Entre aplausos, lágrimas e aclamações, três milhões de brasileiros já assistiram nos cinemas a esta longa metragem sobre a ditadura militar (1964-1985), tornando-o o maior sucesso do cinema latino-americano em 2024. Em Portugal estreia a 16 de janeiro.
"Ainda Estou Aqui" mostra a luta de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, para esclarecer o desaparecimento do marido, o ex-deputado progressista Rubens Paiva, sequestrado pelos militares em 1971.
O caso, vivido de perto por Salles durante a adolescência, repercutiu até no exterior, mas o corpo de Rubens nunca foi encontrado.
O Brasil não julgou os crimes do regime militar, que deixou mais de 400 mortos e desaparecidos políticos, além de milhares de vítimas de torturas e detenções ilegais.
A dureza dos factos contrasta com o ambiente do filme, um Rio de Janeiro caloroso, com casas singelas em frente à praia do Leblon – diferente dos altos prédios que hoje dominam a orla –, e com o calor humano que emana da casa de Eunice e dos seus cinco filhos.
"Ainda Estou Aqui" é o mais recente sucesso de Salles, realizador de "Diários de Motocicleta" (2004) e "Central do Brasil" (1998), protagonizado por Fernanda Montenegro, mãe de Torres, hoje com 95 anos e com uma participação breve no filme, como Eunice na sua velhice.
Embora trate de factos históricos, o filme contém uma fibra atual?
Walter Salles: Quando começámos o projeto, em 2016, parecia-nos uma hipótese de olhar para trás para entender de onde vínhamos. Mas com o crescimento da extrema direita no Brasil, a partir de 2017, percebemos que também era um filme para entender o presente. Hoje existe um projeto de poder baseado no apagamento da memória, e perante isso as formas de expressão artística ganham uma importância maior.
Fernanda Torres: É um filme sobre o presente. Tivemos um presidente [Jair Bolsonaro] que elogiou um torturador da ditadura e que acha que os militares "salvaram" o Brasil do comunismo. 'Ainda Estou Aqui' traz uma reflexão importante, enquanto vemos que os porões da ditadura hoje continuam abertos. Toca o coração de gregos e troianos, qualquer pessoa que assista ao filme pensa: "Isto está errado, essa família não tinha por que ser perseguida".
Que efeito "Ainda Estou Aqui" pode produzir em espectadores não brasileiros?
WS: Em festivais internacionais encontramos reações semelhantes às do Brasil, porque não somos o único país que percebe a fragilidade da democracia nem que vive, ou viveu, o trauma da extrema direita. Sean Penn assistiu ao filme no dia da eleição de Donald Trump, e ao apresentá-lo em Los Angeles falou do sorriso da Eunice Paiva como um exemplo de resistência para o que virá nos Estados Unidos."
FT: Vivemos em um mundo instável, as novas tecnologias mudaram as relações sociais. E em momentos assim ressurgem desejos de Estados autoritários que restabeleçam a ordem. Através do ponto de vista de uma família, o filme mostra o que significa de facto viver num país com um governo violento, que suspende os direitos civis.
O filme conta uma história triste, mas há momentos em que o espectador sorri. Por que isso acontece?
FT: O cinema de Walter aborda o sublime. O filme é esperançoso, tanto pela sua própria existência quanto pela resiliência e alegria dessa família. Conta uma tragédia, mas não se sai do cinema sem esperanças. Pelo contrário, pensa-se: "Essas pessoas resistiram, sobreviveram, existem".
O filme começa com uma reconstrução minuciosa da vida na casa dos Paiva, no Rio de Janeiro dos anos 1970, antes do drama familiar. De onde vem essa evocação?
WS: São memórias da minha adolescência. A minha namorada dos 13 ou 14 anos era amiga de uma das filhas do Paiva, então passei muito tempo com eles. Aquela casa era outro país, onde a discussão política era livre, onde se falava de livros e discos censurados. Mas ali também descobri uma violência que desconhecia. O dia que Rubens foi levado para nunca mais voltar marcou um antes e depois para todos que tínhamos participado naquele microcosmos. Se tínhamos alguma inocência, perdemos naquele dia.
Como lidam com as expectativas do Oscar?
FT: Acho que as hipóteses de nomeação são grandes, mas não sei se levamos, porque foi um ano com filmes incríveis. Mas tudo o que já aconteceu com o filme foi extraordinário."
WS: Os prémios servem para que mais gente veja o filme, e nesse sentido eu gostaria que acontecesse. Mas se vier, ótimo, e se não, a vida continua. Parto sempre do pressuposto de que alguém otimista é alguém mal informado.
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