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UM LUGAR IMPREVISÍVEL PARA COMEÇAR

(De A Mansão Minúscula de Myra Malone, 2015)

Era uma vez uma casa.

Agora, antes de continuarem a ler, parem por um momento. Respirem fundo, se forem dados a essas coisas, e pensem. Quero que visitem o lugar que lhes veio à cabeça quando leram estas palavras, porque eram as que abriam quase todas as histórias que eu ouvia quando era criança. E, se vão passar algum tempo aqui com a Mansão Minúscula, estas palavras são um lugar tão bom para começar como qualquer outro. Era uma vez uma casa.

Que tipo de casa veem quando fecham os olhos? Quantas divisões tem e o que é que cada uma guarda? Se vivessem nessa casa, onde dormiriam, de que cor seriam as toalhas para as visitas e como tomariam o vosso chá? Que música ecoaria contra as paredes? E sai de uma aparelhagem a estéreo moderna ou de uma velha vitrola?

Se são daquelas pessoas que gostam de contos de fadas, talvez tenham imaginado uma pequena casa de pedra com uma porta da frente estreita e em arco: teriam de se baixar para não baterem com a cabeça na aduela, e, se olharem com atenção, talvez vejam uma pequena mossa na parte de cima da madeira em curva onde isso já aconteceu a inúmeros visitantes. Talvez seja por isso que há um confortável cadeirão de capitonê logo à entrada, para que se possam sentar e esfregar o cocuruto por um bocado enquanto olham em volta.

Ou talvez os contos de fadas não sejam a vossa praia. Não faz mal. A minha amiga Gwen também não é nada dada a bolachinhas caseiras e naperons e a casa na cabeça dela é uma coisa de vidro com vista para o mar, tudo superfícies lisas e luz, como a Fortaleza da Solidão do Super-Homem, mas com bastante mais Prada e rapazes das piscinas. Além disso, por alguma razão, a Gwen tem um golfinho como animal de estimação? Deixem-se levar. Toda a gente pode imaginar as suas próprias paredes e as maravilhas que guardam sem ter de pensar em como limpar a seco cocó de golfinho caído em pele italiana. (Não, também não sei porque é que ela deixa o golfinho no sofá, mas não estou aqui para julgar ninguém.)

Enfim. Seja como for a vossa casa — onde quer que tenham sonhado passar a vossa história de encantar — é vossa porque é assim que a fazem. Podem escolher a mobília e as obras de arte, as canecas empilhadas nos armários, os puxadores que usam para os abrir, porque a imaginação é vossa e esse é o vosso único limite.

E o meu também, só que eu posso fazer algo mais: posso transformar a minha em realidade.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Creio que algumas pessoas também têm esta capacidade, além de dinheiro e tempo sem fim para dar forma aos seus sonhos, que é coisa que eu não tenho. O que eu tenho é uma casa minúscula que também é muito, muito grande. Uma mansão, na verdade. A Mansão. (Fica zangada quando não a escrevo com inicial maiúscula.) E a Mansão é uma tela para um tipo de arte muito particular. É uma galeria de pequenos sonhos: alguns meus, alguns herdados, alguns generosamente partilhados comigo por amigos e família e pessoas como vocês que me estão a ler. E eu posso usar esses sonhos para povoar o mundo inteiro. Posso fazer uma pequena casa de banho com uma banheira com pés de garra e espuma do mar ou um quarto com rosas muito pequeninas a enfeitar cada superfície. Se não conseguir encontrar o armário certo para as porcelanas da sala de jantar, posso construir o que quero ver, porque as duas pessoas que me ensinaram — o meu avô Lou e a mulher dele, Trixie — passaram-me cada bocadinho do seu conhecimento de carpintaria, pintura, escultura e costura, e o que não ensinaram, aprendi por mim própria. Eu sei quais as pedras preciosas que se assemelham a água e qual é o melhor lápis para desenhar o ponto cadeia mais convincente num toalhete demasiado pequeno para costurar. Posso ser eclética ou tradicional, moderna ou romântica, e a Mansão absorve os meus sonhos nas suas paredes.

Não tinha a certeza se deveria partilhá-los com toda a gente, nem como. Mas estou disposta a tentar.

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PARKHURST, ARIZONA, 2015

Este bule quer fazer parte da sala, mas não pertence a lugar nenhum.

Myra parou de digitar e ficou a olhar para o cursor a piscar-lhe, à espera da próxima ideia. Todas as palavras eram escolhidas a dedo e todas as letras eram cor-de-rosa choque. Quando fechava os olhos, Myra via rostos a olhar para milhares de ecrãs, a desejar entrar no quarto minúsculo. Afastou-se da secretária e agachou-se à frente da Mansão Minúscula pousada numa ampla plataforma no sótão da cabana e olhou para a pequeníssima biblioteca na parte de trás da casa. Estendeu os dedos hesitantes em direção ao bule com margaridas pintadas na porcelana e empurrou um tabuleiro de prata em que estava pousado para tentar que não ficasse tão desfasado da lareira da biblioteca. Colocou duas cadeiras de baloiço em cada um dos lados das chamas pintadas.

Não estava bem. Não estava nada bem. Pior, estava muito longe dos padrões de Myra.

— Este não funciona. — Recostou-se para trás nos joelhos e pôs-se a olhar para a biblioteca. — Vou esperar um minuto, mas acho que não vou mudar de ideias.

Gwen levantou os olhos do computador portátil sem falhar nenhuma tecla, com uma expressão deliberadamente neutra. Myra percebeu que a amiga estava a tentar não revirar os olhos.

— Estás a trabalhar na biblioteca há quantas semanas já? Durante quanto tempo é que achas que vais conseguir cativar as pessoas com a história da Nancy Drew e Onde Deverei colocar este Bule?

— Tu é que disseste que eu tinha de o usar. A ideia foi tua, não minha.

O trabalho da Myra na biblioteca era, como tudo o resto na Mansão, inteiramente para si. Mas as histórias que contava, as fotografias e a meticulosa conservação da casa absorveram a atenção dos seguidores — primeiro centenas, depois milhares, depois (como?) centenas de milhares — que esperavam ansiosamente cada nova publicação do blogue A Mansão Minúscula de Myra Malone. A página fora ideia de Gwen e, quando começaram a aparecer miniaturas à porta da casa de Myra poucas semanas depois de as publicações iniciarem, o choque de Myra fizera-se desconforto. A Mansão pertencia-lhe a ela. Não tinha convidado ninguém para a visitar. Mas Gwen abria os pacotes todos os fins de semana e atualizava alegre- mente as contas da Mansão nas redes sociais com agradecimentos efusivos pelos objetos que chegavam sem ser solicitados pelo correio, fosse um palhaço minúsculo de porcelana, trempes de bronze ou outra coisa qualquer.

— Eu disse que tinhas de tentar usar alguma coisa que as pessoas te enviam — disse Gwen. — Como experiência. Não precisas de usar tudo... nem deves, na verdade, porque, quanto mais exclusiva fores, mais eles vão tentar participar. Vais aumentar o tráfego.

— Vou voltar a pôr tudo como estava. Isto não vai funcionar.

Gwen pousou o computador com estrondo nas tábuas largas do soalho do sótão.

— Longe de mim querer criticar a grande Myra Malone, mas deixa-me ver uma coisa.

Levantou-se, dirigiu-se para o lado de Myra, tirou o bule da Mansão e examinou a porcelana delicada na palma da mão.

— A sério? — Myra olhou para ela com alívio. Era raro ver Gwen a compreender a seriedade daquelas decisões.

— Sim. É só um raio de um bule e não um talismã maia antigo que tens de colocar ao milímetro para não seres esmagada por um rochedo gigante. É uma pena. Andas a mudá-lo de um lado para o outro há vinte minutos, pelo que eu até tinha alguma esperança de que fosse alguma coisa importante.

— Não sei se sabes, mas ninguém te está a obrigar a ficares aqui. Podes voltar para o teu escritório e deixar-me trabalhar, Gwen.

Livro: "A Mansão Minúscula de Myra Malone"

Autor: Audrey Burges

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 9 de novembro de 2023

Preço: € 19,90

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— Também gosto muito de ti, Myra. — Gwen pôs a língua de fora e voltou imediatamente a ser a criança de sete anos que provo- cava a amiga de infância, apesar de terem ambas trinta e quatro anos de idade. — E é sábado. Sábado é sempre o dia em que atualizamos a página. Não te esqueças de que o A Mansão Minúscula também é um investimento para mim. Ainda estou a contar que se transforme em algo grande. Trocadilho completamente propositado. — Agarrou num cavalo de baloiço muito pequenino de um canto da biblioteca e deixou-o a balançar na palma da mão ao ritmo do movimento de reflexão da cabeça. A pintura lascada na sela vermelha refletia a luz enquanto Gwen ponderava e rejeitava ideias sem nunca falar em voz alta. Olhar para Gwen a pensar era como estar a observar um espectador de um jogo de ténis que mais ninguém podia ver. — Podias colocar espaço em leilão, sabias. Vender lugares da Mansão. Divisões inteiras que as pessoas poderiam decorar. — Resfolegou. — Um concurso de ensaios!

— Não! — Myra não sentiu a necessidade de se explicar. Pegou no cavalo de baloiço da mão de Gwen e voltou a pousá-lo no canto da biblioteca. — Tem cuidado, por favor — disse. — Fiz este cavalo com a Trixie e o avô.

Gwen fez cara feia, mais pela rejeição da ideia brilhante que acabava de ter do que pela reprimenda relativa ao cavalo. Gwen era uma planeadora. Não havia nenhuma ideia, por pequena que fosse, que estivesse livre das suas tentativas de a levar mais além; na cabeça dela construíam-se vastos impérios multimédia. Às vezes, Myra desejava nunca ter mostrado a Mansão a Gwen. Mas isso significaria recuar décadas, para uma altura em que tinham ambas sete anos e Gwen abrira caminho até ao sótão de Myra depois de se ter mudado para o bairro e anunciado que iriam ser melhores amigas para sempre.

Na época, Myra não saía de casa havia quase dezoito meses. Quando finalmente o hospital lhe deu alta, já tinha cinco anos e meio. Passara metade desse tempo com a vida por um fio e, quando conseguiu, a duras penas, voltar ao mundo dos acordados, descobriu que não havia nada que não a deixasse encolhida ou aterrorizada. O mundo era demasiado grande. Myra só se sentia segura na cabana. Era segura porque tinha sido o avô, Lou, a levantar todas as vigas e paredes muito antes de ela nascer, conferindo à estrutura a sensação de calma que o próprio inspirava sempre. Era segura porque tinha um sótão que albergava a Mansão, que pertencera a Trixie — a mulher do avô — antes do acidente que a matou e por pouco não levou Myra com ela. Era segura porque a Mansão abrigava a alma de Myra de formas que ela não era capaz de explicar. Dava-lhe novos mundos para explorar — numa escala mais fácil de gerir —, mas depois espantava-os, no que era um segredo só dela e da casa.

Myra definia as fronteiras da sua vida em função das paredes que a envolviam. Mantinha-se tão fechada como a própria Mansão, cerrada a sete chaves dentro do seu próprio corpo. A única amizade que tinha existia porque Gwen a criara sustentada apenas na mais pura força vontade — e falta de outras opções disponíveis — que a levava a precipitar-se pelas escadas do sótão acima depois da escola, da universidade e da pós-graduação para encontrar Myra exatamente onde a deixara: recolhida em casa, no sótão, a decorar divisões de uma Mansão que mais ninguém via. Até que, finalmente, havia seis meses, Gwen fincara o pé e dissera insistentemente a Myra que a Mansão era demasiado bonita para não ser partilhada com o resto do mundo, ao mesmo tempo que atirava a última história impressa de Myra para o ar em frustração e gritava, afirmando que estava na hora de deixar as centenas de páginas de prosa viver algures onde as pessoas as pudessem ver. Se não te partilhas a ti, pelo menos partilha o teu trabalho. Partilha as histórias sobre o teu trabalho. Deixa que o mundo venha até ti.

Era tarde de mais para cancelar o convite — o da Gwen, claro, para não falar do ror de visitantes que ela atraía. Agora Myra tinha aquele bule, centenas de bules, na verdade, de diferentes tamanhos e feitios. Caixas e sacos a transbordar de bules, cafeteiras, chocolateiras, até um par de samovares muito pequeninos de cobre. Todos a rivalizar por um lugar na Mansão. Myra pegou distraidamente no pingente de pedra em forma de bolota que lhe pendia do pescoço e balançou-o de um lado para o outro na corrente enquanto voltava a olhar para a biblioteca. As estantes de cerejeira manchadas tinham livros de Plath e Baudelaire, à espera de que o chá das cinco fosse servido à frente da lareira de mármore com as chamas pintadas em cores vivas.

Este bule quer fazer parte da sala, mas não pertence a lugar nenhum.

Myra sabia exatamente o que o bule sentia.

Voltou a guardá-lo na embalagem e passou as mãos pela frente das calças largas, a eliminar os últimos rastos do mundo exterior da pele. Abaixo de Myra, em partes da cabana que evitava, havia pilhas instáveis de caixas de cartão e de madeira por abrir encostadas a todas as paredes, a acanhar os corredores mais estreitos e a encolher as outras divisões da casa. E, ainda mais abaixo, escondidos sob as caixas, havia envelopes de aviso em tons cada vez mais garridos de amarelo, cor de laranja e vermelho que procuravam dar a ideia de urgência que se esperaria de um animal venenoso. Perigo. Perigo. Ignore-me por sua conta e risco.

O tempo está a esgotar-se.