20 de outubro de 1909

Hrafnsvik, Ljoslândia

O Shadow não está nada satisfeito comigo. Está deitado à lareira, com a cauda inerte, enquanto o vento gélido faz a porta bater, a olhar por baixo daquela franja desgrenhada com o tipo de resignação acusadora tão característica dos cães, como se dissesse: De todas as estúpidas aventuras para que me arrastaste, esta será com toda a certeza o nosso fim. Suponho que devo concordar, se bem que isso não esmoreça a minha vontade de iniciar esta investigação.

Pretendo apresentar aqui um relato honesto das minhas atividades diárias no campo enquanto documento uma enigmática espécie de fadas chamadas «Ocultas». Este diário tem dois objetivos: ajudar-me a recordar quando chegar o momento de compilar formalmente as notas do trabalho de campo e providenciar um registo para os estudiosos que vierem depois de mim, se for capturada pelas fadas. Verba volant, scripta manent. Como nos diários anteriores, considerarei como um dado adquirido que o leitor possui alguns conhecimentos básicos de driadologia, muito embora algumas referências possam não ser familiares para quem é novo nesta área.

Até agora não tive motivos para visitar a Ljoslândia e estaria a mentir se dissesse que o meu primeiro vislumbre esta manhã não moderou o meu entusiasmo. São cinco dias de viagem desde Londres e a única embarcação que vai até lá é um cargueiro semanal que transporta uma grande variedade de mercadorias e uma variedade muito mais reduzida de passageiros. Aventurámo-nos para norte, desviando-nos de icebergues, enquanto andava pelo convés para não enjoar. Fui uma das primeiras pessoas a avistar as montanhas cobertas de neve que se elevam do mar e a pequena aldeia de telhados vermelhos de Hrafnsvik, aninhada nas suas faldas como a Capuchinho Vermelho com o lobo a agigantar-se nas suas costas.

Patrícia Reis junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 27 de fevereiro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "A Desobediente - Biografia de Maria Teresa Horta", publicada pela Contraponto.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Mais do que uma narrativa biográfica, "esta obra é uma conversa íntima, em vários momentos sussurrada ao ouvido, com uma mulher, poetisa, mãe, ativista política e uma das vozes mais influentes e inquebrantáveis de Portugal", lê-se na sinopse do livro.

Saiba mais neste artigo.

Aproximámo-nos devagar e com cautela do cais, mas a violência das ondas cinzentas fez-nos chocar uma vez com força contra ele. A prancha foi descida com a ajuda de um guincho operado por um velhote com um cigarro despreocupadamente preso entre os dentes... como o mantinha aceso no meio daquele vento era um feito tão impressionante que horas mais tarde dei por mim a pensar no brilho da cinza que saía disparada para os borrifos das ondas.

Cheguei à conclusão de que seria a única passageira a desembarcar. O capitão deixou cair o meu baú na doca coberta de gelo com um baque e brindou-me com o habitual sorriso perplexo, como se eu fosse uma piada que só compreendia pela metade. Aparentemente, os meus companheiros de viagem, que eram poucos, tinham como destino a única cidade da Ljoslândia... Loabær, o porto de escala seguinte do navio. Não visitaria Loabær porque não há fadas nas cidades, apenas nos recantos mais recônditos e esquecidos do mundo.

Do porto, avistei a pequena casa que tinha arrendado e fiquei surpreendida. O proprietário da terra, um agricultor chamado Krystjan Egilson, descrevera-ma nas suas cartas... uma casinha de pedra com um telhado de turfa muito verde à saída da aldeia, empoleirada na encosta da montanha, na orla da floresta de Karrðarskogur. Era uma terra tão austera... cada pormenor, desde o amontoado de casas pintadas de cores garridas até ao intenso verde que se estendia desde a costa até aos glaciares que espreitavam nos picos, era tão nítido e solitário, como fios entretecidos, que suspeito que teria conseguido contar os corvos nas suas tocas nas montanhas.

Os marinheiros mantiveram-se a uma boa distância do Shadow enquanto percorríamos o cais. O velho dogue alemão é cego de um olho e não tem energia para outro exercício que não seja caminhar a furta-passo, e muito menos para rasgar a garganta de marinheiros mal-educados, mas a sua aparência sugere o contrário. É uma criatura enorme, escuro como breu, com patas do tamanho das de ursos e dentes muito brancos. Talvez devesse tê-lo deixado ao cuidado do meu irmão em Londres, mas não tive coragem, até porque é dado a crises de melancolia quando estou fora.

Consegui arrastar o baú pela doca e pela aldeia. Viam-se poucas pessoas. A maioria devia estar nos campos ou nos barcos de pesca, mas aqueles poucos olharam para mim como só os habitantes das zonas rurais na orla do mundo conhecido olham para um estranho. Nenhum dos meus admiradores se ofereceu para me ajudar. O Shadow observou-os com algum interesse enquanto caminhava ao meu lado e só então desviaram o olhar.

Já estive em comunidades muito mais rústicas do que Hrafnsvik, pois a minha carreira levou-me a atravessar toda a Europa e a Rússia até aldeias grandes e pequenas e terras selvagens, no bom e no mau sentido. Estou acostumada a acomodações humildes e a pessoas humildes. Certa vez, dormi na queijaria de um agricultor na Andaluzia... mas nunca estive tão a norte. O vento tinha sabor a neve acabada de cair e puxava-me o cachecol e a capa para trás. Demorei algum tempo a transportar o baú pela estrada acima, mas sou muito perseverante.

A paisagem que rodeava a aldeia era maioritariamente composta por campos, muito diferentes das bonitas encostas a que estava acostumada. Estas estavam cheias de protuberâncias, rochas vulcânicas cobertas com mantos aleatórios de musgo. E, como se isso não bastasse para desorientar o olhar, o mar não parava de lançar vagas de nevoeiro para terra.

Cheguei ao fundo da aldeia e encontrei o pequeno caminho que subia até à casa, um terreno tão íngreme que o carreiro era uma série de ziguezagues. A casa em si estava precariamente assente numa pequena alcova na encosta. Ficava a uns dez minutos da povoação, mas eram dez minutos de cansativos declives e estava a transpirar quando cheguei à porta, que se encontrava não apenas destrancada como não possuía qualquer fechadura. Quando a abri, deparei-me com uma ovelha.

O animal olhou para mim durante um instante, a mastigar alguma coisa, e saiu a saltitar para ir ao encontro das companheiras enquanto lhe segurava educadamente a porta. O Shadow soltou um latido, mas não ficou impressionado... já viu muitas ovelhas durante as nossas deambulações pelo campo nos arredores de Cambridge e olha para elas com o desinteresse cavalheiresco de um cão idoso.

Não sei como, mas dentro de casa estava ainda mais frio do que no exterior. A habitação era tão simples como tinha imaginado, com grossas paredes de pedra, e cheirava a alguma coisa que presumi serem excrementos de papagaio-do-mar, se bem que também pudesse ter sido a ovelha. Havia uma mesa e cadeiras cheias de pó e uma pequena cozinha ao fundo com algumas pa- nelas penduradas na parede, muito empoeiradas. Junto à lareira, com o seu fogão a lenha, vi uma velha poltrona que cheirava a bafio.

Estava a tremer, apesar de ter arrastado o baú encosta acima, e percebi que não havia lenha nem fósforos para aquecer aquele lúgubre lugar. E talvez ainda mais assustador era o facto de que talvez não soubesse acender uma fogueira ainda que tivesse todo o material necessário... nunca fiz tal coisa antes. Lamentavelmente, naquele momento olhei pela janela e vi que começara a nevar.

Foi então, enquanto olhava para a lareira vazia, com fome e frio, que comecei a perguntar a mim mesma se morreria aqui.

Para que não pensem que sou novata no trabalho de campo no estrangeiro, deixem-me garantir-vos que não é o caso. Passei meses a estudar uma espécie de fadas do rio, les lutins des rivières, numa zona tão rural da Provença que os habitantes nunca tinham visto uma máquina fotográfica. E antes disso estive uma longa temporada nas florestas dos Apeninos com fadas com cara de veado e meio ano nos confins da Croácia como assistente de um professor que passou a carreira a analisar a música das fadas da montanha.

Porém, em todos esses casos sabia no que estava a meter-me e havia um ou dois alunos para cuidar da logística.

E não havia neve.

A Ljoslândia é o mais isolado dos territórios escandinavos, uma ilha situada nos mares tempestuosos ao largo do continente norueguês, com a costa norte a tocar o Círculo Polar Ártico. Já me tinha dado conta das dificuldades que enfrentaria neste lugar – a longa e desconfortável viagem para norte –, mas começava a perceber que tinha dado pouca importância às dificuldades que poderia enfrentar para sair daqui se alguma coisa corresse mal, sobretudo quando a barreira de gelo se fechasse no mar.

Uma batida na porta fez-me levantar-me de um salto. Contudo, o visitante já estava a entrar sem se dar ao trabalho de esperar pela minha autorização, batendo as botas com o ar de um homem que entra na sua casa após um longo dia.

– Professora Wilde – disse, estendendo-me uma mão. Era uma grande mão, pois era um homem grande, tanto em altura como à volta dos ombros e à volta da cintura. O cabelo era preto e desgrenhado e o rosto quadrado com um nariz partido que se harmonizava de uma forma surpreendentemente adequada, se bem que nada atraente. – Vejo que trouxe o seu cão. Belo animal.

– Mr. Egilson? – perguntei com delicadeza ao apertar-lhe a mão.

Livro: ""Enciclopédia de Fadas de Emily Wilde"

Autor: Heather Fawcett

Editora: ASA

Data de Lançamento: 11 de fevereiro de 2025

Preço: € 18,95

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

– Quem mais seria? – replicou o meu anfitrião. Não percebi muito bem se teve a intenção de ser antipático ou se o seu comportamento era sempre levemente hostil. Devo mencionar aqui que sou terrível a ler pessoas, uma incapacidade que já me trouxe uma quantidade apreciável de dissabores. O Bambleby saberia exatamente o que pensar deste homem que mais parecia um urso e talvez já o tivesse posto a rir com uma piada encantadoramente sóbria.

Maldito Bambleby, pensei. Eu própria não tenho grande sentido de humor, uma coisa a que gostaria muito de recorrer nestas situações.

– Fez uma viagem dos diabos – declarou o Egilson, a olhar-me com uma expressão desconcertante. – Desde Londres. Enjoou?

– Na verdade, desde Cambridge. O navio foi bastante...

– Aposto que os habitantes da aldeia ficaram a vê-la enquanto subia a rua? «Quem é aquela criatura minúscula que vem a subir a rua?», pensaram. «Não pode ser aquela importante académica que nos disseram que viria de Londres. Esta parece incapaz de sobreviver à viagem.»

– Não sei o que pensaram sobre a minha pessoa – retorqui, a perguntar a mim mesma como poderia mudar a conversa para assuntos mais prementes.

– Bem, foi o que me disseram – declarou o homem.

– Estou a ver.

– Quando vinha para cá, encontrei o velho Sam com a mulher, a Hilde. Estamos todos muito curiosos em relação à sua investigação. Diga-me, como pensa apanhar as fadas? Com uma rede para caçar borboletas?

Até eu percebi que aquele comentário era trocista, por isso respondi com frieza:

– Fique descansado, porque não tenho a intenção de caçar um exemplar das vossas fadas. O meu único objetivo é estudá-las. É a primeira investigação do género na Ljoslândia. Devo dizer que, até há muito pouco tempo, o resto do mundo via as vossas Ocultas como pouco mais do que um mito, ao contrário das diversas espécies de fadas que habitam as Ilhas Britânicas e o continente, noventa por cento das quais estão substancialmente documentadas.

– Para todos os envolvidos, talvez seja preferível que continue assim.

Não foi uma afirmação encorajadora.

– Compreendo que têm diversas espécies de fadas na Ljoslândia, muitas das quais podem ser encontradas nesta zona das montanhas Suðerfjoll. Tenho histórias de fadas que vão desde brownies até às fadas da corte para investigar.

– Não sei o que nada disso significa – declarou num tom neutro. – Mas talvez seja boa ideia limitar as suas investigações às pequeninas. Nada de bom virá de provocar as outras, para si e para nós.

Fiquei imediatamente intrigada com aquilo, se bem que já tenha ouvido comentários acerca da temível natureza das fadas da corte da Ljoslândia – isto é, as fadas que assumem uma forma quase humana. No entanto, as minhas perguntas foram levadas pelo vento, que abriu a porta e cuspiu uma grande quantidade de flocos de neve para o interior. O Egilson empurrou-a com o ombro e fechou-a.

– Está a nevar – comentei com uma idiotice atípica. Lamento dizer que a visão de neve a entrar pela chaminé me levou de novo para um desespero mórbido.

– Acontece de vez em quando – replicou com um toque de humor negro que me pareceu preferível a falsa simpatia, o que não é o mesmo que dizer que gostei. – Mas não se preocupe. O inverno ainda não chegou, está apenas a dar um ar da sua graça. As nuvens vão dissipar-se não tarda nada.

– E quando chegará o inverno? – perguntei sombriamente.

– Quando chegar, saberá – respondeu, uma resposta vaga a que depressa me acostumaria, pois o Krystjan é um homem arisco. – A senhora é muito jovem para ser professora.

– De certa forma – repliquei sem adiantar mais nada, esperando desencorajar aquele tema de conversa. Aos trinta anos, não sou propriamente jovem para ser professora, ou pelo menos ao ponto de surpreender alguém, muito embora há oito anos fosse, de facto, a professora mais jovem que Cambridge alguma vez contratou.

O Egilson soltou um resmungo divertido.

– Tenho de voltar para o campo. Posso ajudá-la em alguma coisa? Falou sem grande interesse e parecia prestes a escapar pela porta quando respondi rapidamente:

– Um chá seria fantástico. E lenha para a lareira... onde é guardada?

– Na caixa da lenha – respondeu, intrigado. – Ao lado da lareira.

Virei-me e vi logo a referida caixa... estava convencida de que era um armário rudimentar.

– Há mais na arrecadação de lenha nas traseiras – informou.

– A arrecadação de lenha – murmurei, aliviada. As minhas fantasias de morrer congelada tinham sido prematuras.

O Krystjan deve ter notado a forma como falei, que, infelizmente, tinha a cadência distinta de palavras nunca antes proferidas, pois comentou:

– A senhora é mais do tipo caseiro, não é? Devo dizer que por aqui não há muitas pessoas dessas. Vou pedir ao Finn para lhe trazer o chá. E, antes que pergunte, os fósforos estão dentro da caixa de fósforos.

– Naturalmente – retorqui, como se já tivesse reparado na caixa de fósforos. Culpe-se o meu maldito orgulho, mas, depois da humilhação da caixa da lenha, não fui capaz de lhe perguntar onde estava. – Obrigada, Mr. Egilson.

Olhou-me, a pestanejar devagar, e em seguida tirou uma pequena caixa do bolso e pousou-a sobre a mesa. Depois, saiu num remoinho de ar gelado.