Tem 35 instrumentos de cordas dedilhadas, 25 no seu apartamento, em Manhattan, os restantes em Portugal, onde gosta de manter um pé. E é numa guitarra de 1962, feita pelas mãos de "um dos melhores fabricantes de sempre, o português João Pedro Grácio Jr.", que improvisa os sons que vamos sugerindo ao longo da conversa com o Sapo 24.
Filho do diplomata Francisco Henriques da Silva, Pedro nasceu em New Bedford, Massachusetts, nos Estados Unidos, onde há uma importante comunidade portuguesa, e onde o pai foi o primeiro cônsul português. Mas passou por muitos países.
"Vivi em muitos países e, de uma maneira ou de outra, todos foram importantes". Mas há um em particular que recorda: "O Canadá, onde fiquei dos dez aos 14 anos, porque foi aí que comecei a tocar guitarra clássica pela primeira vez. E foi onde comecei a fazer muitas outras coisas, como interessar-me pela filosofia e pela religião. Marcou-me também pelas amizades fortes", diz.
No Canadá teve a primeira namorada e também o melhor amigo, com quem começou a tocar guitarra. "Chama-se Igor, é da Roménia, tinha uma guitarra acústica de cordas de aço do pai. Só tinha rês cordas e nós não sabíamos como afiná-las, era de qualquer maneira. Púnhamos o dedo sobre as cordas todas e fazíamos canções assim", conta. Algum ouvido teriam ou o futuro teria sido outro.
Se tiver de escolher uma altura exata, o momento em que a música fez clic, elege uma viagem da escola, quando um amigo pôs uma cassete a tocar. Era "Sgt. Pepper's [Lonely Hearts Club Band], o álbum lendário dos Beatles. Foi esse álbum que, verdadeiramente, mudou a minha vida. Quando o ouvi quis saber tudo o que havia sobre música da Índia, por exemplo".
E descobriu Ravi Shankar, o compositor e músico indiano que ensinou George Harrison, guitarrista dos Beatles, a tocar sitar. "As pessoas, a cultura, tudo é fascinante. E tive a grande sorte de o meu pai ter sido embaixador de Portugal na Índia. Pude comprar lá o meu segundo sitar e foi lá que toquei com um guru, porque até então tinha aprendido sozinho tudo o que sabia. O sitar, diz Pedro Henriques da Silva, é, a par do alaúde árabe, "o instrumento de corda ponteada mais difícil de tocar". A explicação está em parte na afinação, "cada raga afina-se de maneira diferente, às vezes com variações muito pequenas, exige muita precisão".
"Não há boa nem má música, só aquela de que gostamos"
Como se passa disso tudo para a guitarra portuguesa? Responde numa palavra, "saudade", que dedilha na guitarra.
"Só vivi quatro anos em Portugal. Estou em Nova Iorque desde os 18 e foi ao estar mais afastado que senti a falta do país". Com três anos Pedro foi para Paris, com sete para Lisboa. Aos dez chegava a Otava, aos 14 regressava à capital portuguesa, para rumar a Bruxelas aos 16 e dois anos depois a Nova Iorque.
Pelo caminho, duas coincidências - ou "sortes", como lhes chama. Primeira, a guitarra portuguesa que a mãe comprou num antiquário, e que podemos ver pendurada na parede atrás do músico. "Tinha poucas cordas, faltavam-lhe trastes e alguns afinadores, mas levei-a para um grande construtor de guitarras em Portugal, o Óscar Cardoso, que a arranjou para se poder tocar".
Segunda, uma irlandesa-americana - a dona da guitarra em que agora toca para nós, a tal feita por Grácio em 1962, a sua melhor época -, que conheceu graças à publicação na capa de uma revista da guitarra que a mãe comprou no antiquário. "Porque é uma guitarra bastante curiosa, tem uma cabeça de cão, está cheia de embutidos de madeira de cores diferentes, é muito mais pequena que o habitual, porque é uma guitarra de senhora, é difícil de tocar, não tem grande projeção e tem um som muito diferente, talvez mais metálico".
Conversa puxa conversa, Pedro Henriques da Silva fica a saber a história da guitarra da irlandesa-americana, que esta não lamenta não ter a quem deixar quando morrer. E tudo porque um dia lhe pediu a guitarra emprestada para tocar num concerto importante. Quando a foi devolver, recusou-se a recebê-la: "Fica para ti". E ofereceu-lha.
Boa música, má música? O compositor é eclético: "O único critério que importa é aquilo de que a pessoa gosta, seja música clássica, seja contemporânea, dissonante ou tradicional. "Para mim, a música da Índia foi fundacional, especificamente os Beatles, mas também Jimi Hendrix, The Doors, The Rolling Stones e outros, mais ou menos conhecidos. Mas tenho um gosto muito abrangente, gosto de estilos muito diferentes, blues, jazz, não me fecho em nenhum estilo. Mesmo os mais populares, que muitos criticam por serem pouco intelectuais, têm sempre algo interessante, como o ritmo".
E conta que começou por tocar num pequeno teclado Casio, da irmã, em que se podiam gravar quatro trechos musicais. "Comecei a fazer loops tipo hip hop, foi assim que comecei a fazer música. Gosto muito de hip hop, o que surpreende muita gente", afirma.
Dá para tocar hip hop na guitarra portuguesa? "Claro que sim", diz, enquanto pega na guitarra e improvisa. "No filme 'Fado', de Carlos Saura [cineasta espanhol], ele mostra como se faz hip hop numa guitarra - e usa trechos de 'Verdes Anos', de Carlos Paredes.
O sonho americano e compor para cinema
A propósito de filmes, como é compor para cinema? A primeira vez que experimentou foi para um diretor francês, uma produção franco-americana grava num estúdio nos Estados Unidos. "Convidou-me depois de ter ouvido o recital de graduação e doutoramento. Ouviu a minha música, que não tem nada a ver com a música e filme - bom talvez algumas partes, não sei - , e pediu-me para fazer uma música que não tinha nada a ver com aquilo que eu tinha tocado", recorda.
O filme é uma comédia com dez personagens principais e a ideia era fazer corresponder um género musical a cada uma. "Havia um blues, uma peça de jazz, uma bossa nova, um hip hop, música de circo estilo Fellini, e a minha música de orquestra. Era tanta coisa diferente que me pareceu demasiado díspar, precisava de unir tudo de alguma forma. Então o que fiz foi manter o mesmo tema, mas num estilo completamente deferente. E funcionou. Não dava para tudo, o hip hop, por exemplo, ficou de fora. Mas foi fantástico unir tudo dessa maneira e uma excelente primeira oportunidade. E pude enfrentar um problema bem complicado: como é que se faz a música de dez personagens diferentes", reconhece.
Pedro Henriques da Silva não é apenas melómano, é também cinéfilo. "Gosto muito de cinema e há muitos realizadores com quem gostaria de trabalhar", admite. Um mais do que todos: o mexicano Alfonso Cuarón. "É um excelente diretor, um visionário. Fez Os Filhos do Homem, fez Roma, fez Gravidade, fez o terceiro Harry Potter, elevando esse estilo a arte. Também ele é omnívoro, gosta de estilos muito diferentes, o que acho piada".
Mas há outros diretores que admira, como Pedro Almodóvar, Quentin Tarantino, Stanley Kubrick ou Steven Spielberg. E nada como estar nos Estados Unidos e frequentar os festivais de cinema para fazer contactos. Muitos convites já surgiram assim.
Pedro dá aulas, mas há coisas que não se ensinam nos conservatórios, como por exemplo lidar com um maestro ou com o diretor de filme. "Os diretores de filme raramente sabem de música e quando sabem algum termo geralmente usam mal. Aconteceu-me muitas vezes um diretor pedir-me um pizzicato. Faço, mostro, e diz que não era isso. Ou um crescendo, que é simplesmente ir de piano a forte, subir o volume, quando querem mais e mais instrumentos a entrar. Agora já sei o que querem, mas não é nada daquilo que pedem [ri]".
O sonho existe? "É verdade para as pessoas que têm os meios para tornar o sonho realidade, uma ficção total para aqueles que não têm. É preciso ver os dois lados da moeda. Os Estados Unidos têm coisas muito positivas, mas sobretudo para quem viveu na Europa ou no Canadá, têm coisas chocantes".
Quais? "A ideia de ter armas à mão de semear - não em Nova Iorque, mas noutros estados. Depois temos tragédias. Ou não ter um seguro de saúde universal, porque é tão básico e tão benéfico para a sociedade. Pela positiva, têm um espírito de ir à luta, de ir para a frente que inspira. E também um sentido de comédia e de divertimento que poucos outros têm, a Disney World só podia ter sido inventada neste país".
Desde que está nos Estados Unidos, Pedro Henriques da Silva assistiu a muita coisa, incluindo ao 11 de Setembro, o ataque terrorista que marcou o mundo para sempre. "Os meus pais também estavam, tiveram um azar tremendo. Como qualquer português da idade deles, passaram pelo 25 de Abril. O meu pai esteve colocado na Guiné nessa altura e depois em 1998, quando rebentou a guerra civil. Também esteve nos golpes de Estado da Costa do Marfim, além de ter passado pelo conflito indo-paquistanês. Vão aos Estado Unidos uns dias de férias e acontece o 11 de Setembro".
"Teve a sua graça, porque o meu pai levanta-se, já deviam ser umas nove horas, vê as notícias, e pensa que estão a falar do ataque terrorista de 1993. Olha pela janela e não vê nada de especial, pensa que é poluição, ainda estamos a uns bons quarteirões de distância. Só percebe o que se passa quando liga para Lisboa e uma prima quer saber pormenores. Depois, como os aviões ficaram todos em terra, acabaram por ficar mais uns dias em Nova Iorque", descreve. Foi impressionante, como quando foi o furacão Sandy, em que uma parte da cidade ficou completamente às escuras, sem energia e até sem água. Lembro-me que fomos ver um show na Broadway, íamos de táxi, e não havia uma luz, um semáforo, estava tudo cheio de velas. Parecia um cenário de zombies, apocalíptico".
Hoje, confessa, "sente-se uma decadência grande" nos Estados Unidos. Mas espera que venham por aí melhores dias, num país com "uma enorme capacidade para se reinventar". Da guerra eleitoral Biden vs. Trump, ainda que com umas partes gagas pelo meio, espera "um final feliz".
Dizer borboleta em 89 línguas. E tocá-la na guitarra
Antes aluno, agora professor. "Quando acabei o doutoramento comecei a dar aulas na NYU, a Universidade de Nova Iorque, primeiro em composição, mais tarde em guitarra clássica e depois em bandolim, banjo e sitar". O leque de estudantes é muito internacional, como quase tudo em Nova Iorque, dos vizinhos aos restaurantes. Os americanos não representam sequer metade da população nova-iorquina.
"Porque vivi em muitos países, tenho um contacto interessante com eles, gosto de culturas diferentes, sempre gostei. E sempre soube dizer alguma coisa, uma palavra ou algumas frase, noutras línguas, porque isso ajuda muito quando se viaja". E, talvez porque as palavras também têm a sua sonoridade, uma obsessão: "Aprendi a dizer borboleta em 89 línguas". O que não cobre o mundo todo. Ainda.
E começa a desfilar: "Babochka (russo), schmetterling (alemão), papillon (francês), mariposa (espanhol), borboleta (português), farfalla (italiano), fluture (romeno). A minha favorita é em kirundi, uma língua do Burundi: ikinyugunyugu".
A razão pela qual começou a colecionar "borboletas linguísticas" foi a curiosidade. "É uma palavra completamente diferente mesmo em espanhol, português, francês e italiano, quando deveria haver alguma ligação entre as principais línguas latinas. Já perguntei a linguistas e há teorias, mas nenhuma razão exata. O mesmo acontece nas línguas eslavas". Já sabemos dizer borboleta em algumas línguas, mas com quantas notas se faz o seu voo? "Tem de ser ágil".
Apesar das épocas diferentes em que viveu em Portugal, o país foi sempre o quartel-general da família. As três coisas que mais falta lhe fazem? "As casas de fado, as comidas e, obviamente, a família (pais e irmã, que está em Madrid, mas vai muitas vezes a Lisboa, tios e primos). No que toca ao estômago, há dias vingou-se num cozido à portuguesa, "que não comia há anos", porque geralmente é no verão que vem a Portugal e está demasiado quente para um prato tão pesado. Afinal, como é Lisboa na guitarra? E lá vem novo improviso.
Na velhice "adoraria ir a Portugal", admite. A mulher, a compositora e pianista argentina Lucía Caruso - luso-argentina, na verdade -, é apaixonada por Portugal, que considera o melhor país do mundo. "Para ela era em Portugal que vivíamos, eu é que tenho de lhe pôr um travão", confessa Pedro.
A indicação para os Grammy Awards e uma vida impossível em Portugal
A opção é simples. "É nos Estados Unidos que temos a nossa carreira, a nossa música. Não poderíamos viver em Portugal como vivemos aqui, não teríamos oportunidade de fazer música para filmes, de fazer os concertos que fazemos, de viajar. E temos aqui uma orquestra de câmara que fundámos, a Manhattan Camerata. Temos amigos músicos em Portugal e os argumentos económicos não são os mesmos, aqui dão-nos muitas possibilidades", justifica.
E a mais recente oportunidade chegou há pouco, com o álbum Transclassical Concertos e as cinco indicações da sua discográfica para os Grammy Awards, nas categorias de melhor arranjo, melhor composição clássica contemporânea, melhor instrumental clássico a solo, produtor do ano e álbum clássico melhor concebido do ano. Não ganhou nenhum. A vitória tem um som, mas o reconhecimento já é, de certa maneira, um prémio.
Com quatro anos de guitarra clássica no conservatório, Pedro Henriques da Silva licenciou-se e fez o mestrado e o doutoramento em composição. "Foi então que comecei a compor mais e a fazer peças para outros instrumentos". E foi também por essa altura fez alguns contactos importantes.
"Há vinte anos, em 2003, convidaram-me para tocar no Carnegie Hall", uma das mais famosas salas de espetáculos do mundo, nos Estados Unidos, em Manhattan, na Sétima Avenida, reconhecida pela acústica, beleza e programas. "Foi incrível". O convite surgiu por acaso e partiu do consulado espanhol: "Estavam a organizar um concerto, mas não conseguiam encontrar um guitarrista espanhol de guitarra clássica e então pediram um português. Era mais ou menos a mesma coisa [ri]".
"Estavam lá excelentes músicos espanhóis, um deles agora grande amigo, Jesús Reina, um grande violinista de Málaga, que gravou várias coisas comigo. E posso dizer que foi comigo que começou a improvisar. Como gosto de vários estilos de música, gosto de converter as pessoas à improvisação, sobretudo quando são de música clássica e estão habituados a fazer exatamente o que está na partitura".
"O que é irónico", diz, "porque na época barroca e na época de Mozart era quando mais se improvisava, Mozart nem sequer escrevia as cadências dos concertos de piano, Bach era capaz de improvisar uma fuga a seis vozes no órgão, o que para mim é quase impossível de imaginar. Seis vozes é completamente absurdo".
Hoje, Pedro tem basicamente três caminhos para compor: diretamente no instrumento, na sua cabeça ou uma mistura dos dois. "E às vezes toco no piano, porque é um instrumento versátil e com muitas notas. Na guitarra portuguesa a nota mais grave não é muito grave, embora a aguda seja bastante aguda. Mas os violinos ou as flautas conseguem ir mais longe. Além disso, na guitarra estou limitado a seis cordas, o piano dá para fazer muito mais. Não é o meu instrumento, sei tocar mal, mas dá para compor".
Abaixo a Inteligência Artificial na música
É difícil dizer o que faz um bom compositor, não há receitas. "Mas há uma coisa que é preciso para poder compor: saber bem um instrumento, seja guitarra portuguesa, guitarra clássica, violino, piano, sitar ou uma orquestra inteira. Para poder escrever bem é preciso conhecer o instrumento. E isso dá muito, muito trabalho. Cada instrumento da orquestra é diferente e tem as suas peculiaridades, mesma quando são da mesma família e parecem idênticos".
Depois, cada compositor tem o seu estilo. "Se quiser ser como Bach, então tem de estudar muito contraponto, como fazer uma fuga, fazer um coral, coisas muito académicas. Se quiser ser como John Cage, da filosofia de que tudo é música, qualquer barulho, até o que para nós é ruído, os requisitos são outros".
Portugal tem "excelentes músicos", reconhece, "orquestras fantásticas", o problema é que "não suficientes, devia formar mais gente". "A música é essencial e é a única disciplina que une os dois hemisférios do cérebro, ativa a parte da linguagem e parte da matemática, toda a gente devia aprender música", insiste. "Além do mais, é uma excelente maneira de lutar contra a doença de Alzheimer".
E a talho de foice entra na conversa a Inteligência Artificial. Aliada ou ameaça? "É uma espada de dois gumes", considera Pedro Henriques da Silva. "Estão a utilizar a Inteligência Artificial para fazer arte e isso está a roubar milhares de artistas, pintores, fotógrafos, o que for. A mesma coisa com a música".
"As pessoas não se apercebem, mas nos anos 60 havia um programa de computador para fazer música ao estilo de Bach, Mozart e Beethoven. Foi inventado por R.C.W aos 17 anos, um dos futuristas mais importantes. Fez o programa numa altura em que os computadores não tinham ecrã, era tudo à base de cartões com buracos", lembra.
Apesar disso, e de admitir que a IA tem um lado positivo, é categórico: "Não preciso de utilizar a Inteligência Artificial para fazer música. Se fizesse música a metro, sim. Raramente - aprendi isto com John Cage - usei um dado para fazer música, gosto mais de improvisar com isso, dar o dado ao público. Tenho um dado de 12 lados, temos 12 notas na escala musical, o suficiente para fazer música muito interessante. Prefiro usar as minhas próprias regras".
Comentários