
Prólogo
Ela respira em sintonia com o mar.
Inspira.
As ondas rebentam nas rochas, a espuma invade a entrada da gruta. Gelada nos seus dedos dos pés, nas coxas trémulas.
Expira.
A maré recua, deixando oferendas no seu rasto. Uma corda cintilante de algas marinhas. Fragmentos de conchas, perlados como osso.
Cerra os dentes, mas a dor atravessa-a – uma coisa ofuscante e espantosa – e a respiração que se segue é um grito.
Outra contração, o grito engolido pelo ribombar das ondas. Ela sabe que está em segurança na sua gruta escura, com as rochas escorregadias e o gotejar constante do sal. Mas o mar está faminto e tem de ser alimentado.
Posiciona a mão trémula entre as pernas, apalpa o crânio do bebé no seu invólucro ensanguentado.
Agora.
Levanta o tecido do vestido, enfiando-o na boca, mordendo o pano com força, enquanto o corpo se prepara. Volta a fazer força e uiva, o corpo abrindo-se até ficar vazio, exausto, e a criança está nos seus braços. Toca nas mãozinhas de estrela-do-mar; nos olhos semicerrados; nos lábios de um tom rosado de concha.
Concede-se esse momento único e precioso. E, depois, levanta-se, a tremer, com o bebé a choramingar no peito.
Abaixo da entrada da gruta, o mar revolve-se sobre as rochas, à espera.
1
LUCY
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE FEVEREIRO DE 2019
Universidade Hamilton Hume
Broken Hill, NGS
Austrália
900 quilómetros para o interior
É o grito que a faz despertar.
O quarto cheira a mofo e a sono. Consegue sentir o batimento rápido de uma pulsação, as cordas ternas de uma garganta. Unhas a arranharem-lhe as mãos.
As ripas dos estores filtram a madrugada cinzenta e, a essa luz, Lucy vê Ben por baixo de si, com os olhos reluzentes de medo. Um vaso sanguíneo rebentou no branco do seu olho esquerdo, formando uma estrela vermelha. Ela recua na cama, cambaleante.
– Lucy – balbucia ele, a mão em garra no próprio pescoço. – Que raio…
As palavras saem-lhe sufocadas, a voz estrangulada.
Estrangulada. As mãos dela no seu pescoço, os olhos protuberantes.
Ela estava a estrangulá-lo.
Ele senta-se na cama e acende o candeeiro. Ela afasta-se da luz, como um animal. Há movimento lá fora, no corredor. Uma batida na porta.
– Ben, companheiro? Estás bem? Pareceu-me ouvir…
Ela move-se lentamente, como se estivesse dentro de água, com a pulsação a martelar-lhe a garganta. As pancadas intensificam-se; Ben está agora a tossir. A pedir ajuda.
A pressão da porta nas suas costas. Agarra a maçaneta com dedos transpirados, usando-a para se equilibrar. A porta já está destrancada, o ferrolho defeituoso está a tilintar. Ela abre-a de rompante, passa por Nick, colega de quarto de Ben, e atravessa o corredor apressadamente em direção aos degraus que conduzem ao seu próprio quarto.
Uma vez lá dentro, encosta-se à porta, respirando pesadamente enquanto se esforça por processar o que acabou de acontecer. O quarto está arrumado, como sempre, com os livros cuidadosamente empilhados na secretária e na mesa de cabeceira. Mas a roupa de cama está amarrotada, o ar rarefeito. Os lençóis parecem húmidos, como se ela tivesse suado neles.
Tenta lembrar-se dos acontecimentos da noite. Sem vontade de enfrentar a cantina, decidira dispensar o jantar, acalmando o estômago ansioso com chá de gengibre na sua caneca favorita, trazida de casa. Depois, pôs um podcast e preparou-se para dormir cedo, na esperança de que a distração lhe afastasse os pensamentos de Ben e do que ele tinha feito.
Houve um sonho, recorda: a água fria a lamber-lhe a pele, as pedras a cravarem-se-lhe nos pés. O raspar da pedra contra o seu crânio. O hálito quente de um homem no seu rosto, os dedos dele a enterrarem-se na sua carne – o medo a debater-se com a necessidade desesperada de lutar, de sobreviver…
E, depois, acordara e dera por si sentada no peito de Ben, com as mãos firmemente apertadas em redor da sua garganta. O horror percorre-a, entorpecendo-lhe as pontas dos dedos e os lábios.
Tivera um ataque de sonambulismo. Algo que nunca – nem por uma vez na vida – acontecera.
Olha para as mãos e vê-as tremer. Será que quisera ferir Ben, ou até matá-lo, depois do que ele lhe tinha feito? Ou teria sido o sonho, que perdurava na sua boca como um travo desagradável – a corrosão do medo, a necessidade primitiva de lutar, de sobreviver? Era como se uma parte límbica do seu cérebro a tivesse conduzido ao quarto dele, como uma marioneta conduzida pelo mestre.
Um vislumbre alarmado pela janela indica-lhe que o sol está a nascer, tingindo o céu de cor-de-rosa. Ela vê o borrão escuro do movimento na praça: um uniforme com letras néon. Um agente de segurança do campus. Ben, ou o colega de quarto, Nick, deve tê-lo chamado depois da sua fuga.
Ela imagina o que Ben vai dizer: Acordei e ela tinha as mãos na minha garganta, estava a tentar matar-me. Os seus pensamentos começam a andar à roda; tenta abrandar a respiração, mas não consegue. O pânico não para de aumentar, um calor terrível corre-lhe no sangue.
Haverá uma investigação, tem a certeza disso. Será suspensa, talvez até expulsa. Meu Deus, será que iriam envolver a polícia? Será que podia ser presa – acusada – por agressão?
Tudo o que desejara e para o qual trabalhara. Perdido. Imagina Ben: nódoas negras a despontar à volta do pescoço, as marcas das unhas dela na sua carne. Foi ela quem o fez. Mesmo que não se lembre, mesmo não estando acordada.
Mas quem iria acreditar nela, sobretudo depois do que aconteceu?
Afinal, já tinham tomado o partido dele.
O suor encharca-lhe as axilas; no seu íntimo, a vontade de fugir aumenta.
Mas para onde poderá ir? Para casa, para junto dos pais, não. Isso implicaria explicar-lhes que Lucy, a boa menina, tinha atacado alguém. E, pior, significava que teria de lhes dizer o motivo, de lhes contar o que Ben lhe fizera. Não, nunca conseguiria fazer isso. Mas então, quem? Quem irá ajudá-la, quem lhe dará refúgio enquanto pensa no que fazer, em como resolver as coisas?
E, então, surge-lhe a resposta. Muda de roupa rapidamente, procura uma mala no armário pequeno. Peças íntimas. Roupa. Toalhitas. Hidratante. Computador portátil. Carregador do portátil. Um bloco de notas. Arruma tudo com os dedos a tremer.
Abre a gaveta da secretária, tira um postal envelhecido e passa a ponta do dedo sobre a morada rabiscada no verso.
Casa do Penhasco, Malua Street n.º 1, Comber Bay.
Só há um sítio para onde pode ir, uma pessoa capaz de compreender.
* * *
A estrada estende-se à sua frente, infindável, fundindo-se com o horizonte. À volta não há nada a não ser mato dourado vazio, por quilómetros e quilómetros. Catatuas de um rosa-escuro – a ave favorita da sua mãe – irrompem de uma árvore murcha conforme ela passa.
Não há mais carros. Está sozinha.
Agarra o iPhone no banco do passageiro, encaixa-o entre as coxas e telefona à irmã. Após vários toques – Lucy sustém a respiração no silêncio entre cada um –, o telemóvel emite um clique.
– Jess? – diz, com a esperança a prender-se na sua garganta, como uma farpa. Porém, depois, a voz pré-gravada da irmã chega-lhe nítida e concisa através da linha.
Olá, ligou para Jess Martin. Não posso atender a chamada neste momento…
– Foda-se – sussurra Lucy, ao desligar.
Os seus olhos enchem-se de lágrimas, desfocando a paisagem adiante.
Diz a si própria que está tudo bem. Que Jess irá acabar por atender, que saberá como ajudá-la.
Não saberá?
2
LUCY
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE FEVEREIRO DE 2019
Após umas horas de viagem, o telemóvel de Lucy toca. Ela encosta num parque de estacionamento, com o alívio a percorrê-la. Por um momento, tem a certeza de que é Jess a ligar-lhe.
Mas quem está a telefonar é a sua amiga Em. Em, de caracóis desalinhados e unhas pontiagudas feitas num salão, que a esperava para a aula das 9h00. Em, que já lhe enviou cinco mensagens.
Lol adormeceste
Não acredito que me deixaste sozinha numa aula a uma segunda-feira de manhã. Que rude
A sério, estás bem?
Ei, acabei de ver o Nick. Ele disse que atacaste o Ben?! Lucy, o que se passa?
Telefona-me.
Lucy limpa os olhos com as costas da mão, respira fundo e estremece para se recompor.
Mas não adianta. O seu rosto já arde perante a memória: de como foi crédula, tola.
Ela e Ben tinham dormido juntos pouco antes do início das férias de verão – na noite anterior à partida de todos do campus, em dezembro passado. Desde logo, ficou claro que aquilo significava mais para ela do que para ele: lera-o na forma prática como ele lhe tirou o sutiã, na facilidade com que deslizou para dentro dela. Ainda se recorda de cada sensação, de cada suspiro sussurrado. Como se soubesse, já nessa altura, que nunca mais voltaria a acontecer. Afinal, como é que alguém como Ben – de belos ombros musculados e cabelo escuro e brilhante – poderia estar interessado em alguém como Lucy?
Mas, depois, ele surpreendeu-a. Enviou-lhe mensagens durante as férias, com ligações para vídeos de gatos e memes no Twitter. Uma vez, chegaram mesmo a falar ao telefone, comparando notas sobre os livros que andavam a ler (ele comprara A Sangue Frio, por recomendação dela; ela lera Joe Cinque’s Consolation, por recomendação dele). Fora tão fácil, tão natural, que ela receou que estivessem a cair no território da amizade. Que nunca mais voltasse a sentir as pontas dos seus dedos nas coxas, os lábios dele contra a sua orelha.
E assim, poucos dias antes do início do último ano de faculdade, Lucy ganhou coragem e perguntou-lhe se ele queria uma fotografia.
Ela nunca havia feito nada do género. Para começar, nunca ninguém lhe pedira uma; e porque haveriam de o fazer? Quem iria querer ver Lucy sem roupa?
Mas pensou no suspiro de Ben ao afundar-se no seu íntimo, na forma como lhe beijara a pele macia acima da clavícula. Como se não visse os rasgões de pele gretada entre os seus seios, ao longo da caixa torácica. Ele era diferente, Lucy sentia-o. Ele era de confiança.
Sentia que o coração tinha parado de bater enquanto esperava pela resposta dele, os minutos a prolongarem-se incessantemente. Primeiro reticências azuis, depois aquelas palavras excitantes: Ben está a escrever.
Depende, respondeu ele. Se é uma fotografia tua.
Ajustou uma e outra vez a iluminação, com esperança de que o brilho suave do candeeiro de cabeceira escondesse o pior da sua pele. No final, deve ter tirado dezenas. Queria tanto parecer bonita aos olhos dele.
Ficou satisfeita com a imagem escolhida: o brilho escuro dos olhos, a luminosidade húmida dos lábios. A forma como a luz do candeeiro dourava a curva do seu seio; o resto do corpo envolto numa sombra sedosa.
Uau, respondera ele. És linda.
E ela olhou para a fotografia com novos olhos e pensou que, talvez, ele estivesse certo.
Estava tão entusiasmada por voltar à universidade, por voltar a vê-lo, por retomarem a relação a partir do ponto em que tinham ficado. Mas ele evitou o seu olhar na aula de terça-feira à tarde e correu para a aula seguinte antes que ela pudesse cumprimentá-lo. O mais estranho era que as outras pessoas também pareciam evitá-la: os colegas recuavam quando passava, trocando murmúrios entre si; um Mar Vermelho de mexericos.
Pensou que fosse porque estavam a par do seu envolvimento com Ben, que eram um casal, ou que estavam prestes a ser. Permitiu-se sentir uma pontada de orgulho.
Como estava enganada.
Foi Em quem viu primeiro o vídeo do TikTok e lho enviou.
Lamento imenso, disse ela. Mas, se fosse comigo, ia gostar de saber.
O choque de ver o seu próprio corpo no vídeo foi ampliado pelo horror doentio da banda sonora: “Monster Mash”. Estava tudo lá, visível, mesmo sob a distorção cruel do filtro. A pele branca e encrostada do seu torso, as estrias prateadas dos seios, o interior dos seus pulsos.
Mas o pior era o olhar no seu rosto – o derretimento suave da confiança.
Lucy liga o pisca antes de voltar à estrada, apesar de não haver trânsito – apenas um camião solitário a chiar mais à frente. Sente as palmas das mãos peganhentas no volante.
É por isso que tem de fugir. É por isso que ninguém vai acreditar que ela não queria magoar Ben – que tivera um ataque de sonambulismo, a meio de um pesadelo. Que não sabia o que estava a fazer.
Ele não queria que tivesse acontecido, dissera Ben, quando o confrontou. Sim, tinha partilhado a fotografia com alguns amigos no WhatsApp, mas era algo que faziam sempre. Ele nunca esperara – nem podia acreditar! – que alguém fosse tão cruel a ponto de a publicar no TikTok.
Pedia desculpa.
Lucy engole com dificuldade, recordando a descrição, os comentários.
A rapariga do teu amigo é literalmente uma górgona
Horrível
Isto é que é dormir com um morto
Ficara surpreendida, talvez ingenuamente, com o pouco que a universidade estava disposta a fazer, com a forma como minimizaram o assunto.
– Não é crime? – perguntara à responsável pelo bem-estar estudantil, uma quarentona com várias argolas em cada orelha. – Partilhar uma imagem íntima sem consentimento. Fui pesquisar. Quero fazer uma queixa à polícia.
A mulher estremeceu e deslizou uma caixa de lenços de papel na direção de Lucy, embora esta não estivesse a chorar.
– Pedia-lhe que pensasse muito bem antes de dar esse passo – dissera-lhe. – Compreendo que esteja aborrecida, a sério, compreendo, mas toda a gente comete erros. Uma coisa dessas pode arruinar a vida do Ben. Sendo eu mãe de um rapaz…
Furiosa, Lucy levantou-se da cadeira e saiu.
Ben não tinha arruinado a sua vida? Desde a descoberta do vídeo, passava a maior parte da semana no quarto. Nas aulas, sentava-se o mais perto possível da porta, saindo antes de os outros se levantarem das cadeiras, antes de uma centena de cabeças se virar para a fitar. A publicação tinha sido removida por violar as políticas do TikTok, mas ela não tinha dúvidas de que as pessoas guardaram a imagem no telemóvel; que ainda circulava, via Facebook e WhatsApp e Snapchat. No dia anterior, pedira um café na cafetaria do campus e o rapaz que a atendera semicerrara os olhos ao reconhecê-la, para depois corar violentamente.
Parecia que o mundo inteiro tinha visto. Como se aquilo fosse segui-la para sempre.
Na assembleia de boas-vindas, dois anos antes, o reitor da universidade pedira-lhes que olhassem em redor, para os estudantes sentados à sua volta.
– Este é o melhor curso de jornalismo do país – dissera. – Temos ex-alunos que trabalham em todo o lado, desde a Sky News ao The New York Times. A maioria dos jornalistas que trabalham no Sydney Morning Herald e no The Age estudaram em Hamilton Hume. Lembrem-se disso durante o vosso percurso aqui. O jovem que têm sentado ao vosso lado não é apenas um colega de curso, mas um futuro colega de profissão.
Era uma frase que Lucy não conseguia tirar da cabeça. Todos os seus futuros colegas tinham assistido à sua desgraça. Como haveria de ter uma carreira depois disto?
Contudo, apesar da sua fúria, o encontro com a responsável pelo bem-estar estudantil dera-lhe a volta à cabeça, plantando sementes de dúvida. E se a polícia também minimizasse a situação? Nesse caso, ficaria sem opções. Além disso, o pai de Ben era advogado de direito laboral, numa firma de luxo em Melbourne.
– Do tipo que representa os empregadores em vez dos empregados – esclarecera Ben, com um tom de escárnio.
Ele odiava o pai, acrescentara, por “lubrificar a máquina capitalista”. Mas Lucy duvidava que esse ódio o impedisse de pedir ajuda, se precisasse. Era isso que teria de enfrentar, caso fizesse a denúncia.
Hesitou durante três dias, sem saber o que fazer. E então, nessa manhã, dera por si com as mãos à volta da garganta de Ben, como se o seu corpo tivesse decidido por ela.
Enfim. Dificilmente poderia falar do vídeo à polícia agora, depois do que tinha feito.
Ela precisa é de se concentrar em chegar à beira de Jess. Em manter-se acordada: ainda faltavam doze horas. A irmã mudara-se recentemente para Comber Bay, na Costa Sul. Lucy nunca lá esteve, e só tem a morada porque Jess lhe enviou um postal no seu aniversário, em setembro; o mesmo postal que está, entretanto, pousado no tablier. Um penhasco debruçado sobre o mar, com o pôr do sol a lançar sombras na superfície da rocha. Um tipo de letra exuberante apelida a localização de Miradouro do Diabo, Comber Bay. É turístico, piroso – o que é estranho, por não ser nada típico de Jess. Normalmente, ela faz os seus próprios postais – isto é, quando se lembra de os enviar.
Feliz aniversário, Lucy, lê-se. Sei que tenho andado distante nos últimos meses, e peço desculpa. Mas adorava ver-te e pôr a conversa em dia. Avisa-me se quiseres vir e passar um tempo aqui – isto é muito bonito. Enfim, espero que tenhas um ótimo aniversário. Sempre com amor, Jess.
Mas, para Lucy, era demasiado tarde. Ainda estava magoada com a frieza de Jess da última vez que a tinha visto – mais de um ano antes, no penúltimo Natal, em 2017.
Tinha começado a pensar que a ligação que haviam partilhado quando Lucy era mais nova ainda podia ser recuperada, entretanto desgastada por anos de distanciamento. Fora passar um fim de semana com a irmã, em Sydney, nas férias escolares anteriores. A ideia tinha partido de Jess e Lucy estava nervosa: sentia-se uma criança no banco do passageiro do carro da irmã, abraçada à mochila com força, enquanto Jess fazia perguntas hesitantes. A escola ia bem? Ainda frequentava os ensaios do coro? Continuava a querer ser jornalista?
Era feliz?
Quando chegaram ao apartamento de Jess, em Marrickville, a exaustão massacrava os olhos de Lucy e as saudades de casa aumentavam debaixo das costelas. Porém, era evidente que a irmã trabalhara arduamente para tornar o espaço apresentável – havia lençóis novos dobrados no sofá e os padrões em ziguezague sulcados na alcatifa sugeriam uma aspiração recente. Preparara até o prato favorito de Lucy: chili vegetariano, que tinha um forte sabor a alho queimado.
O constrangimento prolongara-se até depois do jantar, quando Jess vasculhou a sua coleção de discos até encontrar The Good Son, de Nick Cave.
– O pai adora esse – comentara Lucy, enquanto o piano melancólico de The Ship Song enchia a sala.
– Eu sei – respondera Jess, a sorrir. – Eu também.
Numa imitação do canto dramático do pai, acabaram por se pôr de pé no sofá, de braços abertos enquanto gritavam a letra. Mas depressa começaram a cantar a sério – ambas tinham boas vozes, ricas e profundas para as suas pequenas figuras – meio a dançar a valsa, meio a rodopiar pela sala de estar acanhada de Jess, espalhando pilhas de livros e materiais de arte por todo o lado. Lucy sentiu os anos a dissiparem-se: podia ter outra vez cinco anos, enquanto se equilibrava nos pés da irmã mais velha e dançava ao som dos The Wiggles.
Quando a canção terminou, o vizinho dava pancadas raivosas na parede e Lucy não tinha fôlego. Os olhos da irmã brilhavam e, por um segundo de embaraço, Lucy achou que Jess podia estar a chorar. Talvez a lembrança do pai lhe fosse dolorosa – ao longo dos anos, Lucy sentira uma tensão entre o pai e a irmã que não compreendia muito bem.
Contudo, quando Lucy perguntou a Jess se estava bem, esta limitou-se a sorrir e anunciou que ia preparar um chocolate quente para cada uma, “com um bocadinho de Baileys, mas não digas à mãe”.
Passaram o resto do fim de semana a explorar os mercados e galerias preferidos da irmã. Riram-se de um turista bêbado em Circular Quay e brincaram a respeito de fazerem tatuagens iguais quando Lucy fosse mais velha. A linguagem especial que partilhavam quando Lucy era pequena – ela guardava as memórias da irmã mais velha a cantar e a desenhar com ela – parecia estar a regressar.
Jess até começou a telefonar a Lucy depois dessa visita – ligava-lhe todas as semanas para o telemóvel, em vez de lhe dirigir um cumprimento rápido depois das suas conversas irregulares com a mãe. Mas, de repente, os telefonemas pararam e, no último Natal, Jess conversara tão pouco com Lucy que esta passou a refeição festiva a engolir as lágrimas.
Por isso, quando o postal com o pedido de desculpa insignificante chegou no dia do seu aniversário, Lucy devolvera-lhe uma resposta fria e breve.
Obrigada pelo postal, foi tudo o que enviou por SMS. O meu aniversário foi bom.
Tinha ignorado o convite para uma visita. Não conseguia enfrentar outra rejeição.
Mas, agora, tem de pôr tudo isso de lado. Jess é a única pessoa que conhece que sofre de sonambulismo e que pode ter alguma ideia da razão pela qual ela está a passar pelo mesmo, e de como poderá lidar com isso.
Lucy chegara mesmo a presenciá-lo uma vez, quando tinha cerca de cinco ou seis anos e Jess estava em casa, numa das suas raras visitas da faculdade de artes. Tinha acordado graças a um barulho estridente, que de início julgara dever-se a um monstro, antes de perceber que era o rugido da torneira da cozinha.
Agarrando o corrimão com as duas mãos, descera as escadas, atravessara o corredor e entrara na divisão, os braços demasiado curtos para alcançar o interruptor de luz.
Jess estava rígida em frente ao lava-louça enquanto a água jorrava da torneira. Lucy sentira-se apavorada ao ver os olhos abertos que nada viam, mas mesmo assim arrastara-se para o lado da irmã, puxando-lhe uma mão que não reagia. O olhar da irmã era tão vazio que Lucy regressara a correr para a cama e escondera-se debaixo dos cobertores.
Mais tarde, quando Jess regressou a Sydney, Lucy contou ao pai o que tinha visto. Recorda-se da constrição no rosto dele, repentina como uma cortina que se fecha. As mãos dele tremiam ao deitar cereais na sua tigela. O pai disfarçou com uma gargalhada e um puxão no seu cabelo.
– Não estava enfeitiçada, tolinha – garantira ele. – Algumas pessoas, como a Jess, põem-se a vaguear enquanto dormem. Não é motivo de receio, juro.
A meio caminho de Comber Bay, Lucy para num motel à saída da autoestrada. O letreiro intermitente com a informação das vagas em néon ao cimo fá-la pensar no filme Psycho. A mulher da receção levanta as sobrancelhas, surpreendida, sem dúvida à espera de um camionista de longo curso e não de uma rapariga de um metro e cinquenta e sete com um bom corte de cabelo. Mas aceita o dinheiro de Lucy e bate com uma chave de latão no balcão. A julgar pela floresta de outras penduradas atrás da secretária, Lucy é uma das únicas hóspedes.
No interior, os corredores cheiram a alcatifa antiga e a cigarros, e as paredes estão forradas com anúncios antigos de chá Bushells e cerveja Victoria Bitter. Há uma máquina de venda automática na qual compra um pacote de batatas fritas e dois KitKats, optando por não confirmar os prazos de validade. Ao lado da máquina há um daqueles peixes-troféu cantores, todo ele barbatanas de borracha e escamas esverdeadas. Lucy estremece ao recordar-se do sonho que acompanhou o seu sonambulismo na noite anterior. Conserva apenas fragmentos, mas é o suficiente. Maresia nas suas narinas, mãos afiadas na sua pele; a pedra angulosa contra o seu crânio. Não quer lembrar-se de mais nada.
O quarto cheira a esturro. As cortinas estão corridas, o padrão floral – a condizer com a colcha – está coberto de teias de aranha. Ela afasta-as, descobrindo a autoestrada, o horizonte cor-de-rosa empoeirado. Passa um camião, com os pneus a rugir. Lucy sente uma pontada de medo diante das horas de condução que terá de enfrentar no dia seguinte. Imagina as pálpebras a fecharem-se, as mãos a vacilarem no volante. Imagina o metal a ficar amassado, a música do vidro a estilhaçar-se.
Não pode estar cansada de manhã.
Tem de dormir.
Porém, não consegue escapar à memória da garganta vulnerável de Ben nas suas mãos, ao conhecimento do que pode fazer – de quem pode magoar – quando está inconsciente.
Tem de se manter acordada.
Afunda-se na cama, estremecendo com a picada das molas no colchão fino. Tem de ouvir alguma coisa, uma distração. Um podcast. Os seus favoritos são em torno de crimes reais, mas qualquer coisa sobre investigação serve. O som tranquilizador de uma voz familiar, um enigma para o seu cérebro resolver até os pensamentos se tornarem lentos e entorpecidos, a exaustão a vencer.
Lucy tinha catorze anos quando ouviu pela primeira vez um podcast, Serial. A voz de Sarah Koenig despertara algo nela, moldara a plasticidade do seu jovem cérebro. Encantada com a questão da inocência ou culpa, entregara-se aos episódios, com a necessidade de obter respostas a arder dentro de si. Era intoxicante, como o primeiro gole de um refrigerante alcoólico. Químico, doce e perigoso.
Nessa altura, percebeu que queria ser jornalista. Queria ser ela a falar ao microfone, a desvendar uma história como se de um carretel de fio se tratasse. Queria ser ela a combater a injustiça com a única arma que importava: a verdade.
Pelo menos, era esse o plano.
Será que iriam permitir que terminasse o curso, depois do que fizera?
Mesmo que, por milagre, a autorizassem – será que quer voltar?
Lucy não está certa de que conseguiria enfrentar a humilhação. Saber que toda a gente na turma, na cafetaria ou no bar da universidade a tinha visto assim, exposta e enlevada, já era mau o suficiente. O que haveriam de dizer quando soubessem que tinha atacado Ben? Mesmo que dissesse a verdade – que o fizera num estado de sonambulismo – continuariam a achar que era louca. Descontrolada.
Há mais qualquer coisa, também. Algo que vai ao cerne de quem ela julgava ser, do plano que tinha traçado para a sua vida. A verdadeira razão pela qual se licenciou em jornalismo.
É a dúvida que se instalou no seu íntimo desde o encontro com a assistente na universidade, a forma como ela desencorajara Lucy a contactar a polícia. A contar a verdade. Tem-se sentido uma espécie de fanática religiosa a atravessar uma crise de fé. De que serve uma arma que as pessoas têm demasiado medo de usar?
Agora, percorre a aplicação de podcasts, sem saber se quer um novo que a distraia, ou um familiar e reconfortante. E, então, lembra-se.
Tinha descarregado o episódio há alguns meses, depois de os pais lhe terem contado para onde Jess se ia mudar. Comber Bay. O nome fez com que o reconhecimento fosse instantâneo. Todos os australianos com um ligeiro interesse em crimes reais ou mistérios tinham ouvido falar daquele sítio. Comber Bay era infame, o nome pronunciado no mesmo fôlego que a descoberta do Homem de Somerton e o desaparecimento das crianças Beaumont. A tranquila cidade da costa sul era uma autêntica Hanging Rock.
É curiosa a forma como alguns casos são esquecidos, enquanto outros permanecem na consciência pública, as vítimas tornando-se, de alguma forma, imortais. É claro que o mistério em si – um puzzle por resolver, que atrai investigadores e detetives – faz parte do processo. Contudo, no que se refere a Comber Bay, Lucy suspeita que a atração é ainda mais profunda. É um dos poucos casos de que ela se lembra em que os desaparecidos (ou as vítimas, se as teorias do assassino em série forem verdadeiras) são homens.
A série é um programa especial dividido em vários episódios de um podcast de que ela gosta, apresentado por um australiano anónimo num tom monótono, com uma meticulosidade admirável. “Comber Bay: O Triângulo das Bermudas da Austrália.” Um título inteligente. Não admira que tenha conquistado tantos ouvintes.
Carrega em “Parte 1 – O Miradouro do Diabo”. Enquanto a música sinistra do genérico se faz ouvir nos seus auscultadores, Lucy pergunta-se novamente porque será que Jess se mudou para um sítio tão controverso. Mesmo assim, duvida que a irmã se interesse por crimes reais. Jess é artista: preocupa-se com sentimentos, sensações, beleza. Mal lê as notícias.
Numa pitoresca cidade à beira-mar, a duzentos quilómetros de Sydney, um mistério perturbador continua por resolver. Entre 1960 e 1997, oito homens desapareceram na sua costa arenosa. Samuel Hall, Pete Lawson, Bob Ruddock, William Goldhill, Daniel Smith, Alex Thorgood, David Watts e Malcolm Biddy. Apesar de as vítimas diferirem em idade, profissão e classe social, todas partilham um elemento em comum: nunca foi encontrado qualquer vestígio de nenhuma delas.
Enquanto ouve, Lucy tira o frasco de creme medicinal da mochila e abre-o, fazendo uma careta perante o cheiro detestável a químicos. Esfrega-o nas fissuras e espirais prateadas que cobrem as suas canelas.
Será que os homens se afogaram, como os vinte nadadores que até agora pereceram no famoso Babinda Creek, em Queensland? Ou terão sido assassinados por um homicida que escapou aos holofotes – e à justiça – durante mais de trinta anos?
Tranca a janela – os vidros são suficientemente finos para que continue a ouvir o murmúrio rítmico da autoestrada – e a porta.
Poderá algum fenómeno natural ser responsável pelos desaparecimentos? E o que dizer do estranho caso do Bebé Esperança, encontrado abandonado no Miradouro do Diabo, em 1982?
Iremos explorar tudo isto e muito mais nesta série de duas partes, “Comber Bay: O Triângulo das Bermudas da Austrália”.
Antes de se deitar, puxa a cadeira da secretária riscada e encaixa-a debaixo da maçaneta da porta. Espera que seja suficiente.
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