"É a minha vida, foi a minha vida, simplesmente por isso, simplesmente mostrar por onde a gente passou. Quer dizer, é a minha vida e a de milhares de pessoas. Acho que disse no [documentário] 'Fotografia Rasgada' que 'é procurando as nossas histórias na memória dos outros que se constrói uma memória coletiva', e acho que foi assim que eu trabalhei sempre", disse à agência Lusa o realizador de 59 anos.

Licenciado em Sociologia, José Vieira aprendeu a filmar no terreno e entrou no mundo do documentário como "uma forma de militância", porque se apercebeu de que as pessoas com quem se manifestava nas ruas "não conheciam a história da emigração portuguesa" e, no princípio dos anos de 1980, "não havia praticamente nenhum filme" sobre o tema, exceto "O Salto" (1967), de Christian de Chalonge.

"O ponto de partida para mim foi ter passado por uma história tão complicada, tão dolorosa, podemos dizer assim, e não haver nada sobre isso. E não era só o facto de não haver nada, era como se a gente não tivesse história nenhuma, como se os portugueses tivessem chegado de avião, como se uma cegonha os tivesse trazido para cá", recordou o autor de "A Ilha dos Ausentes" (2016) e "A Primavera do Exílio" (2011).

O seu primeiro filme, "Weekend en Tosmanie" (1985), falava já sobre a comunidade portuguesa em França e "foi muito mal recebido", porque os portugueses "não queriam ver a realidade", da mesma maneira que foi mal recebida a exposição que organizou em 1989, "O Sonho Português", na qual uma réplica de uma barraca levou a que as pessoas fossem embora, "nem queriam ver aquilo".

Alguns anos depois, "a vergonha" deu lugar a "uma história coletiva" com os testemunhos recolhidos para o documentário "A Fotografia Rasgada", incluído na série de filmes "Gente do Salto" (2005), que retratou as memórias dos portugueses que fugiram para França clandestinamente nos anos 1960.

"As pessoas sentem-se culpadas do que viveram e acho que um dos trabalhos que eu fiz é as pessoas sentirem que é uma história coletiva e não a culpa de cada um. Por exemplo, o meu pai sempre viveu com aquela culpa de nos ter trazido para cá [Paris] (...). Não é só uma história individual, é uma história coletiva, social e política. É isso que tento fazer, não andar a contar histórias da carochinha ou a fazer chorar as pessoas sobre a saudade", explicou.

Oriundo da vila de Oliveira de Frades, no distrito de Viseu, José Vieira chegou ao bairro de lata de Massy, nos arredores de Paris, em 1965, e aí ficou cinco anos, tendo reencontrado o mesmo tipo de barracas no mesmo local, quase meio século depois, desta vez ocupadas por imigrantes romenos, algo que filmou em "Souvenirs d'un Futur Radieux" (2014).

No filme, o português afirma ter, "por vezes, a impressão de filmar" as suas próprias "memórias da infância" e, na conversa com a Lusa, explicou que "há coisas que são iguais", até "o domingo no bairro de lata", em que, "la la la la la la", era "sempre o mesmo disco", Maria Albertina, Teixeirinha ou Roberto Carlos, só que hoje, "o Roberto Carlos chama-se Nicolae Guta" e é o ídolo dos romenos.

"Aquelas cantigas nostálgicas que as pessoas trouxeram da aldeia a passar em 'boucle' [em 'loop'], as crianças a brincar com as mesmas coisas, o cheiro da lama misturado com aquela porcaria que as pessoas deitam de dentro de casa para fora. O mesmo cheiro, exatamente o mesmo", descreveu o também realizador de "Drôle de Mai" (2008) e "Le pays où on ne revient jamais"(2005).

Ainda assim, "fora a vergonha, na escola, de morar no bairro da lata" e da "mentira em Portugal, de não se poder dizer onde se morava", José Vieira passou "uma infância feliz", porque "um bairro da lata para crianças é um terreno de jogos imenso", lembrando que o mais difícil foi para os pais e as irmãs adolescentes, num meio com "muitos homens, muita bebedeira, violência - um western".

Para o realizador, a emigração dos anos de 1960 foi uma "história altamente política tanto do lado de Portugal como da França" porque, "além da ditadura, da miséria e da guerra colonial", na parte portuguesa, "a partir de [19]64 a França vai favorecer a emigração clandestina dos portugueses", porque eram "mais trabalhadores, mais submissos e mais bem-educados pelo fascismo".

Hoje, o drama da emigração persiste, mas "há uma rejeição dos estrangeiros".

Atualmente, apesar das dificuldades em arranjar financiamentos de apoio à produção, José Vieira está a montar um filme sobre "como o governo fascista se apoderou dos baldios [em Portugal] e as pessoas ficaram completamente espoliadas", e vai continuar a filmar a aldeia de Adsamo, na Beira Alta, que retratou em "O Pão que o Diabo Amassou" (2012) "para ver se se vai safar ou se vai desaparecer completamente".

"É a infância. Portugal é a minha infância. A partir de 2010 comecei a querer trabalhar mais em Portugal, a falar daquelas terras de onde vem a imigração [para França]. O que é que ainda existe do Portugal que a gente deixou? Esse Portugal está a desaparecer", concluiu o homem que, em criança, quis ser arqueólogo e hoje diz ser "arqueólogo das aldeias portuguesas".