12.º capítulo

CAÇADORES COREANOS DE MARTAS‐ZIBELINAS

Pequenos ribeiros da zona costeira — Fanza coreana — Moinho de água — Rio Naina — Armadilha coreana para martas­ ­zibelinas — Impacto da colonização sobre a região — Cabo de Arka — Rio Kvandagou — Rio Kudia­Khe — Aldeia dos starovers — Udegueis — Clima da região costeira — Fenologia — Fronteiras botânicas e zoogeográficas — Rio Amagu — Alce

Quanto mais se avança para norte, mais os terraços da costa marítima se elevam. Estão fortemente desenvolvidos nas proximidades da foz dos seguintes ribeiros montanhosos: Gappaksi, Bula (em chinês, Iandioza), Tolomgui, Kulumbe, Momokchi e Naina, onde atingem uma altura de 15 metros. Perto do Momokchi, os terraços adentram‐se no vale e estendem‐se pelas suas margens sob a forma de cornijas bem definidas. A base destes terraços é maciça, enquanto a parte superior é composta por fragmentos angulosos intercalados com camadas de argila, pelo que está constantemente alagada. Ali, na costa, aparecem pela primeira vez lariços, que crescem em grupos.

A geografia da zona litoral entre o Momokchi e o Naina é a seguinte: a elevada Cordilheira de Gabadi discorre sob um ângulo aguçado em relação à costa. Do seu lado oposto localiza‐se a bacia do Rio Kulumbe, e a partir desta vertente existem vários riachos que têm nomes apenas na língua udeguei: Iashu (nas cartas náuticas, Iachasu), Uiakhgui‐Biazani, Sanke, Kaputy, Ianuja, entre outros. No meio deles, devem ser realçados três picos montanhosos: Gabadi, Diukhane e o Monte Iandoiuza; e nas imediações da foz do Iashu, o penedo solitário Kada‐Budi‐Duoni. Nas cartas náuticas é denominado como Monte Ojidanie (1).

Do Rio Kulumbe para norte até ao Rio Naina, as rochas estão dispostas da seguinte forma: primeiro surge o andesito, com desagregações colunares ligeiramente em forma de leque, que é seguido pelo dacito com tridimite e pelos xistos siliciosos. As montanhas adjacentes à foz do Rio Momokchi (o Cabo de Aleksandr) são constituídas por quartzo‐pórfiro altamente modificado, bem como por rochas bastante compactas e de tipo greisen. É possível encontrar fulgores de enxofre nelas, com raras variações de densidade. Entre os riachos Iashu e Momokchi, sobressaem da massa montanhosa em direcção ao mar dois cabos com nomes udegueis: Ukhe‐duoni e Kopochi‐duoni.

Finalmente, junto ao Rio Naina, é possível observar nos afloramentos fluviais uma rocha parda complexa, fortemente metamorfoseada.

No sopé dos terraços do Naina, mesmo na orla marítima, encontrámos uma fanza coreana. Os seus habitantes dedicavam‐se à apanha de caranguejos e martas‐zibelinas. Na fanza viviam nove coreanos solteiros. Entre eles, dois estavam vestidos à chinesa e um à udeguei. Todos usavam trança e tinham as testas rapadas. Durante muito tempo, tomei‐os pelo que aparentavam ser, e só mais tarde descobri quem realmente eram.

Madalena Sá Fernandes junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de novembro, pelas 21h00. A autora traz "Leme", o seu primeiro livro, editado pela Companhia das Letras.

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Madalena Sá Fernandes nasceu em Lisboa, em 1993. Licenciou-se em Línguas, Literaturas e Culturas pela Universidade Nova de Lisboa e escreve crónicas no jornal Público.

Este livro apresenta "o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias", é referido na sinopse.

"Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas", pode ler-se.

Assim, "Leme" é entendido como "um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal".

Ao aproximar‐me da fanza, ouvi o murmúrio da água e depois o som de algo pesado a cair. Primeiro, não prestei qualquer atenção a isso, mas quando o ruído se repetiu pela segunda, pela terceira e pela décima vez perguntei de que se tratava. Chjan Bao explicou‐me que era um moinho coreano que funcionava com o movimento da água.

Este tipo de moinho instala‐se junto de ribeiras da seguinte forma: monta‐se sobre dois suportes um rolo de rotação livre, que passa através de um longo balanceiro com braços desproporcionais. No braço mais curto, fixa‐se um pesado pilão, sob o qual é colocado um grande almofariz de madeira. O outro braço do balanceiro (o mais comprido) termina num alcatruz. A água flui por uma calha e enche o alcatruz, que, recebendo um peso considerável, desce e faz subir o pilão. Assim que o alcatruz se inclina, a água é derramada de uma só vez, atraindo então o pilão, que cai dentro do almofariz.

De entre todos os povos orientais do continente asiático, os coreanos foram os primeiros a pensar na utilização da força viva da água. Os chineses não dispõem de tais máquinas. Por vezes, os moinhos são instalados em casas ou nas próprias fan­zas. Neste último caso, em vez de alcatruz, o balanceiro tem na extremidade uma pá plana, e a máquina é colocada em movimento com a pressão do pé. Regra geral, este trabalho é realizado por mulheres.

No caminho de regresso à fanza, ouvi outro ruído, desta feita vindo do celeiro: eram os coreanos a moer farinha por meio de mós manuais, dispostas uma sobre a outra. Na mó superior estava fixada uma alavanca curta, com a ajuda da qual a mó era accionada. O grão era vertido para uma caixa de madeira, de onde escorria para o orifício da pedra superior e daí para as folgas entre as mós.

Como já era de esperar, o nosso aparecimento provocou inquietação entre os coreanos. A fanza revelou‐se espaçosa e, por isso, instalámo‐nos num dos kanes. Dersu fingiu que não percebia a língua coreana, e pôs‐se a escutar atentamente o que falavam entre si.

A partir da conversa deles, o goldo ficou a saber que naquele grupo havia alguns exploradores de minerais, e que os restantes eram caçadores que tinham vindo do Rio Kulumbe, onde tinham fanzas de caça, à procura de provisões.

O dia 27 de Setembro foi dedicado à exploração do Rio Naina, por algum motivo denominado como Iakhodei‐Sanka nas cartas náuticas. Este rio tem 20 quilómetros de comprimento e as suas nascentes, sobre as quais se falará mais adiante, localizam‐se na Cordilheira de Kartu. Primeira‐ mente, o Naina flui de norte para sul, depois vira para sudeste e, nos últimos dez quilómetros, corre para o mar numa direcção latitudinal. No rincão onde o rio faz uma curva situa‐se esta fanza de caça. A partir deste ponto, a direito para oeste, começa o trilho pelo qual A.I. Merzliakov se encaminhara com o seu destacamento.

A fanza de caça coreana é uma pequena construção feita de troncos com um telhado de duas águas em casca de cedro, suavemente inclinado. Tem duas ou três janelas, uma de cada lado, e duas portas, sempre viradas para o rio. A sua estrutura interna é semelhante à das fanzas chinesas; tem uma lareira com um caldeirão de ferro e um kan para dormir aquecido pelas chaminés. Todo o mobiliário de interior é feito de forma grosseira, tosca, para que não dê pena deixá‐lo no caso de ser necessário mudar para outro local. E tanto por fora, pelo tipo de construção, como por dentro, pela mobília, pode sempre distinguir‐se a fanza de caça coreana da chinesa.

Era Outono, e os coreanos já tinham começado a apanhar martas‐zibelinas. Não muito longe da fanza, vimos as armadilhas para zibelinas propriamente ditas, as chamadas «pontes». Para as montar, os coreanos utilizam as árvores arrancadas pelo vento, passando‐as de uma margem do rio para a outra. Por vezes, derrubam propositadamente árvores para este fim, se o local lhes parecer apropriado e não houver árvores caídas por perto. A meio do tronco, faz‐se uma cerca de pequenos galhos, deixando‐se uma passagem estreita na qual se fixa um laço feito de crina numa posição vertical. O tronco é de tal maneira talhado dos lados que não permite à marta‐zibelina contornar a cerca. O laço é amarrado à extremidade de um pau de madeira com uma pequena saliência, que apenas repousa num pequeno apoio. A este pau está amarrada uma carga (pedra) de três ou quatro quilos. Quando a marta‐zibelina corre ao longo desta «ponte», depara‐se com a cerca e tenta contorná‐la, mas não consegue devido aos sarrafos polidos. Então, tenta saltar através do laço, fica emaranhada, arrasta‐o e arranca o pau do apoio. A carga cai na água, trazendo consigo o valioso predador.

Livro: "Dersu Uzala"

Autor: Vladimir Arseniev

Editora: Tita-da-China

Data de Lançamento: 9 de novembro de 2023

Preço: € 23,90

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Os coreanos consideram que o seu método de apanhar martas‐zibelinas é o melhor, pois a armadilha funciona sem falhas e nunca houve casos de fuga do animal. Além disso, debaixo de água a marta‐zibelina mantém‐se intacta e não pode ser danificada pelos corvos e gaios. São frequentes os casos em que, nas armadilhas coreanas, bem como nas chinesas, caem esquilos, galinhas‐monteses e outros pequenos pássaros.

Todo o vale do Rio Naina está coberto de floresta queimada: houve ali um incêndio há alguns anos. Actualmente, no lugar da antiga floresta de coníferas cresceu um bosque jovem composto por bétulas, lariços e choupos‐tremedores.

Regressámos ao anoitecer.

Dersu sentia uma certa aversão aos coreanos e, apesar de lá fora estar frio e ventoso, recusou‐se a pernoitar na fanza. Montou ele próprio um bivaque à beira‐mar, sob o abrigo do terraço.

À noite, depois do jantar, fui ver o que estava a fazer. Dersu encontrava‐se sentado com as pernas dobradas sob o corpo e fumava cachimbo. Achei o seu bivaque tão acolhedor que não pude privar‐me do prazer de me aquecer à fogueira e conversar com ele tomando uma caneca de chá.

— Dersu — disse‐lhe —, fiquei com saudades tuas. Assim que não estás comigo, sinto logo a tua falta.

— Obrigado, capitão — respondeu o goldo com um sorriso —, obrigado! Minha também é assim. A ti vai sozinho à colina, minha tem muito medo.

Dersu chegou‐se para o lado. Sentei‐me ao pé dele e perguntei‐lhe porque não gostava de coreanos.

Ele começou a recordar os tempos da sua infância em que, além de goldos e udegueis, não havia de todo outros povos. Mas eis que apareceram os chineses, e mais tarde os russos. Ano após ano, a vida tornava‐se cada vez mais difícil. Depois chegaram os coreanos. As florestas começaram a arder; as martas‐zibelinas abandonaram aqueles territórios e a quan‐ tidade de animais de outras espécies diminuiu. E agora, à beira‐mar, surgiram também os japoneses. Como continuar a viver?

Dersu ficou em silêncio, pensativo. O passado distante res‐ suscitava diante dele; estava absorvido por estas memórias. Também eu meditava. De facto, a região de Primorie (2) estava a ser rapidamente colonizada. Já não falta muito para que da taiga virgem e primitiva não sobrem quaisquer vestígios. Os animais também irão desaparecer.

Estávamos sentados em silêncio, e cada um pensava sobre a mesma coisa à sua maneira.

— Como continuar a viver? — proferiu de repente Dersu, e suspirou profundamente.

— Não te preocupes, meu velho — respondi —, chega para o resto das nossas vidas.

Nesse momento, Chan Bao aproximou‐se de nós e, rindo, começou a contar como um coreano tinha pisado a cabeça de outro no escuro, e como este, para se vingar, lhe sujara o rosto com papa de setária. A nossa conversa mudou de tema.

No dia seguinte, continuámos o nosso caminho mais para norte. O tempo estava nublado; contudo, não chovia.

A norte do Rio Naina, até ao Rio Amagu, estendem‐se andesitos e tufos de quartzo‐pórfiro. Os afloramentos perto do Rio Amagu (os Cabos de Belkin e de Arka) merecem especial atenção. Neste lugar, nas variegadas camadas de tufo, observam‐se cavidades com nódulos de espatos calcários e de uma pedra macia e esverdeada.

Nas cartas náuticas estão marcados dois portões costeiros nesta zona. Um é pequeno, mesmo à beira da costa; e o outro, grande, está na água. Actualmente, preservou‐se apenas aquele que fica mais perto da costa. Os udegueis chamam‐lhe Sangaçu, que significa «Pedras Esburacadas», e os chineses, Kulunzuiza (3).

Os indígenas contam uma lenda acerca destas Pedras Esburacadas. Havia um povo que vivia no Rio Nakhtokhu e outro no Rio Shoomi. Os homens do Shoomi tomaram como esposas as mulheres do Rio Nakhtokhu, mas não deram as suas filhas em troca, como mandava a tradição. Os udegueis do Nakhtokhu foram até ao Shoomi e, aproveitando‐se da ausência dos homens, levaram à força tantas jovens quanto necessitavam.

Os homens do Shoomi perseguiram‐nos de barco. Quando alcançaram o Cabo de Sangaçu, não rezaram, mas, pelo contrário, entraram com gritos e injúrias sob o arco do portão costeiro. Neste lugar, no alto, viram uma mobelha; porém, não era um simples pássaro: era o Temu (o Pato‐falcado, o Senhor dos Mares). Um udeguei atirou nele, mas falhou. Então, a abóbada de pedra desabou e afundou ambos os barcos com 22 homens.

Um pouco mais longe dos rochedos de Sangaçu, o trilho deixa o litoral e sobe pelo desfiladeiro do Rio Kvandagou (um afluente do Amagu). Este rio tem cerca de 30 quilómetros de comprimento e as suas nascentes situam‐se no mesmo local das do Rio Naina. Inicialmente, o Rio Kvandagou também flui por uma garganta profunda obstruída por blocos de pedra, mas em seguida o seu vale alarga‐se. A metade superior do curso do Kvandagou corre na direcção noroeste; porém, o rio depois vira abruptamente para nordeste e flui ao longo da costa, sendo apartado dela pela cadeia montanhosa de Changotykalani.

Os dois cabos seguintes chamam‐se Niummyi‐duoni e Laamchi‐duoni; finalmente, o último cabo perto do Amagu tem um nome russo — Belkin —, e nas suas proximidades encontra‐se a pequena Enseada de Razocharovanie (4).

Ao abandonar as montanhas, o fluxo do Kvandagou torna‐se silencioso e tranquilo. O rio vagueia de uma vertente do vale para a outra, começa cedo a dividir‐se em rápidos e une‐se com o Rio Amagu quase junto ao mar.

Depois do desfiladeiro, o trilho segue primeiramente pela margem direita do rio, depois passa para a esquerda através de um pântano lamacento, em seguida retorna à direita, na qual se mantém até à foz. Na metade superior do Rio Kvandagou, as margens estão cobertas por florestas de coníferas, ao passo que na metade inferior dominam exclusivamente as espécies caducifólias: álamo, carvalho, bétula, choupo‐negro, choupo‐tremedor, bordo, etc.

O caminho ao longo do Rio Kvandagou pareceu‐me muito extenso. Parámos para descansar por duas vezes, depois voltámos a marchar na esperança de que o mar estivesse prestes a despontar. Por fim, a floresta começou a rarear; o trilho subiu por uma colina não muito alta e, à nossa frente, abriu‐se o vasto e pitoresco vale do Rio Amagu, com uma aldeia de starovers na margem oposta do rio. Gritámos. As crianças trouxeram‐nos um barco. A nossa ausência prolongada havia alarmado Merzliakov. Os atiradores estavam prestes a ir ao nosso encontro, mas os starovers tinham‐nos dissuadido.

Passados alguns minutos, encontrava‐me já sentado à mesa numa izbá, a beber leite e a ouvir o relatório de A.I. Merzliakov. A notícia da minha chegada ao Amagu espalhou‐se rapidamente por toda a aldeia.

Os starovers acolheram‐me muito amigavelmente. Também tive de receber visitas e tratá‐las da mesma forma.

Os três dias seguintes foram de repouso: descansámos e reunimos forças. Ia todos os dias até ao mar para explorar as imediações mais próximas. O Rio Amagu (em udeguei, Amuli; em chinês, Amagou) forma‐se a partir da confluência de três rios: do próprio Amagu, do Kvandagou, ao longo do qual tínhamos caminhado, e do Kudia‐khe, que também desagua no Amagu pelo lado direito, um pouco mais a montante do Kvandagou. Por isso, quando se olha a partir da orla marítima, fica‐se inadvertidamente com a impressão de que o Kudia‐khe é o rio principal, sendo que, na verdade, ele corre de norte, pelo que é impossível ver o seu vale devido às montanhas.

O Kudia‐khe, com uma extensão de cerca de 20 quiló‐ metros, é um riacho veloz e com vários rápidos. Flui por um amplo vale e também tem origem na Cordilheira de Kartu. A parte superior do vale está coberta de madeira seca quei‐ mada. O bosque jovem, que está uma vez mais a irromper, consiste principalmente em choupos‐tremedores, lariços e bétulas‐brancas; mais perto do mar, nas montanhas, predomi‐ nam várias espécies de coníferas.

É notório que a parte inferior do vale do Amagu, onde os starovers se assentaram, antigamente era uma baía marítima. Em tempos, os rios Kudia‐khe e Kvandagou desaguavam no mar em separado. Posteriormente, ocorreu o processo habitual de preenchimento da baía com sedimentos fluviais e o recuo do mar. Na vertente esquerda, ainda hoje está preservado um longo pântano turfoso, embora também já se encontre em fase de dessecação. Actualmente, o rio Amagu desagua no mar perto do Cabo de Belkin e, junto à foz, forma uma pequena enseada que comunica com o mar por um canal estreito.

A aldeia dos starovers era composta por 18 granjas. Os primeiros colonos (sete famílias) haviam transumado para lá a partir do Rio Daubikhe em 1900. Vivendo longe, nas montanhas, os starovers conservaram a aparência de grão‐russos puros. A ordem patriarcal nas famílias, os trajes, os utensílios, os bordados nas roupas, a talha em madeira, etc. — tudo isto fazia lembrar a Rússia Antiga. Tive a impressão de ter retrocedido de uma só vez vários séculos. Era interessante observar como os starovers viviam «em retrospecção»: consideravam sensacionais alguns dos acontecimentos que haviam ocorrido há muito tempo e que, na Rússia, já tinham deixado de apresentar qualquer relevância.

Passavam por ali navios japoneses, mas russos, muito rara‐ mente. Por isso, os habitantes da aldeia faziam todas as suas compras no Japão, e apenas em caso de emergência iam por terra até à Baía de Olga, realizando longas viagens para esse fim. Os seus meios de subsistência eram a agricultura e a apanha de martas‐zibelinas. Caçavam de todas as formas: à maneira chinesa, coreana e udeguei. Também se dedicavam à caça de veados e alces e à pesca. Nem na sua roupa, nem no interior das suas casas, nem em qualquer outro pormenor se observava vestígios de luxo, mas, apesar disso, tudo levava a crer que se tratava de um povo abastado. Possuíam, em particular, muitos cavalos e gado bovino; contei 82 cavalos e 84 vacas.

Além dos starovers, no Amagu vivia também uma família de udegueis composta por um pai já idoso, pela sua mulher e por três filhos adultos. Em louvor dos starovers, é preciso realçar que depois de terem chegado ao Amagu não começaram a oprimir os indígenas; muito pelo contrário, ajudaram‐nos e ensinaram‐lhes a agricultura e a criação de gado. Os udegueis aprenderam a falar russo, adquiriram cavalos e gado bovino, e construíram banhos.

Na orla da floresta caducifólia, perto do pântano, os staro­vers encontravam frequentemente no solo, não muito fundo, colares, brincos, pulseiras, botões, flechas, lanças e ossos humanos. Examinei aquele lugar e encontrei vestígios de um povoado. Nas antigas cartas náuticas estão assinaladas numerosas iurtas de indígenas na foz do Amagu. Um starover idoso contou‐me que há 30 anos, neste lugar, realmente viviam muitos udegueis, mas que tinham morrido todos de varíola. Segundo Bogoliubski, em 1870 viviam muitos nativos na orla marítima, perto do Rio Amagu.

No que diz respeito ao clima, esta parte do litoral difere bastante das áreas a oeste da Sikhote‐Alin. O Verão ali é húmido e fresco; o Outono, longo e ameno; o Inverno, seco e frio; e a Primavera, tardia. A primeira metade do Inverno passa‐se sem neve, que cai apenas em Fevereiro e Março. Em contrapartida, Novembro e Dezembro são extremamente ventosos. Geralmente, os ventos sopram do lado da Cordilheira de Kartu. De acordo com as observações dos starovers, se nas montanhas a oeste o céu estiver limpo, o tempo mostrar‐se‐á calmo; porém, se nesse mesmo ponto, pela manhã, se elevarem cúmulos, isso é um claro sinal de um vento forte de noroeste. Em 30 dias, há apenas cerca de cinco de calmaria, «frouxos»; dez dias com ventos fortes; e os restantes 15 com ventos que podem ser simplesmente chamados frescos. Por norma, as madrugadas são sempre calmas; o vento começa a soprar ao nascer do sol, aumentando gradualmente de força e atingindo a sua máxima intensidade por volta das 2 da tarde. Então abranda, e cessa completamente depois da meia‐noite.

Na região sul de Ussuriiski, a serradura enterrada no solo apodrece rapidamente, transformando‐se em fertilizante, embora no litoral não se decomponha senão passados três anos. Isto pode ser explicado pelo facto de que no Verão, devido aos nevoeiros frios, o solo nunca é bem aquecido.

Os primeiros nevões caem nas proximidades do Amagu em meados de Dezembro. O Outono é longo e tépido, pelo que a erva murcha em vez de secar. Nos locais húmidos, onde as gramíneas crescem sob a forma de moitas, a sua parte inferior permanece verde durante muito tempo. Isto possibilita que os bovinos se alimentem das pastagens durante a maior parte do ano. Os cavalos só precisam de ser alimentados na Primavera. Os starovers contam que no ano da sua migração não tinham absolutamente nenhuma forragem seca, razão pela qual mantiveram as vacas e os cavalos nas pastagens ao longo de todo o Inverno e, segundo as suas observações, os animais não emagreceram.

Devido ao facto de a Primavera começar tarde nesta área, os starovers apenas lavram a terra em Maio e ceifam em Agosto. Dado que o Verão é nublado e frio, os cereais amadurecem de igual modo atrasados. A sua colheita decorre no final de Setembro e, por vezes, estende‐se até meados de Outubro. Todos os vegetais, principalmente as batatas, crescem bem; somente os melões e as melancias não maturam. Em comparação com a bacia do Ussuri, na mesma latitude, o período de floração das plantas e amadurecimento dos frutos está quase um mês inteiro atrasado.

Do ponto de vista florístico, o Rio Amagu não é menos interessante do que no plano climático. Nas montanhas cresce bastante teixo. É curioso que, na área litoral, esta árvore seja encontrada em pequenos grupos e não em toda a parte. Mais a sul do Rio Mutukhe, só é possível encontrá‐la na floresta de uma forma dispersa. A tília local não alcança as dimensões que tem na região sul de Ussuriiski, mas, em contrapartida, o seu tronco é maciço e não tem cavidades. Na zona das cabeceiras do Ussuri e mais a sul, observa‐se o fenómeno oposto: ali, apesar de a tília crescer com o aspecto de uma grande árvore, é quase sempre oca por dentro. O amieiro no Amagu tem também grandes dimensões e pode ser encontrado não apenas nas margens dos rios, mas também nas encostas sombrias das montanhas. O carvalho não atinge grandes proporções e tem a casca esbranquiçada (no sul, a casca do carvalho é escura). Embora as bolotas amadureçam, acabam por não cair por si mesmas, sendo arrancadas pelos ventos fortes de Outono. É perceptível que há menos tumores enfermiços nas árvores das florestas locais do que a oeste da Sikhote‐Alin e, além disso, são vistos somente no curso superior dos rios. Na região sul de Ussuriiski, as excrescências deste tipo atingem tamanhos extremamente grandes.

Perto do Amagu, o cedro, o lariço, o abeto, a epícea, a bétula e o choupo‐tremedor crescem bastante bem; já o freixo, o bordo e, em geral, todas as espécies de madeira dura desenvolvem‐se mal. A árvore‐do‐diabo é pouco frequente, tem um aspecto murcho e uma copa atrofiada. O Rio Amagu pode ser considerado a fronteira norte da uva‐brava e da nogueira‐da‐manchúria. A primeira não é alta, e cresce exclusivamente ao sol e a sotavento, mas não amadurece; já no Rio Kusun (ligeiramente mais a norte), este tipo de planta definitivamente não existe. Os camponeses não viram nogueiras no Amagu, mas certa vez, durante uma inundação, flutuou até eles pelo rio um ramo com folhas verdes; a partir disso, deduziram que algures a montante do rio havia uma árvore dessas.

A influência do mar sobre a vegetação é surpreendente. Por exemplo, o veneno de hipericão, acónito e veratro é incomparavelmente mais fraco junto ao mar do que nas montanhas. O mesmo pode ser dito relativamente às picadas de cobras, vespas e vespões.

As abelhas domésticas ainda podem viver perto do Rio Amagu, mas exigem cuidados especiais. Durante o Inverno, devem ser meticulosamente tapadas e carecem de mais alimentação. As abelhas que foram trazidas para cá têm muita dificuldade em colher mel, uma vez que, para procurar plantas melíferas, são obrigadas a fazer longos voos. Os starovers notaram que, quando as plantas melíferas estão em falta, as abe‐ lhas colectam mel de outras plantas, às vezes até mesmo de veratro. Em consequência deste mel, as abelhas adoecem; mas se lhes for dado bom mel, as próprias abelhas deitam imediatamente o mel envenenado para fora da colmeia. As tentativas dos starovers para criar abelhas domésticas mais a norte não foram bem‐sucedidas.

A área do Amagu também merece a atenção de natura‐ listas no que se refere à zoogeografia. Por exemplo, o urso‐negro‐asiático, vindo do Sul, só chega até ao Rio Kulumbe. Os tigres aparecem de tempos a tempos. Nunca ninguém viu panteras e, em sete anos, os starovers viram apenas uma vez pegadas deste felino nas rochas; contudo, não tinham a certeza se eram de uma pantera ou de um jovem tigre. Os «cães selvagens», semelhantes aos chacais, são muito raramente avistados.

Dado que o frio se instala muito mais cedo no Oeste, a caça às martas‐zibelinas e ao esquilo começa primeiro ali do que na orla marítima (a diferença é de quase um mês). Segundo os starovers, quando chegaram pela primeira vez ao Amagu, encontraram abetardas nas redondezas. Em 1904‐1905, as abetardas ainda apareciam ocasionalmente, mas depois as suas migrações cessaram por completo. Certa vez, há cerca de dois anos, surgiram de repente vários faisões nas terras lavradas. De onde vieram, ninguém sabe; no ano seguinte, desapareceram. Um dia, os starovers viram uma grande águia castanho‐escura, com um longo pescoço depenado, sobre uma carcaça perto da costa. A julgar pela descrição, tratava‐se de um abutre. É muito provável que tenha voado acidentalmente da Ásia Central para lá. O Rio Amagu corresponde à fronteira sul do habitat do tetraz e o limiar norte do pica‐pau‐verde.

A 4 de Outubro foi dada a ordem de preparação para a marcha. Agora tencionava subir pelo Rio Amagu até às suas nascentes e, de seguida, atravessar a Cordilheira de Kartu e descer pelo Rio Kulumbe até à costa.

Os starovers disseram‐me que ambos os rios mencionados tinham muitos rápidos e que nas montanhas aconteciam muitas derrocadas de pedras. Aconselharam‐nos a deixar as mulas com eles, na aldeia, e a caminhar com os alforges. Então, decidi partir apenas com Dersu.

Segundo os meus cálculos, deveríamos ter connosco provisões suficientes para dois terços do caminho. Por isso, com‐ binei com A.I. Merzliakov que ficaria encarregado de enviar o udeguei Sale com dois atiradores para o penhasco Van‐Sin‐laza, onde deveriam colocar mantimentos num lugar bem visível.

No dia seguinte, 5 de Outubro, pelas 2 da tarde, partimos com os alforges bem carregados.

O Rio Amagu tem cerca de 50 quilómetros de extensão. Inicia‐se na Cordilheira de Kartu e contorna‐a pela vertente ocidental. Primeiro, flui para nordeste, depois toma uma direcção latitudinal e, apenas nas proximidades do mar, pende ligeiramente para sul. De entre os seus afluentes, deve destacar‐se o Dunantsa, de 19 quilómetros, pelo qual é possível atravessar para o Rio Kusun. Todo o vale do Amagu e as montanhas que o circundam estão cobertos por uma densa floresta mista de coníferas de madeiras boas para a indústria.

A época vegetativa estava quase a terminar. A maioria das plantas floríferas tinham murchado, e somente através de algumas delas a vida ainda respirava. Entre estas últimas havia Anaphalis margaritacea, cujas folhas são de feltro na face inferior; um tipo especial de áster, com um caule escuro felpudo e um cestinho violeta escamoso; a pulmonária, uma planta umbelífera, com nervuras proeminentes em forma de arco nas folhas; e, finalmente, o alho‐de‐urso, com folhas semelhantes às do lírio‐do‐vale.

Um trilho quase imperceptível conduziu‐nos até ao ponto onde o Rio Dunantsa desaguava no Amagu. Isto ficava a alguns dez quilómetros do mar. Perto da sua foz, havia um penedo a que os starovers, à maneira chinesa, chamavam Laza (5), que deriva do verbo «escalar» (6). Efectivamente, era preciso escalar este «laza» de barriga para baixo, agarrando‐se às pedras.

Depois de avançarmos mais um quilómetro, montámos o bivaque num seixal.

Faltava ainda uma hora para o pôr‐do‐sol. Decidi aproveitar este tempo e fui caçar para montante do Dunantsa. Após a subida do primeiro montículo que encontrei, sentei‐me sobre uns ramos caídos e comecei a olhar à minha volta. Dali de cima viam‐se o Amagu, o Kudia‐khe, o Kvada‐gou e a orla marítima. A queda de folhas estava no seu apogeu. A cada dia que passava, a floresta adquiria um aspecto cada vez mais monótono e cinzento, uma tonalidade sem vida, o que prenunciava a aproximação do Inverno. Apenas os bosques de carvalho preservavam a sua folhagem; porém, esta tinha amarelecido e, por isso, parecia ainda mais triste. Desprovidos dos seus sumptuosos trajes, os arbustos tornavam‐se surpreendentemente similares uns aos outros. A terra preta e fria, sob um cobertor de folhas caídas, mergulhava num sono letárgico; obedientemente e sem protestos, a vegetação preparava‐se para a morte.

Fiquei tão envolvido nos meus pensamentos que me esqueci por completo da razão por que fora ali parar àquela hora do crepúsculo. De repente, ouvi um grande barulho atrás de mim. Virei‐me e vi uma criatura desajeitada, corcunda e com patas brancas. Alongando a sua grande cabeça para a frente, ela corria a trote pela floresta. Levantei a espingarda e fiz pontaria, mas alguém foi mais rápido do que eu. Ouviu‐se um tiro, e o animal caiu atingido por uma bala. Passado um minuto, vi Dersu a descer pela escarpa até ao lugar onde o animal tombara.

A criatura que ele tinha abatido revelou‐se um alce.

Era um jovem macho com cerca de três anos. Do lábio superior até à ponta da cauda, media 2,20 metros; a sua altura, da sola do casco até à crina, era de 1,70 metros; e o seu peso total era cerca de 240 quilos.

Este animal de aspecto canhestro tem um pescoço forte e uma cabeça grande e alongada com um focinho grosso, curvado para baixo. A sua pelagem castanho‐escura, quase preta, é comprida, brilhante e está suavemente colada ao corpo; as patas são esbranquiçadas. O alce é um animal bastante rigoroso: basta perturbá‐lo uma vez para que abandone por um longo tempo o seu lugar eleito. Para escapar à perseguição de um caçador, corre a trote e, às vezes, a galope. Gosta muito de se banhar nos lagos pantanosos. Se for ferido, foge, mas durante o cio torna‐se agressivo e não só se defende como também é capaz de atacar o homem. Além disso, ergue‐se nas patas traseiras e, cruzando as patas dianteiras, tenta com elas derrubar o inimigo — e então pisoteia‐o encarniçadamente.

O Amagu constitui a fronteira sul onde o alce sai para a costa: com a chegada do frio, começa a migrar para oeste. Em Novembro, ainda pode ser encontrado perto da Sikhote‐Alin, mas em Dezembro vai definitivamente para a bacia do Bikin. Ali, nas florestas densas, onde não há crostas de neve congelada, encontra alimento suficiente e condições favoráveis à subsistência. Quanto à sua aparência, o alce da região de Ussu‐riiski não é muito diferente do seu congénere europeu; em contrapartida, os seus chifres são distintos: não têm absoluta‐ mente quaisquer lóbulos, e mais depressa se assemelham aos dos cervos do que aos dos alces.

Dersu começou a remover a pele e a dividir a carne em pedaços. Era uma imagem desagradável, mas, ao mesmo tempo, não pude deixar de apreciar o trabalho do meu amigo.

Manobrava a faca na perfeição: nem um único corte supérfluo, nem um único movimento desnecessário. Era evidente que tinha a mão bem treinada para tal. Combinámos que levaríamos alguma carne connosco; Chjan Bao e Fokin haviam de tomar medidas para entregar o resto aos starovers e ao destacamento.

(1) Em russo: esperança, expectativa. (N. dos t.)

(2) Em russo: do litoral; é uma área física e geográfica no Extremo Oriente da Rússia, que envolve os territórios para lá do Rio Amur, da região de Khabarovski e da região de Primorski. Tornou‐se parte da Rússia em 1860, em consequência do Tratado de Pequim. (N. dos t.)

(3) Kulunh‐tszii‐tszy: fim, buraco (orifício).

(4) Em russo: decepção. (N. dos t.)

(5) Na tradução para o russo, significa «penedo». 

(6) Em russo, laziti, «escalar». (N. dos t.)