Once Upon a House. “Era uma vez uma casa”, traduzido para a língua de Camões. É o nome de um pequeno grupo familiar de uma vasta e vetusta família que está umbilicalmente ligada à história de Portugal.
O ramo, em particular, dedica-se à hotelaria e ao alojamento local. No portfólio, entre outros, inclui-se a exploração de dois hotéis. Um em Lisboa, “Alecrim ao Chiado”, e outro, “Hotel Casa Palmela”, no Parque Natural da Serra da Arrábida.
O SAPO24 visitou este último. Salvador Holstein fez de cicerone na Quinta do Esteval, nome retirado de um arbusto característico da paisagem portuguesa: a esteva.
Casa agrícola dos Jesuítas virou investimento de um dos homens mais ricos de Portugal
Saímos de Lisboa, rumo a sul, pela autoestrada A2 até Setúbal. Entrada na cidade de Bocage e do choco frito. Daí, seguimos a placa Nacional 10. Serpenteada a estrada que atravessa a Serra da Arrábida, desagua no Atlântico e bordeja o Sado, damos de caras, ao quilómetro 33, com um portão de cor verde. A inscrição “Hotel Casa Palmela” assinala que chegámos ao destino.
Uma fonte com quatro crescentes justapostos, formando aquilo que em heráldica se designa como uma caderna, denuncia as armas da linhagem a que pertence. Estão igualmente presentes na pedra de armas, acrescentada com cinco florões, existente na frontaria da fachada principal da residência da Quinta do Esteval e dentro de portas, numa bandeira, combinados com as quinas e a bordadura de castelos que habitualmente vemos no brasão de Portugal.
Na receção, cumprem-se as normas de Safe & Clean do Turismo de Portugal. Duas robustas pedras de antigas adegas e lagares suportam o vidro que serve de balcão.
Salvador Holstein está à entrada. “O meu avô [Bernardo Sousa Holstein Beck] vivia aqui com os seus 10 filhos. Entre tios e 23 primos, era uma família grande. Um hotel da família”, introduz. “Morreram os avós, casa à venda durante uns tempos. Foi adaptada para hotel”, resume. “Havia que preservar a Quinta do Esteval que estava há quase 200 anos na família, apesar de ter sido construída no início do século XVII”, assinala.
“Os primeiros registos são de 1611”. Os tetos “abobadados”, refletem a passagem dos Jesuítas [do Colégio de São Francisco Xavier de Setúbal] pela quinta durante o século XVII e início do século XVIII. “Era uma casa agrícola, de campo”, recorda.
“Depois da expulsão dos Jesuítas, por ordem do Marquês de Pombal, a casa e os bens ficaram para o Estado. É comprada em hasta pública pelo Conde da Póvoa [1826], então o homem mais rico de Portugal, que compra vários terrenos na região, e entra na família”, sinaliza.
O Conde da Póvoa, de seu nome, Henrique Teixeira de Sampaio, congemina com o Duque Palmela, de quem era correlegionário político, uma aliança matrimonial entre a sua filha, Maria Luísa, e o filho deste, D. Domingos, 2.º duque de Palmela.
Esta é a história de uma casa que serviu um propósito agrícola durante séculos, entrou nas contas de um célebre processo sucessório em Portugal, por morte, em 1833, do Conde da Póvoa, figura de fortuna incalculável. E de uma casa que recebe, um século depois, por iguais razões, intervenção direta de Cosme Damião, um dos fundadores do Sport Lisboa e Benfica, que virou habitação familiar, nos anos 70 do século passado, e que se transformou, em 2016, num hotel de luxo, e depois disso, um mês antes de a pandemia fechar o mundo, em Small Luxury Hotel.
A mão de Cosme Damião, um dos fundadores do Benfica
Guiados por um descendente do Duque de Palmela, mal colocámos o pé no átrio de entrada do hotel Casa Palmela, entrámos numa cápsula do tempo. Impossível não notar as esculturas de autoria de Maria Luísa de Sousa Holstein, 3.ª Duquesa de Palmela, artista que viveu num feudo reservado a homens, relembrada, para a eternidade, pela sua ação filantrópica, de que foi notável exemplo as Cozinhas Económicas, que viria a fundar em dezembro de 1893.
O relato de Salvador Holstein não obedece a uma linha cronológica de acontecimentos. Mistura detalhes familiares e pormenores do hotel. Uns confundem-se com os outros.
Cita uma obra. “Hotel Casa Palmela, 400 anos de história da Quinta do Esteval Arrábida – Portugal”, da autoria de Abreu Loureiro, Correia de Matos e Galvão Teles, consultores em História e Património.
99 páginas que percorrem a história de Portugal e da casa, que saltou de quinhão em quinhão hereditário. No século passado, após a implementação da República, transitou três vezes de pais para filhos. De D. Helena Maria de Sousa Holstein [filha de Maria Luísa Holstein], 4.ª Duquesa de Palmela, para D. Domingos de Sousa Holstein Beck, 5.º Duque de Palmela, e deste para D. Bernardo de Sousa Holstein Beck [avô de Salvador].
Faça-se aqui um parêntesis, apenas para dizer que na escritura de habilitação de herdeiros por morte da 4.ª duquesa e de seu filho António, interveio Cosme Damião, um antigo e zeloso funcionário da casa Palmela, cujo nome a história regista como o principal dos fundadores, e também jogador e dirigente do Sport Lisboa e Benfica.
O conhecimento que tinha dos assuntos da família era reconhecido, como se verifica numa carta que D. Domingos de Sousa Holstein Beck dirigiu a seu filho Bernardo, afirmando, a respeito de Cosme Damião, que “tens muito que aprender com ele”, lê-se na obra supracitada.
“Em 1969, o meu bisavô morre, o avô herda a casa e faz obras. Em 1973, mudou-se para aqui com 10 filhos”, recupera o tema de início de conversa. A tal casa agrícola, senhorial, sofre mudança profunda. O edifício principal passa por um processo de adaptação, adquirindo habitabilidade adequada às exigências contemporâneas.
Salvador avança uma década. “Em 80, dá-se o regresso da família. Em 1995, morre o avô e, em 2001, a avó [D. Maria Carlota]”. Mais um processo sucessório e aquisição. E ao fim de quase 200 anos nas mãos da família, Bernardo Holstein Guedes foi responsável por novas obras no edifício principal da Quinta do Esteval e na sua envolvente, com intuito de reconversão do espaço para fins turísticos. “Em 2016, abre como hotel de 5 estrelas. 21 quartos e três villas”. Assim nasce o Hotel Casa Palmela.
O lavatório do cabeleireiro da Amália
As limitações urbanísticas ajudaram à preservação do acervo. “É um edifício classificado, interesse público e municipal, azulejos trazidos do palácio do Calhariz [Calçada do Combro, em Lisboa], de Setúbal e de outras casas da família”, adianta ao caminhar pelos corredores e espaços abertos que mostram a imensidão da Arrábida.
Entre peças compradas, outras herdadas da família, com uma forte presença do bronze, “temos um lavatório do cabeleireiro de Amália Rodrigues [que celebraria 100 anos, a 23 de julho], comprado numa loja de antiguidades”, realça, ao abrir a porta de um dos recolhimentos. Destaca igualmente uma casa de banho que virou icónica por causa de uma fotografia colocada num Instagram e sobre a qual os hóspedes costumam perguntar. Não tem nada de antigo, tem 50 anos”, sorri.
Detém-se na capela. Uma amostra do que foi em tempos. “Celebrava-se missa, aos sábados, até ao início de 2000. A minha primeira comunhão foi aqui”, recorda. Explica que “os monges, quando estavam doentes, ficavam nos dormitórios contínuos”.
Em relação aos quartos, “mantivemos uns e acrescentámos outros”, informa. No piso superior, uns têm um balcão, privado, com vista para a Arrábida. Outros nascem de espaços que tinham outro fim, como o da “sala da lareira preta”, exemplifica.
Na antiga biblioteca, que hoje cumpre funções dedicadas ao descanso, “não entrava ninguém aqui, o meu avô não deixava”. Aponta para o “banco das namoradeiras”, entre o espaço que “separava o quarto dos meus avós, o dos oito rapazes e as duas raparigas, em aposentos isolados do resto”. Outros tempos.
Mais uns passos por áreas que guardam memórias da história de Portugal e da família. Fotografias, livros de estudo, móveis originais e conjuntos de chá. As paredes destapam testemunhos dos antepassados. “Fotografias do Palácio Calhariz, em Lisboa, cujo nome aproveitou da quinta do Calhariz, mesmo ali ao lado, na Arrábida, pastas do Duque de Palmela e topografias da região feitas pelo pai do meu avô, que era engenheiro civil e foi diplomata em Londres [nomeado por António Oliveira Salazar, em 1943, quando exercia o cargo de diretor do Banco de Portugal]”, aponta.
Saímos do edifício. Caminhámos num passeio em que predomina o verde. A piscina tem um toque elegante de rusticidade. Chegámos às três villas. “Eram casas dos funcionários da quinta. Chegou a viver um GNR. Dava sempre jeito”, ri. Hoje, são parte integrante do Hotel.
Numa sala, anexa, que serve para eventos, Salvador decifra outras topografias da propriedade. “277 hectares, em 1899. Em 1969, foi dividido por três irmãos. O meu avô ficou com 70. Hoje temos 20 hectares destinados à vinha”, de onde saem os vinhos Moscatel e Tinto Reserva da família Palmela.
Identifica a Praia dos Coelhos, Galapos, a cimenteira Secil, Estrada Real Cacilhas-Sesimbra e a ribeira que desagua na Herdade da Comenda, um paraíso de 600 hectares ali ao lado e em cujo palácio arquitetado por Raul Lino, Jackie Kennedy se refugiou, após a morte de JFK, assim com a sua irmã Lee ou o escritor Truman Capote.
Desvenda um menu de atividades disponíveis para quem quer desfrutar da quinta e da região. Num terreno rodeado de vinhas, é possível fazer passeios a cavalo ou de barco, percursos pedestres na serra de São Luís, piqueniques e atividades de enoturismo.
Uma homenagem ao avô
O confinamento foi aproveitado para, “via zoom, descobrir histórias sobre a Quinta, com quem sabe muito mais que eu. Há pessoas que conhecem esta casa como ninguém”, atesta à mesa do restaurante Zimbral, que faz a ligação ao jardim e desvenda a vista de uma serra carregada de um arvoredo que esconde o mar.
Maria de Fátima, 58 anos, faz parte do grupo de funcionários da quinta e é uma dessas pessoas. Foi chamada à conversa. “Conheço esta quinta toda”, assegura a fundadora da Associação de Moradores da Aldeia Grande e outrora guia de caminhadas pela Serra da Arrábida.
“Nasci e fui criada numa aldeia ao lado da quinta”, justifica. “E a minha mãe trabalhava aqui. O senhor marquês [de Monfalim] autorizava que as mães trouxessem os filhos para o trabalho. Dava uma hora de sol de manhã e outra à tarde”, recorda a atual responsável pelo pelouro da Zona Rural e Proteção Civil na freguesia da Nossa Senhora da Anunciada. “Vinha às cavalitas dos meus irmãos. Dormíamos numa zona de sesta, debaixo da sombra de uma árvore”, continua. “Já crescida, saíamos da escola e vínhamos para a quinta, fazíamos os trabalhos de casa, os mais velhos ensinavam os mais novos. Depois tínhamos o privilégio de ir para a Ribeira da Ajuda. Regressava a casa de banho tomado e trabalhos feitos”, relembra.
Depois de longos anos a tomar conta de um negócio, decidiu juntar-se à família com quem “tinha criado laços”, assume. “Com a abertura do Esteval, trabalhar nesta casa era um sonho”, apesar de ter crescido a ouvir repetidos avisos que iam em sentido contrário. “Fiquei a meio de enfermagem e a minha mãe dizia sempre: estuda, Maria de Fátima, se não estudas vais trabalhar para o Esteval [era o mesmo de dizer que iria trabalhar no campo]. Disse-me imensas vezes essa frase. Quando soube da vaga, convoquei a minha família e disse que vinha para aqui. E aqui estou”, conta.
Salvador, que trabalhou “como fotógrafo numa ONG inglesa, no Chile” e na “Argentina, em Mendoza, durante quatro anos, numa empresa de turismo aventura”, revela que está à frente da casa de família porque foi "chamado ao desafio" pelo primo. “Só mesmo a Quinta do Esteval para me fazer voltar a Portugal”, justifica. “É uma homenagem ao nosso avô”, finaliza, desta forma, a história de uma casa senhorial, situada no coração do Parque Natural da Arrábida, que depois de transportar séculos de dedicação agrícola, é, hoje em dia, um hotel de luxo.
[Notícia corrigida às 15:27]
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