Com uma lotação já esgotada na ordem das 1.500 pessoas, a produção “A Fábrica — Memórias e Sonhos” terá uma única exibição e vai desenrolar-se em diferentes espaços exteriores do complexo industrial da antiga Martins & Rebello, que, em meados do século XX, chegou a empregar 700 trabalhadores em simultâneo, assegurava a subsistência de centenas de famílias dessa região do distrito de Aveiro e fabricava produtos como o chocolate em pó Vigormalte, o queijo Castelões e a manteiga Primor.
Foi com referências mais ou menos diretas a marcas, máquinas, operários, rotinas, hábitos e até “pequenas transgressões” da época áurea da fábrica, entre 1950 e 1970, que António Capelo — com a sua equipa do Teatro do Bolhão e da respetiva ACE – Escola de Artes — compôs o espetáculo que, embora sustentado em pesquisa histórica e testemunhos de ex-operários, evita o registo documental e privilegia antes “a imaginação, o bizarro e a fantasia”.
“Quando viemos conhecer os edifícios da fábrica, percebemos que havia muitas condicionantes e que não podíamos usar os espaços interiores, por estarem muito degradados e não terem condições de segurança, mas vimos logo o potencial das áreas exteriores e que isto ia ser um cenário muito rico para uma viagem pelo tempo, pelas memórias e por alguns aspetos marcantes da vida e do trabalho das pessoas que aqui andavam”, revelou António Capelo à Lusa, entre instruções a técnicos e intérpretes.
Apontando para uma zona do complexo, o ator conta que era aí, por exemplo, que “as pessoas eram apalpadas à saída da fábrica para verificar se levavam queijos escondidos para casa”; indicando outra zona, diz que essa acolhia uma oficina de máquinas e carros, porque a empresa “era autossuficiente e garantia ela mesma a manutenção dos seus equipamentos”; mencionando outro recanto, chama-lhe “o muro da vergonha” porque era nele que os rapazes da zona se sentavam na hora da mudança de turno “para apreciar as raparigas e lhes mandar uns piropos”.
António Neves, hoje com 71 anos, ri-se perante essa recordação, confirmando que até os moços de Arouca, Sever e Azeméis cirandavam pela zona “para ver as queijeiras a passar”.
António Neves é um dos habitantes de Vale de Cambra que participam no espetáculo, enquanto membro da Associação de Promoção e Desenvolvimento de Castelões, e mostra-se satisfeito por ver agora a Martins & Rebello com uma dinâmica a lembrar aquela dos seus “tempos de glória, quando que o movimento era constante, a fábrica era uma referência nacional e tudo girava à volta dela”.
Já com vários anos de teatro amador, António Neves assume que a novidade de ser dirigido por António Capelo e a sua equipa também influi nessa satisfação. “É outro nível”, afirma, sobretudo pela exigência que reconhece ao “grande esforço que é coordenar tanta gente” e controlar tantos palcos.
Susana Paiva, atriz profissional recrutada para fazer assistência de atores no projeto, tem idêntica perspetiva e, precisamente por isso, defende que “o mais importante nestas coisas nunca é a estreia — é todo o processo antes”, pelo “enriquecimento” que proporciona a qualquer agente das artes cénicas, seja ele profissional ou não.
Lia Silva tem 17 anos, ainda está a meio do curso de Cenografia, Figurinos e Adereços da ACE, mas também já percebeu isso.
No pavilhão onde engoma roupa com colegas que costuram perucas barrocas, ultimam trajes de burgueses, pintam cartazes de Primor e aplicam luzes LED em asas de anjo, lamenta que na envolvente da fábrica não haja ruas comerciais cheias de lojas para os seus momentos de pausa, como acontece no Porto, onde tem as aulas, mas garante: “Estou a gostar muito deste trabalho porque é ‘real’, mais próximo da realidade profissional. E também tem a vantagem de nos pôr a falar com muita gente de fora da escola e de diferentes faixas etárias”.
Financiado com 40.000 euros por iniciativa da ADRIMAG – Associação de Desenvolvimento Rural Integrado das Serras do Montemuro, Arada e Gralheira, o espetáculo “A Fábrica — Memórias e Sonhos” conta ainda com a participação do INAC – Instituto Nacional das Artes do Circo e de várias coletividades de Vale de Cambra, cujos elementos se associaram ao projeto como atores, bailarinos, músicos e até vendedores, considerando que a apresentação integra um arraial com danças e bancas de mercado logo a partir das 20:00.
Fundada em 1901 em Lisboa e instalada em Vale de Cambra em 1906, a fábrica Martins & Rebello chegou a ser a maior da Península Ibérica no ramo dos laticínios, tendo-se afirmado nas antigas colónias portuguesas e na Europa como fabricante de leite condensado, evaporado e em pó, lactose, caseína, vários tipos de queijo e produtos dietéticos. Segundo a historiadora local Clara Vide, o declínio da empresa começou após o 25 de Abril, quando “deixou de fornecer o Exército e os hospitais do Estado, por exemplo”, e “as cooperativas ficaram com o monopólio das matérias-primas”, o que, juntamente com outras dificuldades, contribuiu para a falência da fábrica nos anos 1990 e o seu encerramento definitivo em 2001.
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