Antes de abordar o tema proposto – «que características tem a obra de Dostoiévski para ainda hoje se manter actual» – convém enumerar essa obra romanesca que ele criou entre 1846 e 1880 (não estão incluídos os três volumes de contos e pequenas novelas), uma vez que cada um dos seus romances irá sendo citado:

  • Gente Pobre (1846)
  • O Duplo (1846)
  • O Sonho do Tio (1859)
  • A Aldeia de Stepântchikovo e os Seus Habitantes (1859)
  • Humilhados e Ofendidos (1861)
  • Cadernos da Casa Morta (1862)
  • Cadernos do Subterrâneo (1864)
  • Crime e Castigo (1866)
  • O Jogador (1866)
  • O Idiota (1869)
  • O Eterno Marido (1870)
  • Os Demónios (1871)
  • O Adolescente (1875)
  • Os Irmãos Karamázov (1880)
  • Diário do Escritor (1873-1881)

A abordagem da actualidade da obra de Dostoiévski deverá ser abordada de dois pontos de vista que, logicamente, são indissolúveis e se fundem em cada romance: o artístico e o ideológico. 

Do ponto de vista artístico (isto é, não ideológico), retomo a afirmação de um escritor moderno, James Joyce. Segundo Joyce, Dostoiévski «criou a prosa moderna e conferiu-lhe uma intensidade igual à de hoje em diaEsta afirmação peremptória foi repetida de várias outras formas por outros escritores ocidentais de renome. Quer James Joyce dizer, e os outros, que, sem Dostoiévski, não existiria a estrutura narrativa no romance actual. No Ocidente, Dostoiévski começou a ser visto em toda a sua profundidade em meados do século XX. Mas, na Rússia, já em 1929, Mikhail Bakhtin lançava uma obra-prima do pós-formalismo russo, "A Poética de Dostoiévski", em que analisava os romances de Dostoiévski e mostrava como este autor inventara uma forma artística fundamentalmente nova («elaborou um género romanesco fundamentalmente novo», nas suas próprias palavras), o romance polifónico, ou dialógico (de diálogo), no qual as vozes das personagens se constituíam como instâncias discursivas, com consciência de si, confrontando-se numa contradição permanente.

Segundo ele, «Dostoiévski, à semelhança do Prometeu de Goethe, não cria, como Zeus, escravos sem voz, mas homens livres, capazes de ocupar lugar ao lado do seu criador, de o contradizerem e mesmo de se revoltarem contra ele». E acrescenta que os seus heróis principais «não são apenas objetos de discurso do autor, mas sujeitos do seu próprio discurso, imediatamente significante […] A consciência do herói é apresentada como outra consciência, alheia…» Assim, o centro de gravidade do romance polifónico é formado pelas personagens. Por exemplo, em "Os Irmãos Karamázov", Ivan Karamázov tem muito mais importância do que o narrador da história (um romancista anónimo que, por sua vez, o leitor terá muita dificuldade em identificar com o próprio Dostoiévski). A imposição identitária do autor em quase todos os romances de Dostoiévski é muito ténue. Ainda em "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski transforma por vezes as suas personagens em narradores independentes do narrador principal: continuando com a personagem Ivan Karamázov, ele é o narrador do capítulo «O Grande Inquisidor» e do «Diálogo com o Diabo». Em Demónios, a personagem Stavróguin é narrador circunstancial e, ao mesmo tempo, escritor do seu próprio texto. E Dostoiévski, verdadeiro criador de Stavróguin, nunca se identifica como seu autor explícito, nem deste nem de quaisquer outros dos seus personagens, ou quase. O Jogador e Crime e Castigo, no entanto, parecem não seguir a polifonia de Dostoiévski e tender mais para monofonia tradicional. Contudo, os Cadernos do Subterrâneo também foram um prelúdio da evolução do romance do século XX. Devem muito a este texto vanguardista de Dostoiévski escritores como Samuel Beckett, por exemplo, principalmente nos «nouveaux romans» "Molloy", "Malone Está a Morrer", "O Inominável", "Le Dépeupleur"; ou os da escritora franco-russa Nathalie Sarraute, "Tropismes", "Marterau", "Le Planétarium". É também natural, por conseguinte, que a polifonia formal dos romances (que Bakhtin define igualmente como a pluralidade das vozes e das consciências independentes e distintas numa obra) se vá reproduzir no sistema de ideias que atravessam a obra de Dostoiévski.

O outro prisma pelo qual se encara a obra de Dostoiévski é o do sistema de ideias do autor, da sua vontade de intervir na vida social, política, cultural, espiritual e religiosa da Rússia através da sua voz nos livros que escreve. A modernidade do escritor consiste precisamente na abertura a outras vozes diferentes da sua – e a sua voz assenta em última instância na sua filosofia cristã e atravessa todos os seus romances, mas na forma de debate de ideias, excluindo o sermão unidirecional (ao contrário de Tolstói). (A propósito da ideologia cristã de Dostoiévski, cito Tatiana Kassátkina, professora do Instituto de Literatura da Academia Russa das Ciências, em Moscovo, referindo-se aos "Cadernos do Subterrâneo": «Dostoiévski segue a tradição ortodoxa dos poetas-teólogos, em que as imagens do mundo exterior servem para construir imagens interiores. […] Dostoiévski entrega o conhecimento numa linguagem poética para despertar o que há em nós próprios. […]. Dostoiévski é a antítese do existencialismo europeu, que faz apenas um diagnóstico da cultura; em "Cadernos do Subterrâneo" oferece não só o diagnóstico, mas também o “medicamento”». Como exemplo mencionou que nos "Cadernos do Subterrâneo" o protagonista anónimo faz uma referência aos 40 anos passados «no subterrâneo», no exílio. «Está a referir-se deste modo aos 40 anos que os hebreus passaram com Moisés no deserto; essa peregrinação era necessária porque na Terra Prometida não entrava nenhum daqueles que haviam preferido as «panelas de carne» do Egipto (Êxodo 16,3) à liberdade. E o cristianismo é o caminho para a liberdade e para uma nobreza, não de nascimento, mas de trabalho pessoal, de peregrinação. Assim se chega à salvação».) No entanto, a própria Tatiana Kassátkina, investigadora atenta e minuciosa da obra de Dostoiévski, no seu prefácio à edição de 2004 de "O Diário do Escritor", conclui que prevalece sempre a visão do «filósofo na política», com a capacidade de ver os processos históricos globais que ecoam e se reflectem em acontecimentos políticos correntes.

Efectivamente, são muitos os temas em que as análises de Dostoiévski se mostram muito incisivas e premonitórias, como o do terrorismo, de certo modo ligado ao da solução dos problemas sociais através da violência (já começa a despontar na imagem de Raskólnikov em "Crime e Castigo"), mas em "Demónios" toma outro rumo – neste livro, a actividade dos «demónios» é «revolucionária» apenas em teoria e nas declarações e proclamações, não tem o objectivo de melhorar a vida de ninguém nem de mudar o sistema social, mas só estabelecer o caos e, pelos vistos, da parte do líder Verkhovênski, tirar algum proveito pessoal. Raskólnikov ("Crime e Castigo"), no seu isolamento e obsessão pelas teorias que inventa, tem uma ligação com a personagem sem nome de "Cadernos do Subterrâneo". O arrependimento de Raskólnikov não é tanto o reconhecimento da sua culpa perante as vítimas quanto o reconhecimento da lei de Cristo, que não pode ser violada para quem quer conservar a sua imagem humana e fazer parte do género humano. O arrependimento de Raskólnikov é a possibilidade de voltar às pessoas, sair do seu isolamento, para tal é preciso ter uma grande força interior que lhe falta, como faltou a Nikolai Stavróguin em "Demónios". Ou seja, cria-se em Dostoiévski (nas personagens dos vários romances de Dostoiévski) uma rede, um encadeamento em que a génese do terrorismo e as suas consequências são analisadas sob os seus múltiplos aspectos.

Os problemas que continuam actuais e deram azo a uma visão nova e que se verifica actual da parte de Dostoiévski são muitos: a responsabilidade que cada um deve ter pela sua vida, inclusivamente o «pequeno homem» pobre e humilhado (antes de Dostoiévski, em Púchkin e Gógol, pressupunha-se apenas a compaixão por esse pequeno homem); sem responsabilidade por si e pelos outros, sem a preocupação e o amor por outras pessoas, o pequeno homem é capaz de se transformar num pequeno predador vingativo, cruel e com uma enorme sede do poder ("A Aldeia de Stepântchikovo e os Seus Habitantes", de 1859, com a figura de Fomá Opískin); o problema da pedofilia (a partir de "Gente Pobre"), a violência doméstica e a educação dos filhos; o dinheiro e o seu papel, a ilusão de que o dinheiro é o caminho para a felicidade e a dignidade ("O Adolescente", de 1875); a degradação das camadas cultas da sociedade em O Jogador de 1866. 

Quanto ao problema da pedofilia, um tema tabu no tempo do escritor e hoje abordado abertamente, não podemos evitar alongar-nos um pouco, até porque, durante toda a sua vida o escritor foi caluniado só porque teve a coragem de abordar o assunto nos seus livros. Nina Guerra fez uma investigação aprofundada sobre o capítulo censurado «Com Tíkhon» de Demónios e escreveu o texto que se segue e que faz parte do prefácio para "Os Irmãos Karamázov", já publicado na última edição da Editorial Presença.

Filipe Guerra

Na infância do escritor aconteceu, de facto, uma tragédia que ele apenas na idade avançada viria a contar aos seus amigos (família de Anna Filossófova, 1837-1912, activista social, participante do movimento pelos direitos da mulher). Uma miúda de nove anos, «filha do cocheiro ou do cozinheiro», amiguinha e coetânea de Fiódor Dostoiévski, foi violada no pátio do hospital por um canalha bêbedo. Foi em Junho, no dia da Santa Trindade. O doutor Dostoiévski estava de serviço nas enfermarias. As pessoas que encontraram a vítima mandaram o pequeno Fiódor buscar o pai. Este não conseguiu salvar a miúda — morreu da hemorragia. E o abalo de infância transformou-se, para Fiódor Dostoiévski, em pesadelo de toda a vida. «[…] O mais terrível dos crimes […] o mais terrível dos pecados […]» — dirá o velho escritor aos convidados de Anna Filossófova. E a imagem da criança profanada e martirizada aparece em vários livros, a partir do romance "Humilhados e Ofendidos" (1861), depois em "Crime e Castigo" (1866) e em "Demónios" (1871-1872). Criança violada, criança suicida. Não só as vítimas de Svidrigáilov e de Stavróguin: a órfã Nelly, de dez anos, em "Humilhados e Ofendidos", por pouco não foi vendida pela sua senhoria; Nastássia Filíppovna, no romance "O Idiota", aos doze anos foi vítima do crápula Tótski; a jovem Várenka do romance "Gente Pobre" fugiu de casa da sua «benfeitora», tentando salvar-se do destino que esta lhe preparava. Um tema recorrente. E, em resultado, a sinistra sombra caiu sobre o próprio escritor.

Para cúmulo, Dostoiévski atreve-se a falar do tema «indecente» nos salões da boa sociedade. Das "Memórias" de Sófia Kovalévskaia: «Às vezes, Dostoiévski era muito realista no seu discurso, esquecendo que estava a falar na presença de meninas. A tal ponto que aterrorizava a minha mãe. Por exemplo, uma vez começou a contar uma cena do romance que concebera ainda na sua juventude; o herói que, quando era jovem, andou na pândega, mas depois se tornou homem sério, se casou e teve filhos […] lembra-se de que, uma vez, depois de uma noite de bebedeira, incitado pelos companheiros embriagados, violou uma miúda de dez anos. A minha mãe, ao ouvi-lo, ergueu as mãos: “Fiódor Mikháilovitch! Por amor de Deus! Na presença das meninas!” — implorou em desespero.» Das "Memórias" de Zinaída Trubetskaia, neta de Anna Filossófova: «Dostoiévski falava rápida, emocionada, atabalhoadamente […] O mais terrível, o mais horrendo pecado é o de violar uma criança. Tirar a vida é terrível, disse ele, mas tirar a fé na beleza do amor é um crime ainda mais horroroso. E contou um episódio da sua infância […] Durante toda a minha vida, disse Dostoiévski, esta recordação não deixa de me perseguir como o mais horrendo crime, como o mais horrendo pecado para o qual não há nem pode haver perdão, e por este crime, o mais terrível de todos, puni Stavróguin em "Demónios" […]»

E foi dos salões da boa sociedade que a suposição de que o próprio escritor cometera «o mais terrível dos crimes» partiu, levantou voo e, até hoje, não deixa de percorrer o mundo. A sociedade que, pudicamente, virava as costas ao «indecente» problema atribuiu a Dostoiévski o crime que cometeram os fictícios anticristos dos seus romances. Desde os anos setenta, o mexerico cresce, é comentado, analisado, «psicanalisado» e até romanceado. Enquanto Dostoiévski, atento aos processos judiciais, levanta a sua voz não só como romancista, mas como publicista em defesa das vítimas de maus tratos, crianças e mulheres, a que os tribunais, ilibando os criminosos, recusam protecção, os caluniadores, por sua vez atentos à actividade do maldito escritor, inventam pormenores cada vez mais esmerados: uma ocasião, quando Dostoiévski deu dinheiro para ajudar uma rapariga vítima de maus tratos, foi imediatamente acusado de se ter aproveitado dela. Ele luta pelos indefesos, a sociedade hipócrita faz comentários. As «grandes autoridades» já não conjecturam — afirmam categoricamente. O público ouve, acredita e divulga. A sentença foi lavrada e é irrevogável. O mexerico adquiriu uma envergadura mundial.

Dois anos depois da morte do escritor, Nikolai Strákhov, o tal «amigo de longa data», escreve uma carta a Lev Tolstói, em que, cheio de indignação, acusa Dostoiévski de ter sido uma pessoa abominável e depravada. Esta carta foi publicada na Rússia em 1913. Nas suas "Memórias", Anna Dostoiévskaia escreve: «A carta de N. N. Strákhov indignou-me profundamente. Uma pessoa que durante dezenas de anos tinha visitado a nossa família, que gozava da mais cordial amizade da parte do meu marido, mostrou-se, afinal, um mentiroso que tomou a liberdade de o caluniar dessa maneira! […] Strákhov também era testemunha de que Fiódor Mikháilovitch, durante muito tempo, ajudou a família do seu falecido irmão Mikhaíl, o seu irmão doente Nikolai e o seu enteado Pável Issáev. […] Mas a injustiça maior consistia nas palavras de Strákhov segundo as quais o meu marido era “depravado”, que “as nojeiras o atraíam e se gabava delas”. Como prova disso, Strákhov alega uma cena do romance "Demónios", que “Katkov não quis publicar, mas que Dostoiévski leu a muita gente”. Para caracterizar Nikolai Stavróguin [em "Demónios"], Fiódor Mikháilovitch precisava de lhe atribuir um crime vergonhoso. […] Então, foi deste papel asqueroso da personagem Stavróguin que Strákhov, sem pensar duas vezes, acusou o próprio Fiódor Mikháilovitch…» (Anna Dostoiévskaia. "Memórias". Khudójestvennaia Literatura, Moscovo, 1971).

[…] A propósito, o mexerico sensacional ganhou novas forças quando, em 1922, no Arquivo Central de Moscovo, foi aberta uma caixa com manuscritos de Dostoiévski e nela foi encontrada a assim chamada «Confissão de Stavróguin», ou seja, o capítulo «Com Tíkhon», que em tempos o primeiro editor se recusara a publicar. Pela mesma lógica de que falámos acima, a confissão foi atribuída ao próprio escritor.

Dostoiévski, que passou toda a vida sob o fogo cruzado dos mexericos, conhecia muito bem a tecnologia da mexeriquice: não é por acaso que utiliza a forma da bisbilhotice na estrutura das suas obras — alguém espiou, escutou, contou ao outro, um terceiro acrescentou um pormenorzinho, alguém tirou uma conclusão… e pronto, a verdade desapareceu nesta turva neblina, e as pessoas ficaram incapazes de se entender, de discernir a verdade. 

O Estado, a Igreja, a família, a escola, o tribunal, as relações entre os pais e os filhos, entre os educadores e os educandos, entre as pessoas de vários meios sociais, as questões da ética e moral, a situação material das classes superiores e da aldeia faminta, da vida cultural, os problemas do crime e da culpa, os sofrimentos dos adultos e das crianças, o caminho histórico do país — esta é apenas uma curta enumeração dos problemas abrangidos pelo último romance de Fiódor Dostoiévski, o mais amplo e profundo, pelo seu conteúdo e  pela sua filosofia, de todas as suas obras.

Nina Guerra

Para concluir, diremos que actualidade implica universalidade. Dostoiévski dizia-se «fracote em filosofia» e nulo em psicologia, mas três décadas depois Freud chega a teses e conclusões que já estão expressas nos seus "Cadernos do Subterrâneo" e no seu "Duplo"

Dostoiévski não era apenas romancista, mas filósofo, publicista e activista social, um homem empenhado civicamente, como mostra em "O Diário do Escritor" que regista factos, acontecimentos e fenómenos daquela época, analisados por um dos mais originais e independentes pensadores da Rússia. Muitas das suas ficções saíram da realidade que descreve em "Diário do Escritor".


Os autores escrevem ao abrigo do antigo acordo ortográfico.