"Dá-me o 35!", ouviu-se por vários estádios de futebol ao longo da época passada. Alguém menos dado ao desporto-rei poderia ter pensado, na sua ignorância, que o cântico se referia à idade bonita este ano alcançada pelos GNR. Outros, fanáticos tanto pela bola como pela banda de Rui Reininho, poderão afirmar que misturar o Benfica com a banda que é um ex-líbris da cidade do Porto é quase como um sacrilégio. Mas o clube da Luz também faz, na verdade, parte da história dos GNR: a certa altura, viajaram para Newark, nos Estados Unidos, a convite do Benfica local. E, mais estonteante ainda, houve um tempo em que Rui Reininho, homem que sempre conhecemos enquanto adepto ferrenho do FC Porto, tinha uma predilecção maior pelo vermelho que pelo azul...

Quem no-lo garante é Hugo Torres, jornalista do PÚBLICO e autor de "GNR – Onde Nem a Beladona Cresce", biografia oficial do grupo portuense que será hoje apresentada no Porto antes de chegar amanhã às livrarias de todo o país. E este pequeno pedaço de informação poderá ser um choque para muitos, acaso se esqueçam que é precisamente essa capacidade de chocar, essa irreverência, que constrói grande parte da identidade dos GNR. Afinal de contas, esta é a banda de “Hardcore (1º Escalão)”, canção que nos fez sonhar bons sonhos com as Juanitas e as Mimis deste mundo. É a banda de “Dunas”, cuja letra todos têm na ponta da língua, e cujos acordes geraram centenas (milhares?) de guitarristas amadores por esse Portugal fora. É a banda de “Vídeo Maria”, banida pela Rádio Renascença aquando da sua edição, e que em alguns concertos da banda ao vivo inclui o verso "Por parecer latina suponho que o nome dela é Madonna / É séria, eu sei, se é virgem ou não depende do uso que dá à..."

Uma irreverência que está sobretudo presente na figura de Reininho, poeta, dandy, inesgotável fonte de energia e humor que entrou para a banda ainda em 1981, substituindo Alexandre Soares na voz. Irreverência essa nascida de uma enorme coragem. «O Rui Reininho extravasa a banda. Faz a diferença», opina Inês Meneses, uma das vozes mais charmosas da Rádio Radar e fã de longa data dos GNR. "Dele esperamos o melhor e o pior. Os portugueses, tão acagaçados com tudo, ficam sempre à espera que ele tenha a coragem que nós não temos". Hugo Torres concorda: "o que os distingue dos outros é a coragem: a coragem de arriscar nos discos, a coragem de arriscar nos concertos, a coragem de arriscar na editora. Acresce que o fazem com um sentido pop apurado e têm a capacidade de criar canções, tanto na música como nas letras, que são intemporais", conta.

Muito possivelmente, será isso que explica a longevidade e a popularidade dos GNR, desde os anos oitenta até aos dias de hoje. Tudo isso, e também a sua transversalidade. Não são uma banda com impacto apenas no pop/rock ou até na música cantada em português; o mundo do hip-hop prestou-lhes tributo em 2006, com o álbum "Revistados 25-06", do qual fizeram parte nomes como Xeg, Expensive Soul e NBC, que deram novas roupagens aos clássicos de sempre do grupo. E não será errado dizer a música de cariz mais experimental feita por cá também deve algo aos primeiros discos dos GNR, sobretudo a "Independança" e à enigmática “Avarias”, uma trip sónica de 26 minutos. Foi única e exclusivamente com esse tema, aliás, que se apresentaram na mítica edição de 1982 do Festival de Vilar de Mouros, afiança o jornalista e autor deste livro.

Samuel Úria: "enquanto frontman, não há ninguém que bata o gajo"

"Os GNR, apesar da 'Dunas', estavam muito mais associados à 'música alternativa'. Era muito fácil a um puto adolescente, que começava a querer ser rebelde, não menosprezar o passado dos GNR e estar quase à espera de um sebastianismo, que eles voltassem a ser a grande banda de referência mesmo para quem quisesse ouvir coisas mais estranhas", conta Samuel Úria, ele que também bebeu da água (benta, ou fria) jorrada pela banda portuense ao longo da sua carreira. Úria coloca igualmente ênfase na figura de proa que é Rui Reininho: "Acho que ele se manteve como uma figura ímpar e invulgar; enquanto frontman, não há ninguém que bata o gajo". Poder-se-ia dizer que, em termos de personalidade, Reininho é tão importante na história da música portuguesa quanto António Variações – apesar do segundo ser mais excêntrico e o primeiro ser pela elegância, conforme nos explica Inês Meneses, que chegou até a banda ainda nos anos 80. "Eu era miúda mas nós, na família, sempre nos rimos muito e eu e o meu irmão percebíamos a piada dele. Ele tinha aquele ar internacional invejável", diz.

Os britânicos chamar-lhe-iam wit; nós, por cá, talvez o pudéssemos traduzir enquanto “chico-espertice”, mas sem o lado negativo comummente associado a esta expressão. No fundo, contudo, é humor. Um humor culto, irónico, sem ser pretensioso. "O sentido de humor é fundamental e um grande artefacto que o Reininho tem à sua disposição», diz Diego Armés, a voz dos extintos Feromona e dos vivaços Chibazqui, explicando esse mesmo sentido: "é ter graça no melhor dos sentidos, ser mordaz, ver um bocadinho mais à frente, ser elegante: 'os corpos no lago eram de gente no desemprego'...". Úria concorda. "Mesmo escrevendo canções de amor, [Reininho] fá-lo de uma maneira completamente diferente. Não é só um desvio temático, é um desvio linguístico. Isso revela muita inteligência por parte de quem faz aquelas canções. E não era só competência, não era só tecnicismo, era sentido de humor e era um virtuosismo que não se baseava só em estruturas linguísticas eruditas. Era o contrário: uma cena de vivência, de alegria na escrita, de inconformismo... E isso acho que se mantém", diz-nos.

Que há afinal de tão especial no homem nascido no Porto, a 28 de fevereiro de 1955? "É um homem do espectáculo. Não é um fantoche, uma personagem, aparece em palco enquanto reflexo da própria personalidade. Não coloca uma máscara: é sempre Reininho a acontecer", explica Úria. Já Armés elege a capacidade lírica do vocalista: "a plasticidade do Rui Reininho, o descaramento com que embrulha as frases e desconjunta as palavras são uma inspiração para quem quer que tente usar a língua como instrumento de produzir beleza, encanto, surpresa para lá da lírica expectável ou convencional", conta. Tanto um como outro têm, naturalmente, nos GNR e em Reininho uma influência para a sua própria arte, cantada também ela em bom português. E saber falar é, naturalmente, importante também para quem quer cantar. Inês Meneses dá um exemplo do génio do vocalista: "num tema como o 'Saliva', ele diz: 'eu quero caçar contigo amanhã'. E, ao dizê-lo, arrasta o 'ç' de forma a parecer um 's', como em 'casar'. Nunca deixa de ser extraordinário perceber isto: a ironia e o cuidado que ele tem. Há um terrorismo elegante que ninguém, em Portugal, repete assim", remata.

Contudo, a banda não é apenas o seu frontman; a seu lado estão dois músicos exímios, Jorge Romão e Toli César Machado, baixista e guitarrista respetivamente. Hugo Torres admite que Reininho é o mais popular dos três, mas não menospreza os parceiros deste. "O Rui Reininho não está nisto sozinho, nem é ele quem compõe as canções. O próprio já apontou o Tóli César Machado, que é um dos fundadores, como o principal responsável pela longevidade da banda, pela perseverança. E a generosidade - e composição, também - do Jorge Romão não é, de todo, despicienda", explica. Inês Meneses pode ser team Reininho, mas também exalta as canções: "É admirável a forma como fazem canções pop simples e boas, muitas delas intemporais". Contudo, a radialista adverte: "essa pop acarreta um risco: a de se tornar datada para alguns. Para mim, muitos temas deles são intemporais e outros tornaram-se mais datados".

O momento em que tudo explode

Na verdade, são muitos os fãs dos GNR que dizem preferir os trabalhos que o grupo lançou nos anos 80 àqueles que são posteriores a "Rock In Rio Douro", o momento em que tudo explode, em que o Estádio de Alvalade se enche para escutar uma pronúncia vinda do Norte, “N” maiúsculo como a nação que é. É esse o disco que marca um ponto de viragem na carreira dos GNR, para o bem e para o mal. "Lembro-me que passado uns anos olhava para ele com alguma desconfiança. Hoje estou rendido ao poder de algumas canções desse disco", afiança Samuel Úria. É com "Rock In Rio Douro" que os GNR se tornam verdadeiramente transversais, apelando tanto aos adolescentes que têm o desgosto de vestir como os DJs, como aos adultos que já fogem da própria vida, sem correr e sem saltar. Mas nem todos partilham dessa opinião; para Inês Meneses, o verdadeiro fã dos GNR é aquele ou aquela "que distingue o bom do 'Sangue Oculto'", uma canção que, admite, não consegue ouvir, ainda que compare o álbum em si ao último trabalho de Nick Cave: "90% genial, com dois temas que são constrangedores de tão maus".

Não é fácil escolher o melhor disco da banda do Porto, mas é possível tentar. "Psicopátria", que cumpriu este ano 30 de existência e que teve direito a concertos especiais no Teatro Rivoli e no Super Bock Super Rock, é um dos prediletos dos inquiridos. "O 'Psicopátria' é de facto magistral: tens tanto uma melancólica 'Bellevue' como uma esquizofrénica 'Choque Frontal'. Eu ouvi-o muito agora [nas celebrações] dos 30 anos e pensei: as letras continuam intocáveis", adianta Inês Meneses. Úria e Armés dividem-se entre esse disco e "Os Homens Não Se Querem Bonitos", de 1985.

Mas há outro disco, quiçá algo “esquecido”, recordado pelo primeiro: "In Vivo", registo de dois concertos que a banda deu no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. "No outro dia houve alguém que me tagou numa corrente de Internet, para falar sobre os melhores discos ao vivo, e o pessoal estava a meter os discos do Johnny Cash nas prisões, o Bob Dylan em 66, o 'It's Alive' dos Ramones... E eu lembrei-me que um dos meus discos ao vivo preferidos é o "In Vivo", não só por ser um grande disco ao vivo, que sublima as imperfeições que contém, mas porque resgata muitas canções de discos falhados; eles pegam [por exemplo] em muitas canções do 'Valsa dos Detectives', que é um disco com uma produção um bocado manhosa", conta.

35 anos é tempo suficiente para deixar legado. Os GNR já plantaram as suas árvores, as canções que marcaram gerações atrás de gerações. Já tiveram os seus filhos, as dezenas de artistas e bandas portuguesas que, de uma forma ou de outra, lhes devem a sua existência. E preparam-se, agora, para lançar o seu livro. "Acho que o legado maior dos GNR pode, até, ter sido a própria consciência que hoje os músicos têm de que é possível haver grandes sucessos de música portuguesa, escritos em português, sem fazer qualquer tipo de concessão", conta Úria. Armés segue o mesmo caminho: "não tenho dúvidas de que estão no topo da música popular portuguesa - não estarão sozinhos, mas estão lá. Para além de álbuns de eleição do ponto de vista estético, em que a música surgia inspirada e fluía com brilho, há o legado lírico que me parece fundamental para alguém da minha geração ou gente mais nova. Pensamos na sofisticação, graça e arrojo das letras de GNR e percebemos o quanto a nossa língua andou para a frente assim de repente".

Já Hugo Torres acredita que o legado da banda está por definir, pois esta continua no ativo. "Poderia dizer que abriram as portas do Coliseu dos Recreios ao rock, que deram um concerto histórico na Alameda Dom Afonso Henriques, que foram os primeiros portugueses a chegar em nome próprio aos concertos de estádio, que deram 'Dunas' a todos os aprendizes de guitarra, e por aí fora - mas seria demasiado arriscado. Ainda no ano passado lançaram um disco fabuloso. Ouvi-o repetidamente durante semanas. Quando comecei a escrever o livro, intervalava os outros discos com o 'Caixa Negra'. Estava sempre a regressar", revela.

Não dá para fazer o download da coragem ...

Poderá alguma vez existir outra banda como os GNR, que não soe a plágio ou influência directa mas que encarne o mesmo espírito? Se Armés acredita que "os Capitães da Areia são um exemplo - e espero que eles não me desmintam - de alguém que bebeu GNR pelos ouvidos", Inês Meneses é mais pessimista: "Não, porque não há em 2016 gente com esses tomates de ir à TV e dizer o que pensa. A música passou a ser entretenimento, apenas. Sem mensagem, sem confronto. O embrulho pop elegante é agora comum a todos, é o mais fácil nesta era. Mas não dá para fazer o download da coragem", desabafa, acrescentando: "gente gira que faz bons clips não fará parte da história. Já somos muitos a querer ser giros. Faltam os que não temem o arrojo".

Arrojados, irreverentes, corajosos ou, simplesmente, GNR: o mito continua e continuará enquanto forças houver, enquanto houver uma palavra no dicionário português-português que possa ser transformada e cantada com o aprumo de quem não conhece outra coisa que não a elegância. Onde poderão eles estar dentro de outros 35 anos? "Provavelmente, estarão a fazer canções que serão crónicas sobre como a vida é louca na terceira idade", solta Armés. Úria graceja: "O [Jorge] Romão daqui a 35 anos vai estar igual: mais jovem que nós todos e com mais cabelo que eu. E vai conseguir saltar muito mais que qualquer praticante de crossfit...". O que importa é que Reininho mantenha o espírito, conclui. "É dos poucos artistas em Portugal que consegue estar bem e ter validade na decadência. Espero que ele seja uma espécie de Gainsbourg, que consiga viver mais anos, que seja um velho provocador". Ou seja: o Luiz Pacheco da música.

Mesmo que os anos pesem, a história dos GNR permanecerá – eles que são "uma fonte inesgotável de histórias; nunca ficará tudo escrito, teríamos de fazer uma edição por tomos", conta Hugo Torres. Para já, existe apenas um volume, que será revelado ao mundo pelas 21h30 de hoje, na Sala Suggia da Casa da Música, com direito a um mini-concerto de quatro temas, um por cada década de história. E depois há a celebração, em piloto automático, num qualquer bar que não o da morgue. Até porque os GNR não morrerão nunca. Existirão enquanto houver canções suas nos ouvidos de uma única pessoa. Enquanto não se extinguir esta pronúncia, esta sagacidade. Parabenizemo-los.

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