Ganhar o Nobel "é receber a responsabilidade de testemunhar (...) uma forma de justiça em relação ao mundo", afirmou a autora, a primeira mulher francesa a receber o Prémio Nobel de Literatura, juntando-se a outros 15 compatriotas que já o ganharam, incluindo Albert Camus e Jean-Paul Sartre (que o rejeitou). O último foi Patrick Modiano, em 2014.
Professora de Literatura da Universidade de Cergy-Pontoise — cidade localizada nos subúrbios de Paris onde vive desde 1977 —, Ernaux escreveu quase 20 obras, nas quais analisa a luta de classes e a paixão amorosa, dois temas que marcaram a sua vida, de origens humildes.
Nascida em Lillebonne, em França, em 1940, a família de Ernaux mudou-se poucos anos depois para a zona operária de Yvetot, um lugar "sujo, feio", onde a escritora morou no café e mercearia administrado pelos seus pai, fez os estudos secundários e “encontrou raparigas de contextos mais classe média, experienciando a vergonha do seu meio operário pela primeira vez”, como se pode ler na biografia disponível numa página sobre a autora de "Uma Mulher", criada por várias especialistas universitárias na obra da francesa.
Escritora alta e loira, Ernaux deixou tal ambiente humilde e popular graças aos estudos e a um diploma em Letras Modernas na Universidade de Rouen, passando a dar aulas de ensino secundário a partir da década de 1970 até 2000.
O primeiro livro de Ernaux é publicado em 1974, com o título “Les Armoires Vides” (“Os Armários Vazios”, em tradução livre, inédito em Portugal), uma estreia literária feita na conceituada editora Gallimard, autobiográfica e sobre o aborto que fez dez anos antes, romance de tom áspero e violento.
Nele, a protagonista descreve os dois mundos incompatíveis em que vive na adolescência: por um lado, o da ignorância, da grossaria dos clientes bêbados do café, da estreiteza do seus pais e, por outro, o "da facilidade, da leveza das meninas" das classes mais abastadas com quem convive na escola.
As suas obras acabam sempre por girar em torno desse passado familiar. Ernaux repara o que considera uma traição aos pais com "Um Lugar" e "Uma Mulher" (1988). Destaca-se também "O Acontecimento" (2000), sobre o drama de um aborto clandestino que sofreu em 1963, e que foi transformado em filme no ano passado.
O facto de Ernaux – uma mulher - abordar a sua intimidade levou a que a crítica literária francesa fosse particularmente dura nas suas análises: “Era um ‘leitmotif’ quando as pessoas falavam dos meus livros. Viam indecência em todo o lado. Na realidade, era apenas dirigido a mulheres”, disse Ernaux, que defendeu a sua escrita como “política”, ao Financial Times, em 2020.
Nesse mesmo texto do jornal britânico é citado um editor parisiense, amigo de Ernaux, que lembrou que a escritora costumava ser “desprezada” enquanto uma “pequena professora da província” e “uma mulher que escrevia sobre si própria”, para agora ver a perspetiva mudada: “Um pouco como Marguerite Duras, ela pode escrever uma lista das compras e toda a gente a acha espetacular”.
O seu estilo seco e sem lirismo tem sido objeto de estudo, sendo apelidado como "autobiografia impessoal". No entanto, a escritora rejeita o termo “autoficção” e esclarece que não é “uma escritora que se foque nas emoções”. “Líder do romance social contemporâneo”, foi como o jornal Le Monde a adjetivou em 2019, quando foi publicado um perfil da escritora a propósito da “descoberta” de que a sua obra estava a ser alvo no mundo anglófono
É com "Os Anos" (2008) que consegue evocar o destino de toda a sua geração, a dos filhos da guerra marcados pelo existencialismo do pós-guerra e depois, nos anos 1960, pela libertação sexual. Através da evocação de objetos, palavras, canções, até transmissões de televisão, consegue reencarnar esses anos agitados.
No último Festival de Cannes, em maio, Ernaux voltou ao mesmo guião mas em formato audiovisual, com dezenas de pequenas gravações familiares em Super 8, filmadas pelo seu ex-marido entre 1972 e 1981. O resultado foi "Les années super 8", apresentado durante a Quinzena dos Realizadores. Annie Ernaux é "uma mulher que escreve, é tudo", declarou à AFP durante o festival.
"Não me considero um ser singular, mas como uma soma de experiências, também de determinações, sociais, históricas, sexuais, de linguagens, continuamente em diálogo com o mundo (passado e presente)", explica em "L'écriture comme un couteau" ("A escrita como uma faca", em tradução livre).
Forte apoiante do movimento #MeToo e dos Coletes Amarelos, Ernaux já recusou fazer parte do júri do prémio Goncourt. Uma das suas referências é a feminista Simone de Beauvoir, de quem segue com atenção cuidadosa os detalhes que marcam a sua vida: "A Vergonha" (1997), sobre a perda da virgindade, o aborto clandestino em "O Acontecimento", o fracasso do seu casamento em "Uma Mulher cCongelada" (1981) ou a experiência do cancro da mama em "L'usage de la photo" (2005). Com "Uma Paixão Simples" (1992) descreve de maneira crua a alienação do amor.
Vencedora do Prémio Renaudot, por “La Place” ("Um Lugar"), de 1984, ganhou maior relevo com “Os Anos”, em 2008. Em 2017, conquistou o prémio Marguerite Yourcenar pela totalidade da sua obra. No ano seguinte, foi finalista do Booker Internacional com a tradução para inglês de “Os Anos”.
O presidente francês Emmanuel Macron saudou a entrega do Prémio Nobel a Ernaux, segundo ele "a voz da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século". Ela "escreve, há 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima do nosso país", acrescenta.
"Ernaux está interessada na verdade da experiência, seja qual for a forma que possa adotar, e isto é o que distingue o seu trabalho da autobiografia ou do livro de memórias convencional", podia ler-se na Paris Review, em 2018.
Um ano depois, quando a BBC a entrevistou, na sequência da sua publicação no Reino Unido e da sua nomeação para o Booker Internacional, quis saber por que motivo Ernaux usava sempre a segunda pessoa do singular ou a primeira do plural, em vez do "eu", numa obra de raiz tão autobiográfica.
"Porque o que me interessa é a nossa relação com o mundo em volta", respondeu, uma relação que não se esgota numa só pessoa.
Annie Ernaux entrou em Portugal com "O Lugar", pela editora antiga Fragmentos, em 1987, novela que voltaria a ser publicada em 2000, com "Uma Mulher", num só volume, pelos Livros do Brasil, que em 1993 já editara "Uma Paixão Simples".
Desde então, esta atual chancela da Porto Editora respondeu pela publicação em Portugal da Nobel da Literatura 2022, com "Os Anos", em 2008, que retomou já este ano, depois de ter reeditado "Uma Paixão Simples", em 2020.
"O Acontecimento" chegou ao mercado livreiro português no passado mês de setembro.
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