Agora vejo
a terra de novo
Erguer-se, verde,
outra vez das ondas;
As cataratas precipitam-se, e a águia voa,
E apanha peixe
no sopé dos penhascos.
«A Profecia da Mulher Sábia», Edda
CAPÍTULO 1
O Homem das Limpezas mantém-se atento ao relógio. Desde que pôs os nacos de carne no tabuleiro da comida passam quarenta e um segundos até a primeira águia, uma fêmea, aterrar.
Nunca sabe dizer ao certo de onde vem. Podia até ter estado empoleirada numa árvore próxima. Ou a pairar a uns dois mil metros, lá em cima. Com uma visão assim, duzentas vezes mais aguçada do que a do ser humano, consegue distinguir uma presa a vários quilómetros de distância. Ele está sentado a cinquenta metros do engodo, bem oculto no seu esconderijo, a observar a refeição pelos binóculos.
Rapina guloseimas (duas palavras 5,5). Águia doces. A ternura que ele sente pelas aves não é amor paternal, pois que sabe ele disso? No entanto, não consegue deixar de pensar nelas como seus filhos.
Pensa nelas antes de adormecer. No momento em que acorda. Quando realiza todas as tarefas essenciais, como rachar lenha, confecionar as refeições ou acender a lareira, pensa nelas. Terão acasalado? As crias terão sobrevivido? Conseguirão encontrar comida suficiente? Sobreviverão ao inverno? Sim. Com a sua ajuda e um bom ano para os arganazes, hão de safar-se.
Esfrega os olhos com os nós dos dedos. O Sol vai agora mais alto, e aquece-lhe as costas. Talvez seja a última vez, neste outono. Não importa. Esta casa fica num canto do mundo esquecido da humanidade. Embora «casa» seja um tudo-nada exagerado. Uma cabana comprida que ficou desocupada desde que os últimos guardas-florestais se foram embora no início dos anos 1960 e a área foi classificada como parque nacional.
É uma região acidentada, com a sua estrutura irregular de floresta primitiva, lagoas, pauis e montanhas. E não há uma estrada digna desse nome que conduza até cá. Além dos trilhos feitos pelos animais, os únicos sinais visíveis são os vestígios ténues de uma antiga estrada florestal que a natureza se afadiga a reclamar. O único modo de chegar é a pé ou de moto 4, e é preciso saber o caminho.
Fica a uns bons dez quilómetros da estrada mais próxima e ele limita os seus movimentos ao raio de uns dois à volta da cabana. Quando foi ali pela primeira vez, marcou o caminho com ramos, para não se perder. Este pequeno território oferece-lhe um curso de água onde pescar, árvores tombadas para recolher lenha e clareiras convenientes onde pode vigiar aves e caça miúda.
A cabana é o seu santuário. Modernizada no mínimo, com um gerador a gasóleo que ele usa para carregar o telefone. Aqui não é ninguém. Um homem sem nome, sem passado nem futuro. É, simplesmente. Vive cada dia como este se apresenta. Deita-se cedo. Levanta-se com a alvorada. Faz o que tem de fazer sem se deter a pensar se é bom ou mau.
Há datas gravadas nas paredes de troncos. E nomes. Mensagens para o futuro de outros homens solitários. Olof Persson 1881. Lars Persson 1890. Sven-Erik Eskola 1910. E por aí fora. Mas o que é a solidão, senão relativa? Podem passar-se meses sem que ele fale com alguém a não ser consigo mesmo, com os pássaros, as árvores e até as pedras. Contudo, sente-se menos só do que nunca. Como se tivesse regressado à infância. A cada dia que passa fica mais próximo do rapaz que se refugiou na floresta. O rapaz que aprendeu como o mundo era composto sentando-se completamente imóvel a observar a dança de acasalamento do tetraz-lira na primavera. A seguir as evoluções da raposa que vela pelas crias, das formigas-da-madeira que começam o seu turno no formigueiro ou do gorgulho que abre caminho na espruce.
O rapaz tem um pai. Um demónio bem constituído com braços que chegam a todo o lado. O rapaz tem uma mãe. Ninguém a tem em consideração. O rapaz tem um irmão. Foge, diz ele quando o pai chega a casa, e o rapaz corre para a floresta.
Apanha um licranço. Quando este larga a cauda, apanha-o outra vez. Tira a faca da bainha, decepa o animal e tudo se queda em silêncio. Ele é o silêncio.
O rapaz pousa o licranço sobre uma rocha. Encosta-se ao tronco de uma espruce e limpa a lâmina da faca às calças. Roça com ela numa unha. No seu gume afiado há liberdade. Ninguém lhe pode tirar isso.
Está a chegar outra águia. Esta é um jovem macho. Ainda não tem na barriga as penas brancas da maturidade sexual, nem o bico amarelo. Terá nascido no ano passado. No máximo, dois anos, escreve ele no seu bloco de notas. Não é costume, mas acontece de tempos a tempos, acrescenta ele, as águias jovens ficarem onde nasceram, em vez de irem para sul. Possível deficiência ou doença. Ponto de interrogação. Manter debaixo de olho. Ponto de exclamação.
A fêmea está tão embrenhada que nem se incomoda a olhar quando o jovem macho, que primeiro descreveu um círculo sobre a comida, ousa aterrar. Agora restam sobretudo pedacinhos de ossos. Ela deixa-o aproximar-se. Eles puxam e rasgam até que os tendões se separam e lhes deslizam pelas goelas como esparguete.
Em poucos minutos, o ponto alto do dia chega ao fim. Ele arruma na mochila o bloco de notas e o termo. Passa a bandoleira da espingarda sobre o ombro e rasteja para fora do seu esconderijo. A perna direita fica para trás, como de costume. Ele tem de a virar com a mão na direção da cabana. Envereda por um trilho feito por animais. As bétulas, os amieiros e os salgueiros já perderam a folha. Ele colhe uma mão-cheia de arandos-vermelhos e faz uma careta agridoce. Agridoce descreve também o cheiro libertado pelos nacos de carne deixados no bidão de plástico com tampa. Apesar de estar bem camuflado debaixo de uma espruce. Devia pôr tudo aquilo no tabuleiro de alimentação de uma vez só, mas não é capaz. O tempo que passa com as águias é-lhe vital. É por elas que ele respira, come, dorme, defeca. Amanhã virá de novo até aqui. E então o telefone toca. Só há uma pessoa que tem este número. Só há uma pessoa a quem ele telefona.
– Sim – diz ele. – Combinado. Amanhã de manhã. Okay.
Está uma manhã mais fria do que o habitual. Ele põe mais dois cepos na lareira e aquece as mãos envolvendo uma caneca de café. Se quiser chegar a horas à estrada vai ter de sair cedo. Podem acontecer coisas pelo caminho. A moto 4 pode avariar. O terreno pode estar alagado.
Caminha os primeiros quilómetros, até ao local onde tem a moto 4 escondida. Apenas por precaução. Se alguém a descobrir, por pouco provável que isso seja, será impossível fazer a ligação à cabana ou a ele.
Enquanto caminha, mantém-se atento à eventual presença de águias-pesqueiras. Um dos ninhos fica para estes lados, mas não se avistam aves. É pena. Ter-lhe-ia dado uma boa sensação, algo a que se agarrar. Não que ele esteja com receio, mas ainda assim. Uma águia-pesqueira é um sinal. Um bom sinal.
Quando chega, retira os ramos da espruce de cima da máquina, põe a mochila na mala dianteira e dirige-se para o local do encontro.
O solo está seco o suficiente, tudo corre como previsto. Chega com dez minutos de avanço e mantém-se bem escondido da estrada, antes de conduzir até à cancela e dar meia-volta com a moto 4 para a viagem de regresso.
O carro já está estacionado. É sempre a mesma pessoa que faz a entrega. O Homem das Limpezas conhece-o como Homem das Entregas. O Homem das Entregas conhece-o como Homem das Limpezas. Não se conhecem. Trocam poucas palavras.
– De quem recebes ordens? – pergunta ele.
A resposta tranquiliza-o. Quanto mais curta for a cadeia de comando, menos elos terá.
Desta vez ele pediu algumas coisas de que precisa. Uma garrafa de whisky e alguns produtos alimentares frescos. E os jornais, como de costume. Empurra-os para dentro da mala e regressa ao carro.
O Homem das Entregas retira a sua encomenda do assento traseiro.
Uma mulher, o que não é habitual. Tem as mãos atadas atrás das costas e traz um capuz a cobrir-lhe a cabeça. Sons indistintos indicam que tem a boca tapada com fita-adesiva. Pelo menos ele não terá de aturar a sua tagarelice.
– Faz com ela o que quiseres – diz o Homem das Entregas. – Tens carta-branca.
O que ele quiser, desde que faça o seu trabalho.
Os indivíduos que lhe caíram nas mãos tiveram o seu destino. Quanto a isso, a consciência dele está tranquila. Não mata por sexo nem é psicopata, embora o resto do mundo talvez o veja como um assassino que segue os seus instintos mais básicos.
Ele e os seus chefes têm um acordo. Enquanto eles cumprirem a sua parte do combinado, ele cumpri-la-á também. – O que é que ela fez? – pergunta ele, ao contrário do que lhe é habitual. Porventura por ser mulher. Porventura por o Homem das Entregas ser a primeira pessoa com quem fala há muito tempo.
– Não sei – responde o HE, e o HL acredita nele.
Sobe para a moto 4 e o HE ajuda-o a ajeitar o corpo à sua frente. Corpo soa melhor do que mulher.
– Põe também o cinto de segurança – diz. – É melhor, não é, queridinha? Não queremos que caias.
Ergue a mão numa despedida e conduz de regresso à cabana.
Enquanto cobre de novo o veículo com a camuflagem, o corpo fica de pé, amarrado a uma árvore. Não está completamente silencioso. Solta pequenos gemidos, como um gato doente. Gatos doentes têm de ser abatidos. Continua a não se avistar águias-pesqueiras.
– Vamos lá – diz ele, e empurra o corpo diante de si. Nota que não está tão em forma como ele próprio. No último troço do caminho tem de lhe dar pontapés nas patas traseiras, para que os pés se mantenham em movimento.
De costume não leva corpos para dentro da cabana. Esta é uma exceção. Empurra-o para a cama e puxa uma cadeira para si próprio.
– Lazer antes do trabalho, pode ser? – pergunta ele ao corpo. – E talvez pôr mais uns cavacos no lume: não achas que está frio aqui?
O gato geme. Ele sente-se ficar duro. Afinal de contas, uma mulher é uma mulher.
Arranca as calças e as cuecas do corpo. Fica excitado ao ver o que ela tem debaixo dos trapos. É um corpo relativamente jovem. Uns trinta e cinco anos, talvez. No máximo, quarenta. A idade não importa.
Começa por pensar que levará o seu tempo, apreciará as vistas, por assim dizer, mas está demasiado aceso para ser paciente. Rasga um pedaço de película aderente, sabe-se lá que merdas ela pode ter, enrola-o umas duas vezes à volta da ereção e posiciona o corpo para ficar num ângulo perfeito para a penetração.
– Podes ficar uns dia na cabana, para nos conhecermos melhor – diz ele, e atrapalha-se como uma virgem num retiro da igreja. Nem chega a entrar antes de ejacular.
Depois de a respiração regressar ao normal e o desejo amainar, repara que o corpo se urinou.
Urinou-se na cama dele, o que decide tudo.
– Já não te quero conhecer melhor – declara. Puxa o fecho das suas calças e prepara o corpo para partir.
O corpo mal consegue caminhar. Ameaça desmaiar, por isso ele não o leva até tão longe como planeara. Amarra-o a uma árvore pela segunda vez e desata o cordão do saco de pano onde guarda a arma.
Contempla a bela máquina. Atarraxa o silenciador e segura a pistola entre as duas mãos, em jeito de consagração do ato que se prepara para praticar.
Miau. A gatinha não vai ter de sofrer mais.
Comentários