Fazer fila em frente a um clube de música mesmo sabendo que não vai abrir. É isso que vai acontecer este sábado pelas 15:00, em Lisboa, Porto, Viseu e Évora, com lema #Ao vivo ou morto.

“Junta-te à fila para que o circuito não morra” é o convite feito pela associação Circuito, que une 27 salas e clubes independentes que são, na sua génese, espaços de programação cultural focados maioritariamente na programação de música popular atual ao vivo, os ditos "grassroots music venues".

A associação Circuito já estava a ser pensada e muito trabalho já tinha sido investido nela quando surgiu a crise pandémica: "Junta-se ao nosso interesse uma urgência de sobrevivência", diz ao SAPO24 Gonçalo Riscado, diretor do Musicbox, em Lisboa, e um dos porta-vozes da Circuito. A associação une 27 clubes que, apesar de diferentes, estão a passar pelas mesmas dificuldades.

É em salas como o Musicbox, no Cais do Sodré, o Hard Club, no Porto, ou o Carmo 81, em Viseu, que muitos artistas atuam e onde tantos outros têm as primeiras oportunidades de tocar. "Hoje em dia, este circuito de clubes e salas de programação de música é tido com um - se não o - dos pilares essenciais a toda a indústria da música e do setor da música, e não só porque estes espaços têm mais valências para lá da música", explica Gonçalo. "Se olharmos para a diversidade das casas, temos quase todos os géneros musicais da música popular atual representados".

"Estamos a explicar às pessoas a importância deste circuito e os números", começa por dizer um dos porta-vozes da associação. E que números são estes? Estas 27 salas, segundo a Circuito, promoveram no ano passado “7.537 atuações musicais, envolvendo milhares de autores, intérpretes e outros profissionais do espetáculo, para uma audiência de 1.178.847 pessoas”.

"São números incríveis", continua Gonçalo, "e ao mesmo tempo que tentamos sensibilizar as pessoas, estamos a pedir medidas urgentes de sobrevivência: apoio e investimento para que os custos fixos destas estruturas - que ainda não tiveram nenhum apoio para além das moratórias de crédito e o layoff ". Gonçalo explica que estas últimas não significam "o estancar dos custos fixos" (que envolvem rendas, contratos de serviços como água, luz, gás, comunicações...). "Desde março, todas estas salas têm um saldo negativo mensal que se acumula e sem nenhuma perspetiva de o poder estancar."

Alguns clubes já tiveram de fechar, como é o caso do Clube de Vila Real (leva 125 anos de história na cidade), do Sabotage em Lisboa, ou da Galeria Arco 8 em Ponta Delgada.

O que a associação pede é o "investimento urgente neste circuito para que possa estar cá quando for possível regressar e fazer o trabalho - que é tão importante para os artistas e para a economia. Estamos a falar de um setor e circuito cujo valor é muito superior à soma das atividades das casas. E se o deixarmos desaparecer, o custo de recriar este circuito é gigantesco. Portanto, este investimento é muito sensato do ponto de vista cultural e económico - até porque estas salas são muito importantes na atratividade das cidades", enumera Gonçalo.

O investimento nos custos fixos destas estruturas, que a Circuito pede, já é feito no estrangeiro: Países Baixos, Escócia e Dinamarca beneficiaram deste apoio, como a associação compilou no site.

Quanto ao valor que seria necessário "ronda os 200 mil euros mensais para salvar as 27 salas", que são de pequena e média dimensão, afirma Gonçalo Riscado ao SAPO24, reforçando que teriam de estar ativos os layoffs e as moratórias.

A manifestação deste sábado será o culminar de uma campanha, iniciada a 8 de outubro, criada “em resposta à cada vez maior ameaça à sobrevivência de 27 salas de programação de música em todo o país”, e “protagonizada por nomes de vários quadrantes da música nacional como Gisela João, Tomás Wallenstein, Marfox, Yen Sung e Hélio Morais”.

Em Lisboa, a “fila” irá formar-se à porta do Lux-Frágil, no Porto em frente aos Maus Hábitos, em Viseu no Carmo 81 e em Évora na Sociedade Harmonia Eborense. "Esta manifestação visa, primeiro, sensibilizar as pessoas e chamar a atenção para espaços que poderão ter que encerrar se não for feito este investimento; pedir aos decisores que haja uma intervenção; e depois, a nível de estratégias de investimento na cultura, na programação, na circulação dos artistas, na criação, pedimos que estes espaços passem a integrar as oportunidades de apoio às artes porque estes espaços são os que estão mais próximos das comunidades artísticas ligadas à música - independentemente do alcance do artista porque a grande maioria dos artistas não tem hipótese de fazer o circuito das grandes salas".

Indo à manifestação, o que faz na fila? O primeiro pedido da associação é que chegue cedo e usando máscara. O distanciamento de 2 metros será garantido através de marcas no chão e, uma vez no seu lugar pode sintonizar a Rádio Circuito em circuito.live para ouvir uma emissão feita diretamente do Lux Frágil, e dirigida por Pedro Ramos, que dará música a quem estiver enfileirado e fará o ponto de situação sobre as manifestações e a ação nas quatro cidades.

"É uma manifestação muito segura. Não há nenhum comício, não há nenhum palanque para alguém falar nem nenhum artista a falar. É só dirigir-se para o clube e ocupar um lugar disponível", esclarece Gonçalo.

A associação Circuito é apoiada por mais de 400 artistas e para além das salas e clubes onde vai decorrer a manifestação, fazem parte o Hot Clube de Portugal, a Casa Independente, o Musicbox, o RCA Club (todos em Lisboa) e Alma Danada (Almada), o Salão Brazil (Coimbra), o Hard Club, o Barracuda, o Passos Manuel (Porto), o Bang Venue (Torres Vedras) e a Casa – Oficina os Infantes (Beja).

Ana Ademar é dona deste último clube de música, em Beja. Para se manifestarem vão unir-se com a Sociedade Harmonia Eborense, o clube de Évora. "Vamos numa excursão simpática para ajudar a engrossar a fila de Évora, visto que no Alentejo somos só duas casas. E ficamos todos unidos", diz Ana ao SAPO24.

"No fundo, estas casas funcionam como agentes culturais. É esse o objetivo de cada uma destas casas: divulgação e dinamização cultural, nomeadamente a nível da música", conta Ana, que explica que "com as casas fechadas há despesas que se mantêm, a programação vai desfalecendo, o hábito das pessoas de assistirem a concertos vai desaparecendo porque vão sendo substituídos por outros. E mesmo tirando a gravidade da situação em que estamos, quando pudermos voltar a estar todos juntos e mais próximos vai ser um trabalho extra retomar o hábito de ir a concertos".

Claro que para Ana Ademar o público tem saudades de estar na sua sala de espetáculos,  Casa – Oficina os Infantes, - e em tantas outras. "As pessoas vão juntar-se à manifestação mesmo por isso, por terem saudades".

"O que pedimos é que público e artistas manifestem o seu apoio à música ao vivo, aos seus agentes e a todo o ecossistema". Daí a manifestação ser como uma simulação de como seria uma noite numa destas casas: faz-se a fila à porta para entrar e ouvir música, mas neste caso a porta não se vai abrir.

Até à retoma da atividade, as casas estão com dificuldades - e não só. "Os técnicos também, os músicos, toda a gente que vive neste circuito vai ter muita dificuldade de subsistência. A ideia do protesto é mesmo essa: evitar que as casas fechem definitivamente ou pelo menos arranjar forma de as casas se manterem até podermos retomar a atividade dentro de uma normalidade que ainda vamos descobrir qual será, dentro de não sabemos quanto tempo", conclui Ana.

A Circuito salvaguarda que não contesta a decisão técnica de os espaços terem de estar encerrados, o que quer dizer que não defende a reabertura destes espaços, “até se decidir que estão reunidas as condições necessárias para retomar a atividade”, diz ao SAPO24 Gonçalo Riscado, que explica que "alguns espaços do circuito estão a funcionar, mas a questão é que a atividade que algumas casas estão a fazer não são a sua atividade principal de programação artística. Para os espaços subsistirem, têm atividades complementares à venda de bilhetes, como a venda de comida e bebida", que é, assim, acessória.

Gonçalo acha que há "muita vontade de voltar às salas e de conviver e socializar, que é algo muito importante. Ter acesso à cultura é uma necessidade primária das sociedades, por isso é que nós [a associação Circuito] não contestamos as questões técnicas, mas achamos que é importante falar sobre a linguagem que tem sido usado que de alguma forma leva à estigmatização e desvalorização de tudo o que tem a ver com a prática cultural e social - como se fosse algo acessório do qual podemos facilmente prescindir e todos sabemos que é crucial".

O diretor do Musicbox, na capital, destaca ainda que "as câmaras municipais têm uma grande importância e responsabilidade" no que toca ao tema dos clubes. "Em Lisboa, temos acompanhado as primeiras medidas que a Câmara fez e que permitiram algum apoio a algumas destas salas. Outras salas obtiveram apoio de concursos de criação artística. Mas essas medidas foram desenhadas quando achávamos que a pandemia ia só ter três meses", ri.

Ao frisar que é preciso fazer mais, Gonçalo elogia ainda o apoio do presidente da Câmara de Lisboa. "Fernando Medina está muito sensibilizado para este problema e estamos a trabalhar arduamente num projeto que permita um apoio, durante o inverno, a estes espaços de programação, que envolveria atividades de programação para a cidade, que teriam muito mais em conta a importância de envolver os artistas e manter acesa a chama de Lisboa cidade cultural do que a quantidade de público que pode assistir às coisas".

*Com Lusa