Por todo o país, "cuidado com elas". São gatunas, assassinas, fabricantes de moeda falsa, envenenadoras... E quem dá estas mulheres a conhecer é Anabela Natário, jornalista do Expresso, no seu livro Mulheres fora da lei, publicado pela Desassossego, chancela das edições Saída de Emergência.
Num passeio por algumas zonas dos crimes em Lisboa, Anabela conta ao SAPO 24 a história de uma cidade que também mudou muito, tal como a justiça, o jornalismo e até as próprias mulheres. Mas há registos que ficam e é através deles que mergulhamos no passado.
Para a jornalista, a aventura no mundo das mulheres criminosas não vem de agora. "A pesquisa é uma coisa que eu venho a acumular há alguns anos, desde que escrevi uma série de biografias de mulheres portuguesas. Como o crime é uma área que me interessa, fui juntando histórias de crimes comuns e às tantas estava no Expresso a pensar em fazer uns textos de maior fôlego, que fossem assim uma espécie de série, e fui ver os meus apontamentos e ocorreu-me que existem umas quantas mulheres criminosas, sejam elas assassinas, gatunas... É uma mistura, porque isto vai desde o assassínio até uma incendiária metida numa quadrilha de roubo. Tive alguma preocupação em escolher crimes variados, assim como vários locais do país. Em Lisboa ainda são uns quantos [casos], porque também são as mulheres que aparecem mais. Tem a ver com a informação que existe. Fui pesquisar nos processos e, grande parte, nos jornais, para saber o que saía, como era tratado. A minha preocupação era não só contar as histórias mas também enquadrar tudo", explica.
O percurso por Lisboa começou no Chiado, com vista para a Brasileira onde descansa Fernando Pessoa. "Aqui era a zona de atuação de muitas gatunas, como Maria Duarte, a Malinha do Chiado". Mas ainda não é tempo de falar dela, porque a primeira paragem para se compreender as histórias é outra. Dali até ao antigo Governo Civil de Lisboa, na Avenida Serpa Pinto, é "um pulinho". Era ali, onde hoje se encontra o Museu Nacional de Arte Contemporânea, que os criminosos "passavam a noite ou mais do que uma noite". Agora, já não existem vestígios no local daqueles que por ali passaram. O edifício, de altas janelas, é apenas mais um museu na cidade.
Um bocadinho mais à frente, a Rua Ivens. Anabela explica que, por ali, "passaram quase todas as mulheres referidas no livro". E o motivo é bastante simples: havia um fotógrafo responsável pelos registos criminais numa esquina da rua. Ir ao fotógrafo era, também, fonte para os jornais. "Estavam mesmo ali à porta e faziam uma descrição de como eles iam vestidos. Começou a haver a preocupação em fazer um registo dos detidos, para terem um processo e o cadastro", conta. De livro na mão, a autora exemplifica lendo um excerto da história de Rita de Melo, ou das Atafonas, como era mais conhecida: "O Batata, que veste, com toda a elegância, fato de caxemira, bota de polimento e 'pardessus' [sobretudo] claro, ao ser conduzido à Rua Ivens, a fim de ser fotografado, escondeu o rosto dos fotógrafos de jornais que estavam na rua", escrevia A Capital.
"Os julgamentos tinham muita gente. As pessoas vinham passar o tempo como se fosse um espetáculo qualquer. Presumo que nessa altura as motivações eram as mesmas de agora."
Rita das Atafonas, lá para os lados do Martim Moniz, dedicara-se, pela influência de Batata, o seu amante que a tirara de uma vida de prostituição, ao fabrico de moeda falsa. Foi presa em janeiro de 1911. "Foi por gostar tanto dele que me desgracei", dizem os registos a que Anabela teve acesso. Rita era "uma prostituta com registo legal e casa montada para desenvolver a atividade" que se viu num mundo de dinheiro farto e diversão, graças ao homem por quem se apaixonou. E foi por ele que perdeu tudo, com apenas 30 anos.
Apesar de as fotografias de época terem existido, são poucas as que chegaram até aos dias de hoje. "As ilustrações do livro são alusivas à época, mas muitas não têm nada a ver com as protagonistas. Das primeiras há poucos registos, apenas umas descrições vagas. Noutras, há algumas fotografias - as que saíram nos jornais - mas também não são muitas. Nos processos não encontrei nenhuma fotografia. Deviam lá estar, mas não estão. Provavelmente desapareceram. Li algures, numa história dos anos 20, alguém a dizer que um jornalista tinha encontrado um amigo que era da polícia e que tinha uma série de registos. Se calhar estas coisas foram-se espalhando, as pessoas foram levando", refere.
O caminho prossegue com a história de Rita, mas com uma pausa importante na Rua Nova do Almada, depois de uma passagem pelas Escadinhas da Calçada Nova de São Francisco, "por onde deviam passar muitas delas, por ser um caminho fácil". Num edifício de fachada agora amarela situava-se o Tribunal da Boa Hora. Era por aquela rua que as mulheres (e todos os criminosos) iam "às vezes com algum estardalhaço, com muita gente atrás. Era sempre tudo muito concorrido. Os julgamentos tinham muita gente. As pessoas vinham passar o tempo como se fosse um espetáculo qualquer. Presumo que nessa altura as motivações eram as mesmas de agora. Crimes muito badalados e isto enchia lá dentro e cá fora. As pessoas comuns entravam por um lado e os presos ali por aquela porta [à direita]", aponta Anabela.
Já na travessa da Palha, atual Rua dos Correeiros, Anabela continua a falar de Rita e de outras mulheres como ela. "Estas ruas tinham algum significado na cena da prostituição. Esta era uma zona complicada. No caso das gatunas, quase todas tinham zonas para atuar. Mas de certeza que todas roubaram na Baixa, no Bairro Alto, na Rua da Misericórdia. Havia uma, a Maria Manuela, uma 'rata das igrejas', que também atuava muito por aqui. Dizia-se que ninguém sabia quantas saias ela tinha, mas usava todos os bolsos para esconder coisas. Era de Coimbra mas também vinha para aqui. Elas espalhavam-se porque tinham uma atividade muito variada. A Manuela vinha aos dias festivos porque sabia que havia mais gente. Veio, por exemplo, a uma visita do rei de Espanha. Havia uma série de gente e era mais fácil para meter a mão no bolso alheio".
Lisboa não é mais o que era. Se o crime ainda pode andar à espreita, no século XIX era uma constante. "Em 1840, na altura do Diogo Alves, o assassino do Aqueduto, a Avenida da Liberdade era um sítio horripilante. Então ali a seguir à Rua das Pretas e à Praça da Alegria era tudo uma zona mafiosa. Aqui, por estarmos perto dos barcos, do Tejo, acabava por ter mais movimentação, também. Isto já foi muito pior. O mundo, não só aqui. Claro que continua a haver zonas perigosas, mas é tudo muito diferente", diz a jornalista.
Passando para a Praça da Figueira, a história muda. Dizemos adeus à fabricante de moeda falsa e à Manuela das saias e travamos conhecimento com duas Marias de finais do século XIX: Maria Alves e Maria Amélia, mais conhecidas por Canastra e Caixeira.
"Uma era mais velha e apoiava a outra. Não era uma coisa desde sempre, conheceram-se no Pátio do Carrasco, ali para a Sé, que era um sítio onde ficavam montes de criminosos que ainda não tinham sido julgados e mulheres de criminosos que estavam presos na cadeia do Limoeiro, que era mesmo ali ao pé. Uma delas veio com o marido e a outra já lá estava com o marido preso. A partir daí uma começa a apoiar a outra e já não pararam. Tinham o mesmo amante, como se dizia na altura, porque não se usava a palavra namorado. Como eram casadas, tinham o amante e tiveram filhos do mesmo e tudo", conta Anabela.
Na Praça da Figueira e no Rossio, "atuavam nas lojas que vendiam fazendas, com o método das sovaqueiras. É um método muito interessante: roubar e meter debaixo do sovaco. Como usavam grandes xailes, dava para esconder tudo. Além disso, havia lojas que, durante algum tempo, tinham as coisas penduradas à porta. Era mais fácil roubar".
A subir a Rua do Carmo e ouvindo música ao longe, vem à conversa a história de Guilhermina Cepa, a gatuna pianista que andou pela cidade.
"Temos casos de pessoas com outra educação, com outra classe. A Cepa foi casada com um comerciante e sabia tocar piano, dava aulas e, quando davas aulas de piano, via as casas. Mas onde gostava mesmo de atuar era nas ourivesarias e nas casas de penhores. Também roubava às vezes umas fazendas, porque eram coisas preciosas e eram empenhadas, também. Foi uma maneira que ela encontrou de conseguir sobreviver sem o marido. Uma mulher sozinha e com um filho... não era fácil. Mas ela era engenhosa. Nas lojas, se diziam que estava a roubar, ela virava-se para o miúdo e dava-lhe uma chapada e dizia 'isso não se faz' e tal. Disfarçava ali a coisa com o miúdo e passava", relembra.
E não era a única. Maria Carlota Bacelar, ou a governanta roubona, também não tinha motivos aparentes para se dedicar ao crime. "É oriunda de famílias ricas e ainda teria dinheiro. Ser governanta era uma posição interessante: havia governantas e governantas. Ela trabalhava para um militar, já tinha 60 anos e foi governanta dele durante anos. Quando ele morreu, ela achava que não estava a cometer roubo nenhum. Trabalhava lá, dedicou uma série de anos ao homem, ele não estabeleceu tudo em testamento e, portanto, ela achava que havia coisas a que tinha direito. O problema foi que ela retirou aquilo um bocado à má fila. Escondeu coisas, disse que não as tinha. Mas o que é engraçado é que, no caso dela, como tinha um nome, não apareceu logo nos jornais. Ainda hoje acontece! Apareceu um título num jornal que era "Prisão de senhora importante". Mas quem é a senhora importante? Primeiro que se dissesse... Se fosse a Malinha do Chiado, dizia-se logo. No caso desta, não. E mais: também não se dizia 'roubo'. Dizia-se 'desvio'. No caso dela, não era roubo. No campo policial, agora define-se isto muito bem: o furto e o roubo são coisas diferentes. O furto era o que a Malinha do Chiado praticava, sem violência, só 'metia a mão'; o roubo já implica alguma violência", explica Anabela.
Em todas as histórias, o contexto tem de ser considerado. "A maneira de atuar da justiça era muito diferente. Basta dizer que uma mulher que fosse apanhada vestida de homem era presa, mesmo que não tivesse feito mais nada. É uma demonstração de que havia muita coisa proibida. É muito fácil prender. Por exemplo, se alguém aqui no Chiado gritasse 'roubaram-me' e a Malinha do Chiado estivesse por perto, era fácil ser acusada. Até podia não ser ela, mas a polícia ia prendê-la. E se nem estivesse lá, alguém ia buscá-la a dizer 'foste tu que andaste a roubar outra vez'. No caso desta gatuna, que começou a roubar aos 13 anos e que o conseguiu fazer até aos 17, o conhecimento já era tal que "o destino estava traçado".
Por outro lado, o meio de onde vinham também era, na maior parte dos casos, propício ao crime. "Uma boa parte delas vem da província. Vêm para a cidade como criadas de servir. Umas não se aguentam, roubam nas casas e são postas fora. Não têm outra hipótese. Não é desculpá-las, mas há aí uma série delas que não têm nada na vida. Como é normal, a tendência é juntarem-se a pessoas que já praticam atos marginais. E é aí que elas encontram apoio, a verdade é essa. Acabam por ir sobrevivendo assim", explica a autora.
"Não sabemos o que lhes passa pela cabeça. Ninguém pode dizer 'desta água não beberei', como diz o provérbio."
Quase de volta ao ponto inicial, Anabela Natário recorda todo o caminho. "É engraçado imaginar como isto era antes. Foi uma coisa que tentei também nos textos: transmitir como é que se vivia, o que se sentia quando se passava nas ruas nessa altura. Não se tratou só de contar a história. É preciso dizer às pessoas como é que as coisas funcionavam".
No meio dos crimes comuns, há coisas que impressionam mais
Em dezenas de casos de mulheres criminosas, Anabela tem alguns que ficaram mais gravados pela brutalidade aí presente. É o caso de Maria do Carmo, a filicida do Campo Grande, que matou o próprio filho, depois de ter vindo de Pombal para Lisboa, onde foi acolhida por uma família como criada de servir que a acusou depois de descoberto o crime, mesmo sabendo das circunstâncias.
"Eu tive pena dela, essa é que é a verdade. Era uma miúda de 23 anos que se viu completamente sozinha, sem saber o que fazer, completamente desesperada. Tenho algumas dúvidas sobre as pessoas que a acolheram, se tinham alguma ideia de ficar com a criança. Sinceramente, há ali qualquer coisa que me faz duvidar perante os depoimentos que dão à polícia e o facto de irem logo acusá-la, sem perceber o que se está ali a passar primeiro. Ela não tem nada! Sentiu-se enganada pelo pai da criança [que a abandonou], foi à Misericórdia e essa é outra coisa inacreditável! Não aceitaram a criança por não ser concebida aqui! Ela nasceu aqui, mas não foi concebida aqui! É impensável. O quê que isso interessava? Viu-se neste resultado!", relembra.
Na altura, casos de infanticídio, com notícias nos jornais, eram algo bastante comum. "Quase todos os dias há um caso noticiado. É comparável também às notícias que há sobre mulheres assassinadas pelos maridos. No século XIX, dia sim, dia não, há uma notícia dessas, a partir do meio até ao princípio do século XX. Principalmente como essa da Maria do Carmo. É mesmo um desespero... Faço ideia, já andaram ali 9 meses a magicar 'o quê que eu vou fazer' e depois... A Maria do Carmo ainda tentou! Mas é muito complicado. Não sabemos o que lhes passa pela cabeça. Ninguém pode dizer 'desta água não beberei', como diz o provérbio".
"Naquela altura havia, nos jornais, uma certa diabolização da mulher. O jornalismo também é muito tendencioso. É uma coisa que vem de longe."
Em certas ocasiões, há coisas que levam as pessoas ao limite. Maria do Carmo não sabia ao certo porque tinha matado o filho. Asfixiou-o com as próprias mãos, mas manteve-o ao colo, já morto, por muitas horas, até ser noite. Depois, abandonou o corpo, enrolado num xaile, de modo a que fosse visível. "Tem de ser o desespero, é incrível", refere Anabela.
Mas esta não é a única história de infanticídios. "Em Coimbra, a Luísa de Jesus, a nossa única serial killer, matou pelo menos 28 crianças. Ia [à roda dos expostos] buscar as crianças para matar, talvez ganhasse dinheiro de alguém de dentro da própria Misericórdia. Eu acho que ela entrou numa espiral louca e depois já continuava a matar. Essa era mesmo má, não tinha nada a ver com a Maria do Carmo".
Motivos para assassinar e os crimes de hoje
São quase sempre os maridos. Ou há amantes, ou são maltratadas". É esta a resposta pronta de Anabela quando confrontada com o motivo que terá levado a maioria destas mulheres a matarem alguém. "Não há divórcio. E, de repente, acham que a melhor maneira de se libertarem é matarem-no".
Contudo, há formas e formas de matar. "Não sei se podemos fazer aquele comentário de que as mulheres envenenam mais do que os homens. A verdade é que as mulheres têm menos capacidade física, mas há aqui casos de machadadas, facadas, tiros..."
E atualmente? "Talvez alguns crimes hoje sejam mais engenhosos. Na essência, é a mesma coisa. Há uma série de crimes passionais que continuam a existir, tanto de um lado como de outro. Há uma série de roubos, que também continuam. E agora talvez haja até mais mulheres no crime, porque naquela altura as mulheres também não tinham liberdade para nada e, por isso, também praticavam muito menos crimes. Eram em menor número as mulheres criminosas. Hoje, acho que esse número provavelmente já é maior, porque a mulher já se move por onde se move o homem. Acho que a diferença pode ser a liberdade. E nas armas do crime, porque as coisas também são diferentes. Provavelmente, o veneno é outro, mais apurado. Se calhar agora era mais simples arranjar mais forte. Também não haverá tanta machadada porque já não existem muitos machados a não ser no meio do campo. São coisas que vão desaparecendo. Hoje é mais fácil matar ao tiro. Mas, de facto, não é hábito ver-se mulheres a matarem com pistolas e espingardas".
"O jornalismo estava mais próximo das pessoas do que está hoje. (...) Depois ficamos muito admirados porque os jornais não vendem ou por não conseguirmos vender online."
As mulheres diabólicas nos jornais
Uma das grandes fontes para se ter acesso às histórias dos crimes são os jornais de época. "Naquela altura havia, nos jornais, uma certa diabolização da mulher. O jornalismo também é muito tendencioso. É uma coisa que vem de longe. No caso do Diogo Alves, por exemplo, que era um 'gajo do pior', uma boa parte começava a dizer que a culpa era da namorada, da Parreirinha. Essa sim, é que lhe tinha metido o diabo no corpo, quando o tipo era só por si mau, gatuno, assassino e ela era uma taberneira que começou a andar com ele e alinhou nos roubos. Não sei se ela estaria muito dentro dos assuntos todos, mas não foi ela que o levou. Alguns [homens] eram só maus. Mas havia mais tendência a desculpar do que no caso das mulheres", refere.
Nos casos de infanticídio "não havia perdão" nas páginas dos jornais. "Era um assunto em que começavam logo a atacar desde início. Mas há uma coisa que eu lamento que se tenha perdido. Claro que não é esta parte do crime, mas o que diz respeito à proximidade com as pessoas. O jornalismo estava mais próximo das pessoas do que está hoje. Agora é tudo muito geral. Temos de dar o que interessa. Depois ficamos muito admirados porque os jornais não vendem ou por não conseguirmos vender online. Mas é simples: não dizemos o que me preocupa quando vou à Segurança Social ou coisas daqui, como um café que abriu!".
As pessoas têm de saber o que se passa. Ou o que se passou. "A informação pode ser dada melhor ou pior às pessoas. Depende sempre. Aqui [no livro], embora sejam casos muito passados, tentei fazer isso [dar informação]. São histórias como as outras. Aconteceu, é preciso contar. É preciso que as pessoas saibam como as coisas aconteceram, como é que eram dantes, para se aprender alguma coisa para hoje. Para que, pelo menos, não se cometam os mesmos erros que já se cometeram", remata.
Lisboa de outra perspetiva. Veja a infografia
Comentários