Depois de tanto tempo a contar a verdade, fiquei farto. Começou assim Salman Rushdie, naquele palco, naquela tenda, naquele Castelo, e naquela vila perfeita para receber o escritor britânico. Um escritor que já escreveu dezassete livros, mas que para muitos continua a ser simplesmente o escritor do seu quinto livro e quarto romance – a precisão é do próprio – o livro “Versículos Satânicos”, publicado em 1989.

De certeza, que está também farto que se lembrem disto cada vez que o apresentam. Provavelmente, é sobretudo desta verdade que está farto até porque, como se verá na conversa que manteve durante uma hora e meia no Folio – Festival Literário de Óbidos, apesar de farto da verdade, continua a acreditar que coisas aparentemente inevitáveis podem simplesmente não acontecer.

Nos últimos anos, Rushdie achou que estava na altura de resolver algumas coisas. E por resolver algumas coisas coisas quis também dizer deixar de ser Joseph Anton ou, melhor ainda, ser o seu oposto. Se não sabe quem é Joseph Anton, aposto que Rushdie não lhe levaria a mal – até porque significa que não estará farto dessa verdade.

[Joseph Anton, além de título do livro autobiográfico que publicou em 2012, foi o nome que escolheu nos quase dez anos de clandestinidade, por causa desse outro livro de que todos sempre falam quando se invoca o seu nome]

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Como Clara Ferreira Alves, o par da conversa com Salman Rushdie, disse, alguma coisa aconteceu há 27 anos, mas ele, o grande escritor que ali esteve perante nós, é generoso com a audiência mesmo que seja plausível que esteja farto dessa história de verdade.

Importa-lhe que as pessoas pensem nele por causa desse evento – mesmo quem não o condenou a qualquer castigo. Mesmo – e sobretudo – que muitos dos que simplesmente condenaram o que escreveu nunca tivessem lido tal coisa como o livro que causou tudo isso. Ou outros. O que o faz dizer, com um sorriso que desarma, que quem não leu o seu trabalho, pensa nele como alguém que não é.

Porque não é um escritor assombrado. Triste, obscuro, sem graça. Dark.

Aliás, era até um tipo bem divertido [antes daquele evento há 27 anos] e agora, aos 69 anos, está feliz que as pessoas deem por isso.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Clara Ferreira Alves nota mais do que isso. As pessoas acham-lhe graça. Os jovens – sobretudo os americanos – acham-lhe mesmo muita graça. Os techies também. “Às vezes acho que estou a ir directo para a Comic-Con”, afirma a jornalista a propósito desta relação que Rushdie estabelece ao criar personagens tão singulares, tão fantásticas. Era bom ter as vendas dessas estrelas da Comic-Con, responde-lhe o escritor.

Mas, é verdade, concorda, sente que percebe os jovens. De onde é que isso vem? Arrisca qualquer coisa primeiro vaga – mas bonita – e depois concreta. Tem de se conseguir ouvir o ruído que vai nos pensamentos deles. E tem de se conseguir ser outro completamente diferente do que somos. A walk of life, como fazia Charles Dickens ou Thackeray criando personagens que nada tinham a ver com eles nem com aquilo que viviam.

Estes jovens, estas vivências que não são as de quem escreve, Rushdie encontra-as melhor nas grandes cidades. Como a de Nova Iorque, que escolheu para viver. Uma cidade americana que segundo fomos habituados a pensar não vibra com o futebol. Apesar de ser vibrante por natureza, o que só aumenta esse estranho distanciamento perante um evento mundial. Mas depois … depois passeia-se nas ruas de Brooklin e encontram-se aqui e mais abaixo as comunidades que vibram, que sofrem, que celebram o futebol. Aqui a Croácia, mais abaixo a Sérvia, depois a Rússia, a Ucrânia. Rushdie di-lo de uma maneira que os países que enumera podem até parecer por acaso.

E depois há esta coisa dos smartphones e dos auscultadores. Antes as pessoas que desciam a rua a falar sozinhas eram doidas. Agora estão a contar a sua história em voz alta enquanto falam com a namorada, com a mãe, com o amigo. Há todo um potencial para o the walk of life.

E, claro, há as redes sociais.

As redes sociais dão que pensar ao escritor.

O Facebook, por exemplo, é um sítio onde todos estão felizes.

Os amigos amam-nos, os filhos são maravilhosos, há um sol fantástico. Lá volta a enumeração casual e ainda assim tão precisa, tão absolutamente cirúrgica. O mundo é maravilhoso no Facebook. Tanto que parece “indecente” quando alguém fala de dor no Facebook.

Mas, o Facebook é o menor dos males, na forma como Rushdie vê estes mundos paralelos.

Os trolls, tenta interromper Clara. Os trolls estão no Twitter, atalha ele rápido.

Fala o homem –e incontornavelmente a celebridade – que teve 1,2 milhões de seguidores e que um dia acordou de manhã e percebeu que já não estava apaixonado pelo pássaro azul. Porque de repente, exatamente como acontece nas relações, um dia olhou para o lado e aquela realidade já nada tinha a ver consigo. “O Twitter permite às pessoas serem mal-educadas” – unbelievably rude.

Esta licença para ser mal-educado tem consequências. Sim, vamos finalmente falar de Donald Trump. Trump é uma consequência de uma geração que não percebe o civismo, diz o escritor que todos viemos ouvir. Mas ele, Rushdie, um dia acordou e simplesmente acabou com tudo. Broke up with the dumb blue bird. Sem mais hesitação. Na realidade, foi preciso mais que isso. Ele apagou a app do Twitter do telemóvel, mas manteve a conta. Com 1,2 milhões de seguidores. E assim ninguém vai escrever em nome dele e ele simplesmente nunca mais vai ver o pássaro.

Vamos agora ouvir falar do livro. O último livro que escreveu. O livro em que depois de ter resolvido as coisas com a verdade, voltou à magia. Diz ele que tudo é possível quando se cria uma história desde que essa história seja credível em si mesma. Se for, as pessoas, como se diz, compram a história. Os homens têm uma imaginação muito limitada no que respeita aos desejos, é o que ele pensa. Quando se tem três desejos para pedir, por exemplo, o único pedido inteligente é poder pedir mais três desejos.

Nas histórias, a imaginação tem que ser consequente. Se estamos numa cadeira, e levitamos um centímetro acima do nosso lugar, ou se estamos a guiar, e o nosso pé está a um centímetro do acelerador, ou melhor, se estamos sentados na sanita mas igualmente um centímetro acima … temos um problema (risos, esquecemo-nos de mencionar, mas foram frequentes ao longo desta conversa). Então o que há a fazer é levar a magia completamente a sério. Que é aquilo que fez Tolkien quando criou o Senhor dos Anéis, esse esforço enorme para criar o seu próprio mundo.

Como a Guerra dos Tronos, também, assinala Clara Ferreira Alves. Rushdie diz que não sabe. Não leu, não viu a Guerra dos Tronos. Mas pelo que lhe contam pensa que se tirarem os hobbits e acrescentarem sexo violento ao Senhor do Anéis se obtém Guerra dos Tronos. Ele sente falta dos hobbits.

Ainda há mais tempo do que aquilo que aconteceu há 27 anos, Rushdie falhou as manifestações de 1968, em Paris. Não porque não lhe apetecesse, apesar de as roupas serem parvas e as drogas serem estúpidas, mas porque tinha exames em Cambridge aos quais não podia faltar. Mas o que ainda hoje recorda bem é essa era uma época em que não se falava de religião. Religião era como se fosse história antiga.

Hoje gostava de não falar de religião – mas ela está no meio da sala e não é sequer o elefante. O elefante é um rato ao pé do que a religião é hoje no meio da sala. E ele, não querendo que assim fosse, tem de olhar para a religião para lidar com o mundo como ele é.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Há cinco anos, quando começou a escrever "Dois anos, oito meses e vinte e oito noites", ISIS era apenas o nome de uma deusa egípcia. E no livro que começava a escrever, regressava à magia ainda que “Dois anos, oito meses e vinte e oito noites” nos pareça hoje tão familiar com o que se passa no mundo. Ele acena com a cabeça e ironiza: peço aos meus livros para pararem de se tornar realidade. Inspirado nas Mil e Uma Noites, este regresso ao fantástico – às personagens dignas de Comic-Con – tem por protagonistas seres fantásticos, os jinn, que vivem num mundo separado do nosso por um véu. São seres que resultam da paixão entre uma princesa jinn do mundo fantástico e um mero racional mortal e que, uma vez quebrada a linha que separa os dois mundos, vão entrar numa guerra entre o bem e o mal.

[o primeiro capítulo pode ser lido aqui]

E porque a religião não é história antiga tem de ser possível fazer humor com aquilo que é. Porque religião, diz, é na sua essência sem humor. É non-sense. O escritor continua a dizer isto sem hesitar, sem estremecer, 27 anos depois de algo ter acontecido. Mas Clara Ferreira Alves quer que ele viaje mundo fora, e ele aceita o convite. Então e o Ocidente, o que pensa do Ocidente. Pensa Rushdie que há desencantamento com a democracia e aumento dos demagogos. Dos falsos profetas – lá está uma espécie de religião, mesmo a que vem da história antiga. Falsos profetas como Marine Le Pen, Trump, o Brexit. O Brexit custa-lhe especialmente a ele, britânico que escolheu Nova Iorque para viver. E como britânico custa-lhe especialmente Boris Johnson, o ministro dos Negócios Estrangeiros inglês, ex-mayor de Londres e arquitecto do Brexit. A ele, diz Rushdie, não pode sequer dignificar com o nome de falso profeta. É uma das piores pessoas assegura. E a Grã-Bretanha, esse país sensato e responsável, a suicidar-se perante os nossos olhos.

[Mais uma razão para se sentir melhor em Nova Iorque. Aliás, sempre achou mais fácil apaixonar-se por cidades do que por países. Mas Nova Iorque também não é a América e a América não gosta de Nova Iorque, apesar de ter tentado por uns meses a seguir ao 11 de setembro]

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

A conversa vai acabar onde começou e naquilo que nos juntou a todos ali naquela tenda, naquele Castelo, e naquela vila, perfeita para receber o escritor britânico. A falar de livros. Salman Rushdie, o escritor, gosta de livros que o fazem pensar, mas não que lhe dizem o que pensar. Porque muito poucos livros mudam o mundo (Moby Dick nem a pesca mudou, como assinala).

Talvez “A Cabana do Pai Tomás” tenha mudado o mundo, e a escravatura, e provocado uma guerra. Lincoln também pensava que sim. Mas, no que mais importa, o que se deve querer é que as pessoas gostem de um livro como de um prato extraordinário que comem – porque é bom, delicioso e não por debitarem os ingredientes.

E é por tudo isto também que se sente bem em Nova Iorque e não tem planos de ir para Hollywood (apesar de as piscinas serem ótimas). Até pensou nisso, confessa. Escreveu uns episódios-piloto para uma série de televisão e levou-os a uma estação. Gostaram muito, o patrão do canal disse-lhe que era fantástico, o melhor que tinha lido nos últimos anos. Os subordinados acenaram todos que sim. Em Hollywood todos acenam em cadeia de comando. Tempos depois recebeu um SMS dizendo apenas: decidimos não avançar.

Encolhe os ombros e sorri.

Mas Clara ainda tem mais uma pergunta: e o Nobel?

Agora sim limita-se a simular que ressona.

Há 27 anos, o Irão do Ayatola Khomeini decretou uma fatwa a Salman Rushdie por causa do livro Versículos Satânicos. Durante uma década, o escritor viveu sob proteção, com nomes falsos, em parte incerta. Na sexta-feira, havia quem murmurasse que a vila perfeita de Óbidos estava agitada por uma segurança invulgar e os seguranças de Rushdie terão andado sempre por ali.

À noite, naquela tenda, estava apenas um homem livre.

Pode ouvir a conversa entre Salman Rushdie e Clara Ferreira Alves aqui.

O Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos termina hoje e, se ainda não foi, vale a sua visita.