Naya Rivera, mais conhecida pela papel da cheerleader lésbica Santana Lopez na série “Glee”, foi dada como desaparecida a 8 de julho, quando encontraram o seu filho de quatro anos sozinho num barco alugado num lago no sul da Califórnia. As operações de busca e salvamento começaram imediatamente e terminaram 5 dias depois, a 13 de Julho, com o anúncio que se antevia: as autoridades norte-americanas encontraram um corpo no lago Piru, na Califórnia - o local onde a mãe e o filho tinham ido passear -, identificado como sendo o da atriz. Naya Rivera tinha apenas 33 anos.
Numa coincidência macabra, o dia em que Rivera foi dada como morta coincidiu com o sétimo aniversário da morte de um dos seus colegas da série “Glee”. A 13 de julho de 2013, Cory Monteith, de 31 anos, foi encontrado morto devido a uma overdose de álcool e drogas.
Mais tarde, em 2018, o ator e ex-namorado de Naya Rivera, Mark Salling, que na série interpretava o “bad boy” e melhor amigo de Finn, Noah "Puck" Puckerman, suicidou-se antes de ser condenado por posse de pornografia infantil. Agora, com o acidente de Rivera, eleva-se para três o número de jovens atores desta série de sucesso que, em apenas sete anos, acabaram por ter fins trágicos.
“Glee” foi uma criação de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan e esteve no ar de 2009 até 2015, sendo exibida em 60 países. O enredo desenrolava-se numa escola secundária fictícia no estado de Ohio, com personagens da série musical a explorar temas como sexualidade, bullying, religião e relações de amizade e amor. A história inicial centrava-se num professor de espanhol que reaviva o grupo de coro da escola e tenta restaurar a sua antiga glória com a ajuda de oito alunos ostracizados pelo resto da comunidade escolar.
As primeiras temporadas foram aclamadas pela crítica e o programa tornou-se um sucesso de audiências, para além de ter construído uma enorme comunidade de fãs. Ganhou inúmeros prémios de televisão, vendeu 36 milhões singles digitais e mais de 11 milhões de álbuns em todo o mundo - em 2009, "Glee" chegou a ter simultaneamente 25 singles na tabela Billboard Hot 100, o maior número desde os Beatles. Houve também digressões de concertos e um filme-concerto baseado na tour de 2011.
Naya Rivera, Cory Monteith e Mark Salling fizeram todos parte deste fenómeno cultural desde o primeiro episódio. Mas o mau-olhado não acabou com as suas mortes trágicas que parecem invocar a versão televisiva do “Clube dos 27” (a lista dos vários músicos, atores e artistas que morreram prematuramente aos 27 anos, como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Kurt Cobain, tornando-se num fenómeno supersticioso cultural). E para além dos precoces desaparecimentos de três dos atores da série, outros protagonistas de "Glee" têm-se visto envolvidos em escândalos nos últimos anos.
Acusações de racismo
Ao longo das seis temporadas que esteve no ar, e nos anos seguintes ao final da aclamada série, as tensões foram brotando por detrás das câmaras. Recentemente, Lea Michele, a estrela principal de “Glee” e ex-namorada do falecido Cory Monteith, foi acusada de racismo, bullying e conduta imprópria por antigos colegas de trabalho.
No início de junho, durante os protestos globais de anti-racismo, Samantha Ware, membro do elenco na última temporada, usou o Twitter para acusar Lea Michele de transformar a sua passagem na série num "inferno vivo". Michele, que teve várias altercações conhecidas com Naya Rivera, pediu desculpa, mas acabou por perder uma parceria com uma empresa por causa das acusações. Seguiram-se outros atores de “Glee” a corroborarem a história de Samantha Ware e Michele acabou por apagar a sua conta de Twitter.
Violência doméstica dentro do elenco
Outro dos episódios mais dramáticos dos bastidores aconteceu com dois dos atores que integraram a quarta temporada. Em março de 2016, a atriz Melissa Benoist foi ao Tonight Show do Jimmy Fallon com o seu olho esquerdo inchado. A resposta preparada escondeu-se atrás de gargalhadas e uma história bem construída: o seu cão não parava quieto, ela tropeçou nele, caiu e bateu com a cara num vaso. Ninguém desconfiou do episódio, tal a mestria de Benoist em encobrir a real razão do ferimento - uma relação abusiva de três anos. No final do ano passado, a atriz revelou tudo num longo vídeo de Instagram, onde confessou que a lesão da sua íris se devia ao facto de lhe ter sido atirado um iPhone à cara, durante uma disputa doméstica, provocando uma lesão de carácter permanente.
Apesar de Benoist não ter referido o nome do ex-marido, não foi difícil encaixar as peças. Em 2015, a atriz casou-se com colega de “Glee”, Blake Jenner, e passado apenas um ano ela pediu o divórcio, alegando "diferenças irreconciliáveis".
Pedofilia, violência doméstica, suicídio, overdoses, bullying e morte. Elencado desta maneira, pode ser convidativo a tecerem-se conspirações sobre uma “maldição do Glee”, especialmente agora, na sequência deste trágico acidente. E algumas publicações digitais e internautas não perderam tempo a fazê-lo.
Mas se é verdade que a série acaba por estar ligada a estas tragédias, não é menos verdade que outros dos seus protagonistas tiveram várias alegrias. Chris Colfer, um dos oito atores iniciais da série, já escreveu 15 livros e tornou um deles num filme; Darren Criss, Blaine Anderson na série, protagonizou outras duas produções de sucesso do Ryan Murpy, o criador de “Glee” ("American Crime Story" e, mais recentemente, "Hollywood"); Heather Morris teve dois filhos, assim como Matthew Morrison, o eterno Mr. Schue, e a estrela principal, Lea Michele, está grávida do primeiro filho.
Resumindo: pode ser atrativo tentar estabelecer um padrão ou uma narrativa de maior escala para racionalizar todos estes acontecimentos, mas a verdade é que, com uma amostra tão grande de pessoas (no IMDB contam-se mais de mil personagens de relevo), é apenas natural que "a vida aconteça". Apesar disso, a sequência de eventos não deixa de ser arrepiante – há vários vídeos na Internet que compilam algumas cenas de “Glee” que, vistas agora, parecem um preâmbulo à vida real e, na sequência do afogamento de Rivera, o número musical em que canta “If I Die Young”, no episódio de homenagem ao falecido colega Cory Monteith, as letras “sink me in the river at dawn” adquirem um tom sinistro.
Ao agrupar estes eventos trágicos numa glorificação do macabro corremos o risco de incorrer na dessensibilização das tragédias individuais que cada uma representa. É fácil, quando se fala de figuras públicas, esquecermo-nos de que são seres humanos com uma vida para lá da personagem que tanto gostamos ou adoramos desprezar. O que aconteceu a Naya Rivera é tristíssimo e basta olhar para a chuva de testemunhos emotivos que se têm espalhado nas redes sociais nos últimos dias para perceber o quão admirada era; estas mensagens podem, muitas vezes, cair em clichés e pêsames vazios, mas basta ler alguns destes textos para perceber que a atriz teve um profundo impacto tanto nos fãs que a acompanhavam como nos amigos que a rodeavam – no caso de “Glee”, com o seu extenso elenco e equipa técnica, é especialmente tocante ver que todos os atores prestaram homenagens sentidas.
Rivera fez de Santana Lopez uma personagem inesquecível e, mais que isso, um marco cultural para as comunidades hispânica e LGBTQ+. Nos primeiros episódios, Santana aparece como um acessório, uma nota de rodapé, apenas mais uma personagem estereotipada - a Latina sexualizada e sem filtros, que insulta tudo e todos, e existe sem ter a complexidade emocional das personagens principais, estando ali apenas para contrabalançar e humanizar Quinn Fabray, a heroína loira e virginal que cai do topo da pirâmide social e moral quando engravida. Santana Lopez foi tudo isso, com as suas facas afiadas de timing cómico perfeito, raiva a brilhar nos olhos e sorriso maléfico nos lábios.
Mas Naya pegou nas migalhas que os guionistas lhe deram e, a reboque do seu carisma pessoal, demonstrou a sua enorme amplitude de representação, dando vida e nuances a uma personagem que poderia ser vazia. As tiradas extraordinárias, escritas por Murphy, Brennan e Falchuk, distinguiram-na ao início; a surpresa surgiu com a profundidade da sua representação. Tal como escrevem os criadores da série num comunicado que publicaram em conjunto, “ela conseguia fazer a melhor piada e também esmagar-te com uma cena emocional. Ela movia-se facilmente entre ser assustadoramente dura e profundamente vulnerável”.
Santana Lopez foi tudo isso e muito, muito mais. A mestria com que dominava um vasto leque de emoções tornou-a numa das personagens mais memoráveis, realistas e humanas de “Glee”. A sua entrada no grupo coral começou como uma piada, mas rapidamente todos perceberam a mais-valia da sua voz, com mais alcance e textura do que se esperava; a relação sugestiva que tinha com a melhor amiga, Brittany S. Pierce - no início apenas um apontamento cómico reservado para estas personagens secundárias - tornou-se na relação mais bem conseguida da série.
Típico de séries sobre o ambiente adolescente do ensino secundário, as personagens namoravam umas com as outras, e, apesar dos esforços dos guionistas para manter as relações românticas interessantes, foi a parelha Santana e Britanny, as eternas “Brittana”, que roubou as atenções. Em 2009, o envolvimento sério, apaixonado e público entre duas adolescentes era inédito, especialmente quando uma das envolvidas não era branca. Foi Naya Rivera quem melhor conseguiu “vender” o desabrochar deste amor, uma relação que se tornou vital para a continuação da série e que imortalizou alguns dos melhores momentos de “Glee”.
Para uma personagem desenhada para ser malvada, a sua relação com Brittany permitiu desvendar um lado interior atencioso e carinhoso. Na segunda temporada, com uma versão acústica de “Landslide”, dos Fleetwood Mac, Santana percebe, talvez pela primeira vez, a magnitude dos sentimentos que nutre por Brittany. As nuances da representação de Rivera são sublimes e são (não há outra palavra) bonitas de testemunhar.
Mas uma das melhores performances de Rivera, e de toda a série, acontece na terceira temporada, depois da orientação sexual de Santana ser exposta sem o seu consentimento. No palco, enquanto tenta conter lágrimas, vemos a sua dor em ebulição num mashup das músicas de Adele, “Rumor Has It” e “Someone Like You”. As letras “don’t forget me, I beg” eram, e continuam a ser, um pedido ridículo - tanto Santana como Naya são inesquecíveis.
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