mala e agachou-se à frente dele.

Um cheiro rançoso assaltou-lhe as narinas. Ela susteve a respiração e estendeu-lhe o lenço, mas o homem abanou a cabeça e limpou o nariz à manga do casaco.

Apercebendo-se de ter temido, por um instante, que o sangue e o muco do homem pudessem ir parar à sua bolsa, a senhora Yeom sentiu vergonha dos seus pensamentos.

— Tem a certeza de que está bem?

O homem anuiu, observando-a. Sob o peso daquele olhar, a senhora Yeom pensou por um momento que fizera algo errado.

Queria ir-se embora o mais depressa possível. Mas antes teria de recuperar a bolsa e os documentos.

— Obrigada por ter defendido a minha bolsa.

Com a mão direita, o homem pegou na bolsa que escondera debaixo do braço esquerdo e estendeu-lha. Mas, quando ela ia agarrar nela, ele retirou-a e abriu-a, sempre perscrutando a mulher surpreendida à sua frente.

Livro: "A Loja Coreana das Segundas Oportunidades"

Autor: Kim Ho-Yeon

Editora: Presença

Data de Lançamento: 6 de novembro de 2024

Preço: € 16,90

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— O que... está a fazer?

— A senhora... é a proprietária?

— Claro que sou. Vim buscar a bolsa. Nós falámos ao telefone, não se lembra?

Era uma pergunta tão disparatada que a senhora Yeom quase se sentiu ofendida. O homem, contudo, não disse uma palavra. Remexeu na bolsa até encontrar a carteira, da qual tirou o cartão de identidade.

— Número de contribuinte... por favor.

— Desculpe, mas acha que estou a mentir?

— Tenho de ter a certeza. Sou responsável... Tenho de a devolver à proprietária.

— O cartão de identidade tem a minha fotografia. Ora veja.

O homem pestanejou com os olhos ainda inchados da sova, olhando primeiro para a fotografia e depois para a senhora Yeom.

— A fotografia... não parece a senhora.

A senhora Yeom estalou a língua, mais pelo absurdo da situação do que pela frustração.

— Ah, é uma fotografia antiga — acrescentou o homem.

Era, sem dúvida, uma fotografia antiga, mas não deixava de ser o seu rosto, perfeitamente reconhecível. Mas talvez o homem à sua frente não visse muito bem. Ou talvez ela tivesse envelhecido muito.

— O número de contribuinte... por favor.

A senhora Yeom suspirou e disse-o de uma forma clara.

—Cinco, dois, zero, sete, dois, cinco. Está certo?

— Ce... certo. Tinha de ter a certeza.

Após ter pedido permissão com um aceno, o sem-abrigo voltou a guardar o cartão de identidade na carteira e depois esta dentro da bolsa. A senhora Yeom conseguiu finalmente reavê-la. Agora que tudo estava resolvido, deu por si a observar o homem que tinha à sua frente. Não só protegera a bolsa mesmo quando fora atacado, como também confirmara meticulosamente que ela era a proprietária. Eram ações de uma pessoa verdadeiramente responsável.

O homem levantou-se com um gemido. A senhora Yeom, levantando-se também ela, tirou imediatamente da carteira quarenta mil wons em dinheiro e estendeu-lhos.

— Tome.

O homem à sua frente hesitou ao ver as notas.

— Pode ficar com elas.

Ao invés de aceitar o dinheiro, levou uma mão ao bolso do casaco e tirou de lá um monte de pequenos lenços de papel amarrotados, que usou para limpar o sangue que lhe saía do nariz.

Depois virou costas e começou a caminhar. A senhora Yeom ficou a olhar para ele, envergonhada, ainda com a mão estendida com o dinheiro da recompensa. O homem dobrou-se em frente à entrada da loja, precisamente onde antes estivera a almoçar. Ela seguiu-o.

Olhava fixamente para a caixa do almoço no chão e murmurava para si mesmo. Depoissuspirou. A senhora Yeom, que não deixara de o observar, dobrou-se ligeiramente e tocou-lhe no ombro. Quando ele se virou, a sua expressão fez-lhe lembrar a dos seus alunos sempre que se sentiam acanhados diante dela.

— Gostava de vir um instante comigo?

Ao sair da estação, o homem hesitou por um momento, como um herbívoro relutante a deixar o abraço da Natureza para subir para um camião estacionado no asfalto.

A senhora Yeom fez-lhe um aceno com a mão, quase um convite a que deixasse o passado para trás, na Estação Central de Seul, e os dois foram andando juntos pelo bairro de Galwol.

Ele seguia-a com pequenos passos de intervalo, enquanto ela caminhava depressa pelas ruas em direção ao bairro de Cheongpa. O outono já ia adiantado e os frutos das árvores de ginkgo que ladeavam a rua emanavam um mau cheiro semelhante ao do homem.

A senhora Yeom deu por si a pensar no motivo pelo qual o levara consigo. Queria encontrar uma forma de o recompensar, já que recusara o seu dinheiro. Tinha de o premiar por ter protegido desesperadamente a sua bolsa e porque, embora fosse um sem-
abrigo, escolhera, ainda assim, fazer o que estava certo. Ao fim de tantos anos atrás de uma secretária de professora, ela sabia que a avaliação que fazia aos alunos poderia deixar uma marca indelével. Acima de tudo, era cristã e toda a vida praticara a fé da sua mãe. Por isso, queria ser uma boa samaritana para aquele homem, que o fora primeiro com ela.

Os dois caminharam cerca de quinze minutos e, depois de deixarem para trás as ruas sujas à volta da estação de Seul, chegaram a uma majestosa igreja.

Grupos de estudantes em calças de ganga e camisolas de malha, provavelmente vindas da universidade feminina vizinha, passeavam a rir, e, transeuntes, faziam fila à porta dos quiosques e pequenos restaurantes, que se tinham tornado famosos após terem aparecido na televisão. Quando a senhora Yeom se virou, viu que o homem estava absorto a admirar a cena.

Percebeu também que algumas pessoas procuravam evitá-lo. A ideia do que pensariam ao vê-los juntos deixava-a curiosa e preocupada ao mesmo tempo, porque ela vivia precisamente em Cheongpa. E era ali que tinha a sua loja.

A senhora Yeom continuou em direção à Universidade Feminina Sookmyung, com o homem a segui-la como uma sombra. Passou por algumas ruelas e, por fim, chegou a um cruzamento estreito. Numa das esquinas, ficava uma loja de conveniência.

Tratava-se de uma pequena loja que era propriedade da senhora Yeom. Não era muito grande, mas o importante era que lhe permitia oferecer ao homem outro dosirak. Então, abriu a porta e fez-lhe sinal para entrar. Ele hesitou, mas acabou por
segui-la.

—Bom dia. Ah, viva, chefe!

A rapariga da caixa em part-time, Sihyeon, pousou o telefone e cumprimentou-a com um sorriso, imediatamente retribuído pela senhora Yeom. Logo a seguir, contudo, empalideceu.

— Não te preocupes, é meu convidado.

A expressão de Sihyeon ensombrou-se ao ouvir a palavra «convidado». Pensando que a sua empregada tinha ainda muito que aprender para se poder considerar uma pessoa adulta, a senhora Yeom puxou o homem por um braço até à arca frigorífica onde estavam os dosirak.

Ele seguiu-a em silêncio, de olhos vazios, desprovidos de expressão.

— Escolhe o que quiseres.

—Hã?

— Esta loja é minha, por isso, estás à vontade para levar o que quiseres.

— Mas... Eu... Como?

O homem ofegou e, em seguida, ficou de boca aberta com um ar perdido.

— O que foi? Não gostas de nada?

— O dosirak... da Park Chanho... Não há.

— Esta loja de conveniência não é da GS. Só a cadeia GS é que vende os produtos patrocinados pela Park Chanho.

— Park Chanho... até o seu almoço... é bom...

A senhora Yeom, sem palavras perante esta ingénua defesa de um seu concorrente direto, bateu levemente no dosirak maior que tinha.

— Experimenta este. É um dosirak gourmet. Tem muitos acompanhamentos.

O homem aceitou a caixa e contou atentamente todos os acompanhamentos incluídos no almoço.

São doze, parvo. Devia ser um sonho para um sem-abrigo como tu, pensou a senhora Yeom, enquanto o homem olhava fixamente para a caixa, como se a estudasse. Uma vez terminada a sua análise, olhou para ela e fez uma vénia. Depois saiu da loja e dirigiu se à mesa exterior como se estivesse em casa.

Num instante, a mesinha de plástico verde transformou-se na sua mesa posta. O homem levantou a tampa de plástico do dosirak como se estivesse a desembrulhar uma prenda valiosa, separou os pauzinhos com cuidado e levou um pedaço de arroz à boca.

Depois de o observar, a senhora Yeom virou-se, pegou num pacote de sopa liofilizada de pasta de soja e pousou-a no balcão. Sihyeon viu-a e passou de imediato o código de barras pelo leitor da caixa. A senhora Yeom colocou água quente dentro da taça, pegou numa colher e saiu.

— Toma isto também. É melhor com sopa.

O homem, com os olhos a saltar entre o rosto da senhora Yeom e a sopa que ela lhe oferecia, tirou a colher da taça e levou-a diretamente à boca. Engoliu, de um só trago, metade da sopa como se não a sentisse de todo quente, depois anuiu e voltou a pegar nos pauzinhos.

A senhora Yeom, depois de ter entrado na loja e enchido com água um copo de papel, pousou-o na mesa ao lado do homem e, por fim, sentou-se à sua frente, observando-o a comer diretamente da caixa do dosirak. Parecia um urso a empanturrar-se de mel depois de ter acordado da hibernação, ou, melhor, um urso que faz provisão de comida pouco antes de hibernar. Provavelmente, era difícil para um sem-abrigo como ele fazer três refeições por dia, mas, então, como estava tão gordo? Talvez os sem-abrigo ganhassem peso pelo mesmo motivo que tantos pobres sofriam de obesidade, pensou a senhora Yeom. Ou talvez porque comia muito depressa.

—Podes comer com calma. Ninguém to tira.

O homem olhou para ela, a boca cheia de sopa e kimchi frito.

Agora, parecia dócil, não cauteloso como antes.

— É muito bom...

Observou o tabuleiro de plástico do almoço em caixa descartável pousado na mesa ao seu lado e acrescentou ainda:

—Era mesmo... gourmet.

Ao invés de terminar a frase, baixou a cabeça e voltou a tragar a sopa de pasta de soja. Agora que estava calmo, parecia evidente que saciar a fome lhe restituíra alguma lucidez mental.

A senhora Yeom sentiu uma estranha satisfação ao vê-lo usar os pauzinhos para comer os últimos pedaços de eomuk, os rolinhos de arroz fritos. Naquele esforço, conseguia vislumbrar a dignidade de um ser humano.

— Volta quando tiveres fome. Podes comer um dosirak sempre que quiseres.

Os pauzinhos do homem detiveram-se, enquanto ele fixava a senhora Yeom de olhos esbugalhados.

— Vou avisar os meus empregados, assim não precisas de pagar.

— Mas está a falar... dos produtos não vendidos?

— Não, dos novos. Porque haverias de comer comida fora do prazo?

— Os empregados em part-time... normalmente... comem os produtos fora do prazo... Ainda estão bons.

— Na minha loja, ninguém come comida fora do prazo. Nem os meus empregados nem tu. Leva só produtos frescos. Sou eu que te autorizo.

Por um instante, o homem pareceu confuso; depois voltou a inclinar a cabeça e começou a recolher pedacinhos de eomuk frito. A senhora Yeom estendeu-lhe a colher que lhe levara antes. Ele aceitou-a, observando-a como um chimpanzé faria com um smartphone. Contudo, tal como quem se lembra de como se anda de bicicleta apesar de ter aprendido há muitos anos, usou-a para apanhar as últimas migalhas de eomuk e, satisfeito, levou-as à boca. Por fim, levantou os olhos do recipiente já quase vazio e olhou para a senhora Yeom.

— Era... bom. Obrigado.

— Obrigado por ter protegido a minha bolsa.

—Ah... Na verdade, foi levada por dois homens.

— Dois homens?

— Sim... Eu gritei com eles e tirei-lhes... a bolsa.

— Quer dizer que discutiste com os ladrões para recuperar a minha bolsa? Querias devolver-ma?

O homem anuiu e beberricou a água do copo de papel que ela lhe estendia.

— Dois... consigo vencer. Três... nem tanto. Aqueles... para a próxima, vão chatear-se comigo.

Ao lembrar-se do que acontecera na estação de Seul, o homem rangeu os dentes de raiva. A senhora Yeom franziu o sobrolho ao ver restos vermelhos de pó de malagueta entre aqueles dentes amarelecidos, mas vê-lo finalmente tão animado tranquilizou-a.

O homem acabou de beber e olhou em volta.

— Mas... Onde estamos?

— Aqui? Estamos no bairro de Cheongpa. «Cheong» de azul e «Pa» de colina.

— A colina... azul. Bonito...

Debaixo da barba basta, os cantos da boca do homem subiram num sorriso. Depois, pegando na caixa vazia e no recipiente da sopa de pasta de soja, levantou-se. Deitou-os fora, com naturalidade, no caixote da recolha de lixo diferenciada e, voltando a pôr-se diante da senhora Yeom, tirou do casaco um monte de lenços para limpar a boca. Por fim, fez-lhe uma vénia profunda e virou costas à loja de conveniência.

A senhora Yeom ficou a vê-lo a afastar-se em direção à estação central, como um empregado normal a dirigir-se para o trabalho, e depois voltou a entrar na loja. Sihyeon bombardeou-a com perguntas, de olhos reluzentes de curiosidade. A proprietária contou-lhe toda a história desde que se apercebera, no comboio, de ter perdido a bolsa.

A rapariga reagiu com uma série de exclamações como «Caramba!, e «A sério?», tão incrédulas como preocupadas.

— Que homem interessante. Não consigo capacitar-me de que esteja reduzido a ser um sem-abrigo.

— É só um vagabundo. Cuidado, veja se está tudo dentro da carteira.

A senhora Yeom abriu a bolsa e espreitou lá para dentro. Estava tudo no seu lugar. Lançou um sorriso a Sihyeon, como que a convidá-la também a confirmar, tirou da carteira o seu cartão de identidade e mostrou-lho.

— Estou muito diferente?

— Não, está igual. Tirando alguns cabelos grisalhos, não envelheceu muito.

A senhora Yeom estudou atentamente a fotografia do seu cartão de identidade. Estava mesmo diferente do seu atual aspeto.

— Irrita-me, mas ele tem razão.

—O quê?

— Nada, foi só uma coisa que me aconteceu. Tu sabes o que significa ter tato, Sihyeon.

A senhora Yeom disse a Sihyeon para dar um dosirak àquele sem-abrigo se ele voltasse ali, e para transmitir a indicação aos outros empregados. Sihyeon, embora algo carrancuda, escreveu de imediato as instruções recebidas no chat dos empregados da loja. A senhora Yeom olhou em volta, apreciando a sua loja com um ar satisfeito, mas, de repente, foi tomada por um desconforto.

Não conseguia lembrar-se se tinham entrado clientes enquanto o sem-abrigo comia. Sentiu logo a boca seca só de pensar que teria demência. Apesar disso, recebera uma boa ação e retribuíra-a, por isso, podia considerar que fora um bom dia.

— Mas não devia ir a Busan?

— Oh, não, que parva que sou!

O dia ainda não terminara. Teria de chegar a Busan, no máximo, até ser de noite. la ao funeral da prima, e depois queria ficar alguns dias na cidade.

Guardou a bolsa porta-documentos dentro da mala e encaminhou-se outra vez para a estação.