No auge da Beatlemania, os concertos dos Fab Four tinham todos eles algo em comum: hordas de raparigas adolescentes a ocupar as salas por onde eles passavam, num frémito quase religioso, entregando o corpo ao solavanco e o rosto às lágrimas, e berrando a plenos pulmões, de tal forma que muitos dos relatos dessa altura mencionam o facto de praticamente não se conseguir escutar a música – e essas receções fervorosas pesaram, mais tarde, na decisão dos Beatles de não voltarem a dar concertos. Mais de meio século depois, eis-nos de novo entregues a uma nova mania, igual a tantas outras de tons pop, com a particularidade de a sua causa ser tão adolescente quanto as suas fãs: Billie Eilish.

Dir-se-á que é um sacrilégio comparar os Beatles a Billie Eilish, mas é neles que imediatamente pensamos assim que pela Altice Arena ecoam gritos esganiçados, estridentes, mal a norte-americana pisa o palco montado para aquela que foi a sua estreia em Portugal. E pensamo-lo porque, à semelhança do que acontecia com o quarteto, foi tarefa difícil (para não dizer impossível...) escutar a sua voz ao longo da primeira metade do espetáculo, tal foi a reação e a receção das fãs à vinda da nova coqueluche da pop. Na ponta da língua, trouxeram todos os versos, de 'Bad Guy' (o maior êxito da cantora, que recentemente chegou ao lugar cimeiro das tabelas de vendas nos EUA), a 'Copycat', de 'All the Good Girls go to Hell' a 'Bury a Friend'.

Escreve-se “das” porque a Arena se encheu, sobretudo, de rostos femininos. Não que Eilish não os tenha de outros géneros. Aliás, nomes como Dave Grohl, Thom Yorke ou Elton John, senhores do rock n' roll de pleno direito, expressaram já o seu entusiasmo pela cantora e pela sua música. Um entusiasmo que começará na forma como Eilish se apresenta ao mundo: como a antítese daquilo que durante décadas se entendeu como “estrela pop”. Ela não é um mero rosto bonito ou um corpo sexualizado, uma figura de porcelana que se possa colocar numa estante, um anjinho com uma voz doce a bambolear-se. Ela não é um sonho; é a personificação de um pesadelo. E ocupa tão bem esse papel que parece ter nascido para viver nas sombras.

Basta observar os seus vídeos. Quando não tem aranhas a percorrer-lhe o rosto, sangue a escorrer-lhe do nariz ou seringas a serem-lhe espetadas nas costas, vemos crescerem-lhe – de forma explícita – asas nas costas, antes de se revelar um anjo caído em terra desoladora. É uma estética que não associamos imediatamente à pop de cariz dançável, e sim ao heavy metal e ao rock de toada gótica, e da qual Eilish se alimenta tanto a nível físico como sonoro – as batidas oprimem e rasgam, as baladas são tristes e melodramáticas, as imagens projetadas no ecrã parecem saídas de um filme de Tim Burton. Billie Eilish habita o lado mais negro da adolescência, o lado onde existe o medo, a angústia, a raiva, a bizarria.

Desse modo, poderemos pensar que Eilish poderá servir, para os seus fãs mais jovens, como porta de entrada para uma panóplia de outros universos sonoros, como o foi Marilyn Manson – com quem já foi comparada – nos anos 90: alguém que chega ao estrelato e ao mainstream e a partir de quem é possível descobrir subgéneros como o rock gótico, o metal extremo, a eletrónica mais negra ou a música industrial. Se ela cumprirá, ou quererá cumprir, esse papel professoral é uma outra questão. Mas a atitude, a música e o culto (e os cultos a sério não se ficam por uma canção, abarcam tudo aquilo que levou até essa canção) estão lá.

Foi possível observar o culto Billie Eilish muitas horas antes de o espetáculo começar, tamanhas eram as filas que ladeavam a Altice Arena. Que, no entanto, não encheu; apesar de o concerto ter sido dado como esgotado, ainda era possível vislumbrar algumas cadeiras vazias e bastante espaço junto à plateia. Mas bastou as luzes de palco serem desligadas para que esse suposto vazio não nos entrasse mais no pensamento, tamanho foi o som que brotou das gargantas das presentes, acompanhadas ou não pelos seus pais. Como, aliás, a própria Billie Eilish, que apesar de ser já uma estrela conta apenas 17 anos. Os pais nos bastidores e o irmão, Finneas, em palco: é ele quem produz e compõe boa parte das canções de Eilish, e é ele que se encarrega dos teclados e das guitarras nos seus concertos, a mão invisível que a segura e lhe dá espaço para utilizar o que tem de melhor, a voz.

Sem recorrer a playbacks ou artifícios do género (o que de mais houve, para além das imagens, foi uma cama a ser colocada e depois içada do palco), foi em temas mais lentos como 'I Love You' ou 'Ocean Eyes' que Eilish mostrou todo o talento que tem para cantar, como se no meio de tanta sombra nos quisesse mostrar a luz. Uma luz que é ténue – basta ler os versos de 'I Love You', sobre um amor “complicado” –, e que desaparece quando ela se remete ao silêncio. Antes disso, o público teve espaço para dançar, algo que a própria não fez, por uma boa razão: dois tornozelos torcidos, o que a levou a pedir ao público o que recebeu ao longo de hora e meia: «mais energia».

O mote foi a apresentação do seu álbum de estreia, “When We All Fall Asleep, Where Do We Go?”, editado este ano, sendo que canções mais antigas – sobretudo do EP “Don't Smile At Me” – encontraram também o seu espaço. Pelo meio, uma série de boas referências: 'When I Was Older', tema inspirado pelo filme “Roma”, soa-nos às baladas eletrónicas de James Blake, e o início de 'Bellyache' (que resultou em mosh, se bem que um mosh muito pouco agressivo...) trouxe-nos à memória 'Love Generation', de Bob Sinclar. Tudo o resto foi Billie Eilish, irrequieta, infernal e original, com ponto alto na canção com que terminou o concerto propriamente dito, antes de um encore onde mostrou o seu novo vídeo (para 'All the Good Girls Go to Hell') e voltou a interpretar 'Bad Guy': 'Bury a Friend', tema sobre paralisia do sono (e que artista pop escreveria uma canção sobre isto?) onde encontramos o verso que a melhor define enquanto rockstar: honestamente, pensei que por esta altura já estaria morta...

Define-a dessa forma porque o rock n' roll pertence à juventude, para o eternamente: do “clube dos 27” à 'My Generation', dos The Who, são vários os exemplos que mostram que esse género não deve envelhecer nunca, tornar-se estanque, conservador, se se quiser manter icónico. Lembramo-nos de que, em entrevista à Rolling Stone”, Billie Eilish disse que não planeia chegar sequer aos 27 anos. Afirmação dura que provém da juventude mas principalmente da atitude, uma atitude que não existiria se ela fosse apenas “mais uma” a tentar vingar nesta indústria. Saímos da Altice Arena com a sensação de que Eilish se está nas tintas para o que vier a seguir; já construiu o seu espaço, o seu culto, a sua mania. Já se tornou rainha com apenas 17 anos. O resto serão tentativas vãs de chegar ao paraíso. Billie Eilish age mais como um Lúcifer romântico: como no épico de John Milton, prefere reinar no inferno a servir no céu.