Trocadas entre avô e neto, Mikaël Essayan, durante a Segunda Guerra Mundial, estas cartas revelam uma dimensão muito pessoal e intimista de Calouste Gulbenkian, escreve João Vieira, diretor da Biblioteca de Arte e dos Arquivos da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), no preâmbulo do livro “A Educação do Delfim”, que a editora Tinta-da-China faz chegar às livrarias no próximo dia 12.

Publicada no âmbito das comemorações do 150.º aniversário de Gulbenkian, esta é uma edição trilingue – em português, francês e inglês – que apresenta um conjunto de cartas, selecionadas por João Vieira e Martin Essayan, bisneto de Calouste Gulbenkian.

“A leitura destes textos oferece uma nova luz sobre a personalidade deste excecional homem de negócios e colecionador de arte” que foi Gulbenkian, revelando o “conjunto inabalável de valores morais” em que acreditava, afirma João Vieira.

Se a figura de Calouste Gulbenkian encerra uma aura de mistério que ele próprio cultivou, também é verdade que usou o registo escrito para intermediar a sua relação com os outros, deixando atrás de si um “rasto impressionante”, explica.

Ao longo do tratamento e disponibilização dos arquivos, a FCG procurou reconhecer e desvendar o conjunto de valores morais e éticos que moldaram a sua personalidade e guiaram a sua conduta e que legou ao neto sob a forma epistolar.

As 65 cartas aqui apresentadas foram escritas entre 1941 e 1945, altura em que a família de Gulbenkian se encontrava dispersa: Calouste e a sua mulher estavam em Vichy e, a partir de 1942, em Lisboa e no Estoril, o jovem Mikaël – então entre os 14 e os 18 anos – estava no colégio de Harrow, nos arredores de Londres, cidade onde vivia o seu tio materno, Nubar Gulbenkian, enquanto os seu pais – Rita e Kevork Essayan – permaneciam em Paris.

Durante o conflito, a mobilidade e as comunicações entre Londres e Paris estavam limitadas e controladas, mas a neutralidade de que Portugal beneficiava permitia ligações entre aquelas cidades e Lisboa, permitindo a Calouste manter ativas as comunicações com o escritório de Londres e a sua casa de Paris.

É neste contexto que, em finais de 1942, Calouste decide assumir inteira responsabilidade pela educação do seu único neto, Mikaël, que, ainda por cima, era rapaz, o que para ele era muito importante, pois seria o herdeiro do nome e das tradições seculares da família, portanto “o seu sucessor”.

Durante estes cinco anos, terão sido trocadas entre avô e neto, e entre cada um deles e outros membros da família, mais de 200 cartas sobre o tema da educação de Mikael, sendo, pois, uma “fonte importante para a história desta família, das suas idiossincrasias, dinâmicas e interações durante a difícil conjuntura da guerra”.

João Vieira sublinha, contudo, que a principal motivação para que, no atual contexto comemorativo, se tenha decidido publicar uma seleção dessas missivas, é o facto de ajudarem a perceber “o homem por detrás do mito” e darem a conhecer o código moral por que se regia, “uma extraordinária herança imaterial, porventura o seu legado mais profundo e intimista”.

Martin Essayan, que assina a introdução do livro, refere o mesmo: “Estas cartas oferecem uma oportunidade única para transpormos as duas defesas”. E confessa que apesar de todas as histórias que sempre ouviu sobre o seu bisavô, foi só ao ler as cartas trocadas com o seu pai que sentiu que finalmente o conhecia.

Martin faz então um resumo dos acontecimentos, indicando que a troca de cartas começou quando Mikaël ingressou no colégio interno, em maio de 1941.

Consciente de que fracassara na educação do seu filho, Nubar, decide recorrer à experiencia para “incutir os valores corretos no neto”.

“Estes valores são realmente importantes para ele - aliás, refere-se-lhes com frequência noutros contextos e atribui-lhes o seu extraordinário sucesso. Porém, em nenhum outro lugar senão nestas cartas, Calouste os enuncia com clareza”, aponta Martin Essayan.

O primeiro valor – personificado na própria pessoa de Calouste – é que “devemos confiar nos nossos próprios padrões de exigência e discernimento, e não na aprovação dos outros”.

Este valor conjuga-o com um segundo, “o de tratar a si mesmo como uma obra em aperfeiçoamento, em constante aprendizagem", diz Martin, acrescentando que Calouste aprende a ser um avô competente e é notório que aplica o valor da autorreflexão a si próprio.

Por outro lado, perfilhava um comportamento que se consubstanciava na sua “definição preferida”, a de “perfeito cavalheiro”, e valorizava que se dissesse sempre a verdade.

De Mikaël, exigia que alcançasse grande sucesso académico, que continuasse a ler os clássicos ingleses e franceses, que fosse um jovem cavalheiro exemplar, que lhe escrevesse semanalmente numa língua estrangeira – o francês -, e, ao mesmo tempo, que aprendesse grego antigo, latim, alemão e italiano.

O elenco de correspondentes (autores das cartas) que consta deste volume conta com referencias a Nubar, que aparece desde cedo como “o tio malvado”, Rita, a mão de Mikaël, que é desde o início um agente crucial nos bastidores, em contraste com Kevork, o seu marido.

Nevarte, a mulher de Calouste, quase não é mencionada nestas cartas, mas encontra-se em Portugal com o marido (ainda que ambos vivam em hotéis distintos) e acompanha de perto os assuntos.

“Estas cartas são porventura o melhor testemunho para compreendermos os valores, as ideias e as convicções mais profundas do 'Senhor 5%' [Calouste Gulbenkian], um homem de natureza eminentemente privada”, destaca a editora.