“Nascemos para ser felizes”, a sua biografia da autoria de Elisabete Agostinho foi editada o ano passado. É a biografia do homem que nasceu em Covas do Douro e aos 10 anos veio viver para Lisboa. Do homem que foi padeiro e aprendiz de barman. Do homem a quem a música falou mais alto e se tornou um vício, talvez por isso se considere um operário dela. Do homem para quem José Jorge Letria e o maestro António Vitorino de Almeida um dia compuseram um álbum. Esta é a história de Emanuel. E nós, pimba - falámos com ele. 

Esta é uma biografia do Emanuel ou do Américo?

Esta é uma biografia do homem. Que se chama Américo e que se chama Emanuel. Emanuel pseudónimo, mas é curioso como sempre me senti Emanuel. Isto pode parecer confuso, mas no dia em que mostrei ao meu pai a primeira capa do meu disco enquanto Emanuel [“Tu sabes que já foste minha”, de 1993] ele olha para mim e diz-me: “Este estava para ser o teu nome”. Isto é curioso porque eu escolhi o pseudónimo Emanuel sem ter conhecimento disto.

É o homem que está aqui em questão. O nome não tem qualquer relevância. Houve uma necessidade, depois destes anos todos, de mostrar o homem, sobretudo às pessoas que têm comprado a minha música, que me apoiam nos concertos e que gostam de mim.

Eu vou fazer 60 anos. São 22 anos de grande protagonismo enquanto cantor, muitos mais anos como músico e como produtor. Fazia sentido esclarecer as coisas.

Que necessidade foi essa e porquê o lançamento da sua biografia?

Estava na altura. Eu vou fazer 60 anos. São 22 anos de grande protagonismo enquanto cantor, muitos mais anos como músico e como produtor. Fazia sentido esclarecer as coisas. Como toda a gente sabe, não sou um homem que faz grandes divulgações da vida privada. Sempre achei que a minha vida profissional não precisava dessa alavanca ou dessa bengala que muitos usam - e muito bem. Eles usam, eu não. Sempre achei que não precisava dessa bengala de divulgar a vida privada em benefício da vida profissional.

Agora resolvi mostrar o homem porque o homem, na realidade, ninguém conhecia.

créditos: Emanuel DR

Como foi trabalhar com a Elisabete Agostinho, a autora da sua biografia?

Trabalhar com a Elisabete Agostinho foi uma boa e linda surpresa. Linda porque encontrei um lindo ser humano. Uma boa surpresa porque é de facto uma excelente escritora, uma excelente jornalista e foi muito fácil trabalhar com ela.

É possível nascer com muito pouco, ter muito pouco, ou pelo menos ter o básico e construir uma vida que nos vai dando satisfação, alegrias, tristezas naturalmente, mas fazendo o resumo dessa vida é possível ser feliz.

Porquê a escolha do título, “Nascemos para ser felizes”?

Eu acredito nisso e creio que a minha vida prova exatamente isso. É possível nascer com muito pouco, ter muito pouco, ou pelo menos ter o básico e construir uma vida que nos vai dando satisfação, alegrias, tristezas naturalmente, mas fazendo o resumo dessa vida é possível ser feliz. Ser feliz é uma conquista pessoal, por isso "Nascemos para ser felizes" e devemos lutar por isso.

Há alguma coisa que não tenha incluído na biografia? Hoje mudava ou acrescentava algo? 

Mudar, mudaria duas ou três coisas, face à incompreensão de duas ou três passagens. Coloquei-as com toda a franqueza e toda a honestidade, é um livro muito transparente, é a vida de um homem. E para ser a vida de um homem e transparente tinha de se contar alguns pormenores, sobretudo para provar como foram estas quase seis décadas da minha vida. Mas de resto, não mudaria nada. O livro tinha de ser assim. É a história de um homem, é a vida de um homem contada romanceada, mas com factos verdadeiros. Teria de ser assim, não havia outra forma; teria de ser transparente e verdadeiro. Está escrito, não me peçam para divulgar a minha vida privada daqui para a frente. Quem quiser saber que abra o livro e sabe tudo. Não vou mudar um centímetro da conduta que tenho tido até aqui.

“Emanuel era um menino mimado. Melhor dizendo, amado.“, lê-se no capítulo que dedica à sua “doce infância”. Sempre foi muito próximo da sua família, como era a relação?

Sempre foi muito chegada. [Os meus pais] juntam as suas vidas, na década de 50, num ambiente rural, onde o importante era ter família. As pessoas não juntavam as suas vidas para mais nada que não fosse ter as suas famílias, ter a sua casa, ter os seus filhos e poderem sustentá-los convenientemente e ter roupa no armário. E assim eram a Elisa e o Alfredo. Conseguiram dar aos filhos essa vontade, essa ansiedade e sem nunca os deixar passar pelas dificuldades que eles passaram durante a II Guerra Mundial. O Alfredo e a Elisa queriam dar aos filhos uma mesa farta e sempre o conseguiram. Eu nunca vi os meus pais discutirem, provavelmente tiveram as suas coisas, mas nunca o fizeram à frente dos filhos. Havia como que uma união espiritual entre todos nós [pais e restante família] – e era assim que todas as famílias deviam viver. Este era o nosso espírito, esta era a nossa união.

A minha intuição dizia que Covas do Douro era uma aldeia muito pequena para mim.

A sugestão de vir para Lisboa foi do seu tio Adriano, mas a decisão foi sua. Mesmo não conhecendo “o Mundo para lá de Sabrosa”, palavras da sua mãe, em Covas do Douro não ficava a fazer nada, palavras do Emanuel.  Como foi essa chegada a Lisboa?

A sugestão [do meu tio] foi como o fazer, porque a vontade era mesmo minha. Eu queria ver a cidade grande, eu queria ver o mar. A minha intuição dizia que Covas do Douro era uma aldeia muito pequena para mim.

[Na chegada a Lisboa] as surpresas eram constantes. Cheguei de noite, no outro dia vi o rio Tejo, mas não via a outra margem, porque era mais baixo e lembro-me de dizer 'o mar é grande'. Eu ainda não tinha visto sequer o mar. Eram surpresas atrás de surpresas. Tudo era muito grande, eram muitas casas, eram prédios altos, eram muitos carros, a primeira fase em Lisboa foi assim. Vim trabalhar para uma padaria. Começava a trabalhar à meia-noite e terminava o trabalho às sete da manhã. Tudo era novidade. Não me lembro de ter grandes problemas com esta mudança. Era um sonho, na realidade era um sonho que eu não compreendia, que me trouxe para a cidade grande.

Saiu de Covas do Douro quando tinha dez anos para vir trabalhar para Lisboa como aprendiz de padeiro. Qual era o plano em Lisboa? Ainda sabe fazer pão?

Não. Acho que não [risos]. O pão era de uma forma industrial, as crianças na altura, eu e os outros de 10, 11 e 12 anos que trabalhavam nessa padaria, o nosso trabalho era fazer a forma. Agora são máquinas, mas nós na altura fazíamo-lo à mão. Fazíamos aqueles biquinhos laterais e aquela rachinha no meio, aquilo era feito manualmente e as crianças fundamentalmente faziam isso. 

O preâmbulo do livro termina com a sua chegada a Lisboa e com a seguinte frase: “Vai correr tudo bem, meu filho”. Correu?

Correu.

Perdeu a forte ligação que tinha ao Douro?

Não. Até aos dezoito anos, até mudar a minha vida, ia ao Douro todos os anos. As férias eram sempre passadas com os meus amigos de infância, muitos deles tinham emigrado para França ou para a Suíça, outros tinham ido para o Porto. O mês de agosto era um mês em que toda a gente se juntava.

“Às vezes, sonhava ter uma vida diferente. Mas a verdade é que se sentia uma criança feliz e sabia que o mais importante para os seus pais era que os quatro filhos tivessem mesa farta, tivessem sempre os sapatos em condições e pudessem ir à escola”, conta no livro. Conseguiu ter essa vida que sonhava? 

Acho que tive a vida que escolhi. Julgo que sou um homem com sorte mas também a soube construir. São muitas décadas de vida. Fui, ano após ano, crescendo, subindo, quer como homem, quer profissional e intelectualmente. Tenho a vida que escolhi e que assumi face às oportunidades.

Acho que tive a vida que escolhi. Julgo que sou um homem com sorte mas também a soube construir.

Gosta da solidão? Como é que consegue conciliar com a vida agitada de estrada e dos palcos?

Eu não consigo explicar porque é que preciso da solidão, mas o que é um facto é que preciso. Sempre fui assim. Desde que me lembro que sempre precisei de momentos... preciso estar sozinho, não consigo explicar. Sempre fui assim. Ainda hoje preciso de me despegar mesmo das pessoas que gosto muito e que amo muito, preciso de me despegar quase diariamente. Um momento. Nem que seja dez ou quinze minutos e ficar sozinho. Faz-me bem, não consigo explicar, mas é como que um encontrar comigo próprio. Dou muito valor ao pensamento, julgo que o pensamento tem a capacidade até de nos instruir. E penso melhor quando estou sozinho.

A paternidade para mim significa cinquenta por cento da minha existência

O que é que a parternidade lhe trouxe?

Responsabilidade. O verdadeiro sabor do que é viver. O meu maior alicerce são os meus filhos. São as pessoas que eu mais amo. Este livro foi-lhes dedicado para saberem o que é que o pai fez. Existem passagens [no livro] que provavelmente nunca lhes contei porque estou mais preocupado com eles do que comigo próprio. A paternidade para mim significa cinquenta por cento da minha existência.

Por falar em histórias que nunca lhes contou. O episódio da perda da virgindade com uma prostituta fez correr alguma tinta. Porquê inclui-la e como reagiu à forma como foi recebida? Terá esta história roubado algum protagonismo às restantes do livro?

De facto essa passagem, a passagem em que conto que perdi a virgindade entre os 13 e os 14 anos. Podia ser aos 13 ou aos 14, não me lembrava muito bem, tínhamos de colocar uma data. Eu contei-a porque na época era normal os pais pegarem nos filhos, ou tios e amigos mais velhos pegarem nas crianças e levá-las a dois locais que existiam em Lisboa: o Bairro Alto e o Intendente. O Bairro Alto hoje tem muitos bares e muita animação noturna, mas na altura eram pequenos bares e pensões onde as senhoras desenvolviam a sua atividade. Havia uma espécie de ritual, quando os adolescentes atingiam já um certo estado de maturidade mental e física - e eu cresci muito depressa, era muito alto com 13 anos - era natural serem “estreados”. Era este era o termo.

Eu resolvi contar esse episódio não por mim, mas pelo livro que representa um homem que nasceu na geração de 50. Tinha de contar também um episódio como este para se perceber como era a vivência dos adolescentes na época. Não tinha outra intenção que não essa e subentende-se isso. Só que, infelizmente, as pessoas levam sempre para o lado que não devem.

Hoje, talvez seja a única passagem que retirava do livro. Porque não foi compreendida, as pessoas têm de entender o contexto. Só me dava com os mais crescidos e os meus dois compinchas, os meus dois amigos, resolveram levar o rapazote à estreia. E é isso que interessa, não interessa mais nada. Mas enfim, a vida é assim. Seja como for, está escrito, é a verdade e os meus filhos não têm que levar isso a mal. Eles sabem o pai que têm, para além de que, o sexo para mim, desde que seja tratado com responsabilidade, não tem problema absolutamente nenhum. As pessoas é que fazem do sexo um papão, esquecem-se que são dois órgãos que o ser humano tem igual a outros tantos. A forma como usamos esses órgãos é que é importante. Essa passagem, repito, é apenas uma demonstração cerimonial do que acontecia naquela altura. Acho que temos de contar a verdade quando os livros têm esta franqueza.

Hoje, talvez seja a única passagem que retirava do livro. Porque não foi compreendida, as pessoas têm de entender o contexto.

Jogou futebol, era ponta de lança. Teria tido uma carreira como futebolista?

Eu era um jogador em todo o lado. Chutava com os dois pés e parece que jogava muito bem. Mas não era o meu lugar fixo. Por exemplo, eu jogava na distrital de Sintra, no Atlético do Cacém, antes de me irem buscar para o Sporting, onde acabei por não jogar. No Atlético do Cacém o meu lugar fixo era a defesa esquerdo porque não havia ninguém que chutasse com o pé esquerdo.

Desistiu de um lugar no Sporting “porque a guitarra tocava cada vez mais alto”. Alguma vez se arrependeu dessa decisão? 

Não. Não me arrependi da decisão de optar pela música em vez do futebol. Embora hoje, com outro discernimento, com mais maturidade, talvez pudesse ter as duas atividades. Mas não sabemos. Talvez ao tocar dois violinos depois não tocava nenhum.

O Sporting é o seu clube do coração. Sofre muito?

Eu sou simpatizante do Sporting, exatamente desde essa altura. Porque quando me disseram "ok pá, és bom, ficas por aqui. Atleticamente estás bem, controlas a bola, és nosso jogador. Tens é de ir jogar para outro clube, és puto ainda, tens dezoito anos pá" aquilo marcou-me, obviamente. Daí para cá, o Sporting tem sido sempre o meu clube.

Não sofro. Não porque essa é uma defesa que eu encontrei na vida. Eu quando as coisas me dão tristezas, não as quero na minha vida. Isso também é aprender a ser feliz. Gosto muito de futebol. Gosto de ver bons jogos de futebol. E se o Sporting está a perder porque não está a jogar bem, a outra equipa merece. Esta é a minha forma de ver as coisas. Prefiro sempre que o Sporting ganhe, mas que ganhe de uma forma justa. Aliás, acho que se todos fossemos assim, não veríamos alguns extremos como às vezes acontecem.

Mas já chorou a ver futebol...

Pela seleção nacional, sim. A seleção emociona-me mais, é curioso. Talvez porque os jogadores jogam com mais paixão, há coração, nota-se. Nos clubes eles fazem o seu trabalho, são pagos para isso.

Quando é que percebeu o seu gosto pela música?

Eu sempre gostei de música, agora a paixão... aquela paixão que nos diz "segue este mundo, porque este mundo pode ser teu" só nasce depois de começar a apaixonar-me pela guitarra clássica. Comecei a estudar numa escola de música e, à medida que ia evoluindo, ia-me apaixonando cada vez mais. A dada altura, talvez por isso, não me importei com o futebol. A minha intuição começou a dizer-me, a minha voz interior começou a dizer-me "segue este caminho pá porque provavelmente ele está reservado para ti”.

A minha intuição começou a dizer-me, a minha voz interior começou a dizer-me "segue este caminho pá porque provavelmente ele está reservado para ti”

Foi aí que começou a estudar música?

Quando fui contratado para ser aprendiz de barman [num bar], por volta dos 14 anos, a escola de música Duarte Costa era a 500 metros do bar onde trabalhava e comecei a estudar lá.

créditos: Paulo Rascão / MadreMedia

Foi nesse bar, o Paris Orly, que pegou numa guitarra pela primeira vez?

Sim, o meu chefe, o Mateus, tinha uma guitarra e aquilo sou-me tão bem quando a passou-me [para as mãos] que mudou a minha vida.

Gosta de dizer que é um “operário da música”. O que é isso?

Porque eu vivo da música. Eu formei-me para ser músico, fui professor de guitarra clássica, comecei a compor, comecei a orquestrar, comecei a produzir. Fui professor, essa foi a minha primeira atividade enquanto profissional da música, portanto eu sou um profissional, sou um operário dos sons. As pessoas às vezes têm tendência para ver os artistas seres do outro mundo... não é verdade. Nós somos pessoas normais, é a nossa profissão. É assim que eu me vejo, é assim que me quero ver e provavelmente será assim sempre que eu me vou ver, como um operário da música.

Em vários momentos do livro conta que na sua casa sempre se trabalhou muito. Herdou esse ritmo para a música?

Sim, eu trabalho muito. Mas dá-me prazer. Faço-o por prazer. Por exemplo, neste momento deixei de gravar álbuns todos os anos, não se justifica porque, como toda a gente sabe, não se justifica vender CD's hoje. A indústria musical alterou-se por completo, mas eu não deixo de compor, ando ali a trabalhar uma música, se for preciso, um mês ou dois, deito tudo fora e depois recomeço por puro prazer, é vício. Tenho dias em que trabalho doze horas à frente do computador, com a guitarra ou com o teclado. Não consigo ser de outra maneira.

créditos: Emanuel DR

A certa altura deixou o bar e começou a dar aulas. “Queria conhecer o lado mais técnico da música”, diz. É um estudioso?

Fui um estudioso e gostaria de o voltar a ser. Não tenho paciência agora para o fazer. Mas sim, a certa altura, comecei a devorar tratados de harmonia, comecei a devorar formas de executar as coisas, mas de uma forma muito eclética. Nunca me concentrei num estilo só, sempre vi a música de uma forma global, nunca a dividi, sempre compreendi - porque foi isso que aprendi -  que existem 12 sons e porque normalmente se trabalha em música tonal, trabalha-se em sete.

Sempre quis saber o que fazer com os sons. Não se era pop, se era popular, se é isto se é aquilo, isso para mim é treta. São nomes, são adjetivos que não fazem sentido para mim. O que faz sentido para mim é o que é a música. A música é uma arte que comunica emoções, impressões através dos sons. O que fazer com esses sons era para mim o que era fundamental. Andei a brincar com algumas coisas, a perceber como é que se fazia e enveredei pela música popular que é a minha natureza.

Quando toda a gente pensava que ficava por ali, apareço com o "Pimba Pimba", no ano seguinte, e vendo 500 mil cópias num verão. Isto não é só sorte.

Eu nasci no mundo popular e usei os conhecimentos adquiridos, esses estudos, para aparecer com uma música popular que era nova, na altura, nova na forma como os sentidos melódicos se desenvolviam. Nova porque era muito mais dinâmica em termos rítmicos, embora muito simples. Em 1994 quando apareço com a temática dançante "rapaziada vamos dançar", estive seis meses no TopMais. Um escândalo. Quando toda a gente pensava que ficava por ali, apareço com o "Pimba Pimba", no ano seguinte, e vendo 500 mil cópias num verão. Isto não é só sorte. E não é por dizer pimba. É porque a música tinha de facto uma energia e uma emoção diferente e o resultado está aí, as provas são muito muito claras. Se nos quisermos despir de preconceito e quisermos analisar as coisas de uma forma objetiva, percebemos que aquilo que eu estou a dizer é a verdade. 

A composição é um vício?  Como é que acabou a gravar as primeiras músicas?

É. É uma paixão e provavelmente o meu maior vicio.

Tem noção de quantos temas já compôs? 

A partir dos 1.200 temas deixei de contar.

E isso foi quando?

Há uns sete ou oito anos. Comecei a fazer um apanhado das minhas obras e já tinham chegado às 1200. Não sei quantas são mais, não sei se mais cem ou duzentas, eu julgo que devo andar entre as 1400 e as 1500 obras editadas.

Vendeu a casa para comprar um estúdio. Este estúdio?

Não este, era um estúdio bem mais pequeno que este, bem mais elementar e a 500 metros daqui. E sim, tive de vender a casa para pagar as letras ao banco nos dois primeiros anos. Mas posso dizer que fui eu que fiz as portas, fui eu que colei a cortiça e fui eu que fiz tudo. Até o isolamento. Porque o dinheiro não chegava para mais. Era aquilo que eu queria e por isso trabalhava dezesseis e dezessete horas por dia para conseguir por em prática aquilo que tinha em mente.

Foi convidado para trabalhar na produção do single “Joana”, de Marco Paulo, mas já tinha trabalhado com outros artistas, como a Cândida Branca Flor e o Dino Meira. No livro, há um momento onde se refere aos últimos discos de Marco Paulo [na altura] e percebeu que “deveriam estar ajustados ao gosto do público português". Como é que percebeu qual era o gosto do público português?

Cada povo tem um gosto específico. De uma global, obviamente. O povo francês tem uma característica, o português tem outra e o espanhol tem outra. Mas dentro desse próprio povo, existem padrões de gosto diversificados. Estamos a falar de 1989 e do artista número um em termos de vendas dessa década, que mais fãs tinha, que mais espetáculos fazia, entregarem-me um artista desses nas mãos era um assunto de grande responsabilidade.

Eu nem acreditava como é que me queriam dar um artista dessa dimensão. Questionei, "mas porquê?". "Porque tu tens sangue novo", "os teus sons são diferentes dos outros", citando o que na Valentim de Carvalho me disseram, "o que nós queremos é dar ao nosso artista um sangue novo". E, por isso, "queremos que faças a orquestração do álbum do Marco Paulo". Eu percebi e também me explicaram que os últimos três álbuns dele, embora tivessem vendido muito bem, porque ele vendia de facto muito, eles achavam que deveria vender mais. E eu subentendi que esses álbuns não venderam, não porque as canções não fossem boas, apenas porque as orquestrações eram cópias dos originais. Eram sucessos noutros países que depois eram adaptadas em Portugal com um novo texto para o povo português. E eu percebi que se podia fazer mais do que a própria letra. Acho que podíamos fazer isso também na música. Teria de ajustar aquelas melodias e aquelas letras às sonoridades que a generalidade do povo gostava, sobretudo os consumidores daquilo que se chamava a música popular.

Ajustei a sonoridade dessas canções àquilo que pensava que era o gosto do povo português, não respeitando as orquestrações originais. O tema "Joana" [tema alemão], por exemplo, que era o tema número um do disco, aquele que achei que seria o grande sucesso, e de facto foi, era uma pasmaceira, uma história como as quinhentas mil idênticas e a orquestração correspondia à tristeza e ao envolvimento emocional da letra. Resolvi não fazer isso, colocar um shake, dar um contratempo no princípio. Tornei-a muito mais dançante e alegre e foi um grande sucesso.

Em ambas ["Joana" e "Sempre que brilha o sol"] dei uma dinâmica diferente, muito mais adaptada ao público português, e por isso disse que fiz a adaptação ao gosto dos portugueses.

O Emanuel ouve muita música?

Ouço. Mas muito diversificada. E ouço música, às vezes, por uma questão técnica. Gosto de estar atualizado. De há um ano para cá tenho ouvido, tenho escutado, tenho analisado muito a música de dança internacional, o house, quase tudo que envolva música electrónica. Tenho escutado muito os novos DJ's, que são na realidade produtores por isso é que fazem a diferença. A mim fascina-me a capacidade de usar sons para, de uma forma mágica, por 50 mil pessoas a vibrar. Não me interessa se é só com colunas, se é só com gira-discos... não me interessa. A mim interessa-me o resultado e o resultado é fascinante.

E acaba depois por ter reflexos quando faço as minhas musiquinhas. Por essa e por outras razões, eu em 2010 apareço com o "Ritmo do Amor" e o que é que aconteceu? Comecei a tocar em discotecas onde não era possível um artista de música popular tocar. Foi um sucesso extraordinário em Espanha, toquei em Ibiza dois anos, 2011 e 2012, o centro do Mundo dos DJ's onde toda a gente quer tocar. E aqui o Emanuelzito, aqui o português pá, faz uma música, não faz nada, vai para a internet, estoira com milhões de visualizações e toca em sítios onde não era suposto tocar. Isso foi possível porquê... porque em 2007 cheguei à conclusão que os ritmos tinham já durado tempo demais, já lá iam dezessete anos e é incrível como é que me tinha sempre mantido sempre naquela minha linha durante tanto tempo. Estava na altura de transmitir a mesma emoção, transmitir alegria mas atualizada. Fiz uma fusão de reggeaton, kuduro e a música do Emanuel. E o resultado sai o "Ritmo do Amor". A canção em dois ou três anos chega a 12 milhões visualizações loucos. É assim que eu funciono, é assim que eu ouço música e é assim que eu tenho satisfação na música.

Aqui o Emanuelzito, aqui o português pá faz uma música, não faz nada, vai para a internet, estoira com milhões de visualizações e toca em sítios onde não era suposto tocar

Chegou à conclusão de que as maquetes soavam melhor com na sua própria voz. Quando?

Aí está a minha voz interior a falar, são coisas que não se explicam. Quando pensei no projeto Emanuel, inicialmente não era um projeto para a minha voz, eu era um homem de estúdio, um homem que trabalhava para cantores e, por consequência, achei que havia lugar em Portugal para um artista da grandiosidade do Marco [Paulo] mas mais popular. Que as músicas não fossem versões, mas fossem músicas que bebessem na origem da nossa música tradicional. E para isso eu comecei a gravar, a ouvir e a analisar as músicas que os nossos ranchos folclóricos tocavam. Analisei os intervalos, verifiquei quais os intervalos mais usados, que características rítmicas tinham e comecei a desenvolver um género de música novo. Queria um cantor novo para esses novos sons. O projeto que tinha na cabeça não o conseguia desenvolver na voz dos outros. Resolvi ser eu a assumir o projeto e fiz muito bem.

O projeto que tinha na cabeça não o conseguia desenvolver na voz dos outros. Resolvi ser eu a assumir o projeto e fiz muito bem

Faz música pimba, música popular portuguesa ou música ligeira?

Música popular acima de tudo pela sua característica e pela sua popularidade e porque também vai buscar sonoridades à origem, à música tradicional. Música pimba, esse não é um problema meu. Pode ser pimba, pumba, Maria, Manel, são títulos, não tem qualquer valor. Percebo que às vezes é preciso dar nome aos estilos, tal como damos nomes às pessoas ou às cidades, mas não tem que ter conexão negativa ou pejorativa, isso é outra história. Isso é a intenção. Música ligeira é outra coisa. Para um homem do clássico, eu defino música ligeira como um género que é ligeiro na sonoridade, não é difícil de ouvir, é muito fácil, tem fraseamentos melódicos muito acessíveis, com um ritmo demarcado, pode variar mas é definido em si e por consequência dura pouco, três, quatro, cinco minutos e isto engloba a música popular, o rock, o pop e outros estilos.

Porquê “pimba”? De onde vem a palavra, de Covas do Douro?

Vem de Covas do Douro. É verdade que o termo está no dicionário, dizem que por causa de mim, tudo bem, porque trouxe o termo acima, mas não fui eu que criei o pimba.

Pimba era um adjetivo usado que confirmava o contexto. Na minha infância, o que se dizia era “o Manuel chateou-se com o António e... pimba!” deu-lhe um soco], “o João foi à taberna, pegou no copo e... pimba!” [bebeu-o]. O pimba era usado para isso. Era curioso que nem tinha conotação sexual, passou a ter depois do “se elas querem um abraço ou beijinho... nós pimba”, mas mesmo assim eu apelo ao raciocínio das pessoas porque num género brejeiro como era aquele, aquilo até era muito suave, porque eu começo por dizer “rapazes da vida airada, ouçam com atenção, todos temos o dever de dar às nossas mulheres muito carinho e afeição”. Por isso, se elas querem um abraço ou um beijinho, a malta dá. Se elas querem muito amor e muito carinho, nós damos. Só que nós damos não tem piada nenhum, não tem sonoridade. Mas nós pimba tem que se lhe diga. O termo pimba aparece por causa disto, tem o “i”, o “i” é muito sonante, “pimm pimmmm”, tem som, damos não tem som nenhum, nós damos “damosssss” não tem sonoridade. O compositor e o produtor têm de ter conhecimentos disto e eu julgo que os tinha e o resultado está aí.

O termo pimba aparece por causa disto, tem o “i”, o “i” é muito sonante, “pimm pimmmm”, tem som,

As palmas do público ainda lhe fazem lembrar a reação da bancada quando marcava um golo?

Ainda tenho a sensação extraordinária das palmas, sim. Não me consigo desligar dessa emoção, é uma coisa indescritível. Os concertos são para mim, às vezes, um orgasmo. Não me entendam mal. É um orgasmo mental, é uma coisa muito interessante. E no meu caso tem uma dupla satisfação porque é a minha música que ali está, são os sons que eu crio, são as palavras que eu crio que geram aquele efeito. Não sei como seria viver a partir de agora sem os aplausos.

Os concertos são para mim, às vezes, um orgasmo

Como é que se monta um espetáculo como os que hoje em dia dá?

Somos 28 pessoas na estrada, é muita gente.  Somos 11 pessoas no palco, mais as dos bastidores, para por o espetáculo em funcionamento. Um camião TIR chega com o material às 11h00 da manhã, ao 12h30 - isto muito pontual, mais 15 minutos menos 15 minutos - chegam os técnicos e o manager. Os músicos chegam entre as 16h00 e as 17h00 e as bailarinas depois. Por volta das 18h30 chego eu para fazer o teste final. O meu manager é o Samuel Monteiro, o meu filho mais velho, é o “chefão” da orgânica. Temos uma máquina muito afinada para que quando chegue a hora do espetáculo estejamos em cima do palco e se consiga o objetivo final que é dar aqueles milhares de pessoas, que felizmente tenho sempre o privilégio de ter à frente de mim e dos meus músicos, uma hora e meia de grande satisfação.

créditos: Emanuel DR

A certa altura diz que percebeu que o “Ritmo do Amor (Kuduro)” era o seu Tequilla Sunrise”. Os anos no Paris-Orly ajudaram a chegar à fórmula perfeita, ingrediente a ingrediente?

Eu diria que me ajudaram a apurar a personalidade. O barman, na altura, era um profissional muito orgulhoso, muito disciplinado. E eu era assim. Lembro-me de quando fui estudar inglês, quando comecei a ler livros de geografia, de história... para ter uma cultura interessante e que me possibilitasse conversar com os meus clientes - alguns deles tornaram-se amigos, de igual para igual. Esta forma de existir, esta forma educada, o mudar de camisa todos os dias, o lacinho sempre "xpto", a indumentária sempre muito bem passada, moldaram também a minha personalidade e isso acaba também por se refletir na música que produzo.

Em 2016, foi um dos 8 autores distinguidos com medalha de honra da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). O que sentiu ao receber esta distinção?

Senti-me muito bem. São muitos anos a trabalhar a música. Sou profissional da música desde 1979. O  homem que em setembro de 1979 começou a viver da música como professor é o mesmo homem de hoje. De lá para cá tem havido um crescimento, tem havido um conhecimento acumulado e quando recebi aquela medalha percebi que toda esta caminhada mereceu a pena. É simbólico obviamente para mim era mais do que isso. Se me dissessem que em 79, quando me contrataram para ser professor, a minha vida seria assim, duas ou três décadas depois eu provavelmente não iria acreditar. Soube-me mesmo muito bem até porque eu servi os autores durante 12 anos. Fiz parte de três direções [da SPA] de que me orgulho, de gente boa, conheci gente muito boa. E quando digo muito boa não é só a nível pessoal, mas gente com um conhecimento intelectual elevado das várias áreas da cultura portuguesa - da literatura, do cinema, da música, entre outras. Ver como as pessoas pensam e ser par deles nas reuniões, nas decisões, nas opiniões... fez de mim um homem mais crescido. Essa medalha também tinha isso incluído.

Já que falamos na SPA, não quer partilhar connosco um ou dois versos de alguma das músicas que José Jorge Letria e o maestro António Vitorino de Almeida compuseram para si?

Esse é um episódio muito interessante. Eu tive a sorte de ser respeitado por gente desse estado elevado de cultura. Estamos a falar de dois monstros da cultura. O José Jorge é um homem extraordinário, é o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), um grande presidente, que tem feito uma obra extraordinária. Mas para além disso é um intelectual de primeiríssima linha. O Maestro Vitorino de Almeida é aquilo que toda a gente sabe porque a televisão o divulgou e ainda bem. Um dia dizem-me “temos aqui um álbum para ti” e fui ouvir. De facto primoroso, os textos de primeiríssima qualidade e as músicas do maestro muito bem feitas. Ele todo entusiasmado com as pautas à frente. Foi um momento muito bonito, um momento alto da minha vida. Mas obviamente que não correspondiam ao "estilo" de música e à emoção que se pretendia para o meu público. A conversa foi por aí e fui para o piano explicar porque é que as coisas tinham de ser de outra forma.

Às vezes pensa-se que o facto de as músicas terem textos muito simples, acham que eles são simples porque a pessoa não tem a capacidade para fazer mais. Não tem nada a ver com isso. Um exemplo: se vamos a um restaurante e queremos comer um bife grelhado, é só grelhado. Tem de ser simples, carninha e um bocadinho de sal ou não, grelha, põe no prato e acompanha um legumezinho. A música popular ou a música ligeira é exatamente isso. Muitos dizem, “ah, mas isso só tem três acordes”... Quem é experimentado em música sabe que uma música de três acordes pode levar 7, 8, 9 ou 10, é muito fácil desenvolver cadências harmónicas. Se nós queremos um bifinho grelhado porque é que havemos de colocar um molho de pimenta... A música ligeira, ou este género de música ligeira, é exatamente isso... é um bifinho grelhado. Simples e tem de ser simples.

A música ligeira, ou este género de música ligeira, é exatamente isso... é um bifinho grelhado. Simples e tem de ser simples

Nasceu no dia 25 de março de 1957, no mesmo dia da assinatura do Tratado de Roma que instituía a Comunidade Europeia Económica (CEE). Como vê a Europa aos olhos de hoje? É um homem politizado?

Não sou muito [politizado] porque não me diz respeito. Nós pagamos aos políticos para nos liderarem o país. Temos a responsabilidade - nós todos - de escolher os melhores. Às vezes fazemo-lo, outras vezes nem por isso.

Eu sou a favor da União, sou um homem que acredita num mundo global porque essa é uma das formas de resolver, por exemplo, as guerras, estas porcarias e estes atrasados mentais que andam a fazer a guerra por aí e a sustentar gente aos biliões de dólares com a venda das armas. A pobreza poderia ser, não diria eliminada, mas pelo menos atenuada. Apesar de tudo, a União Europeia dá as melhores condições do mundo aos seus cidadãos. Eu gostaria de ver a União Europeia a crescer, a aumentar, não vi com muito agrado a separação do Reino Unido, acho que não vai ser bom para eles e acho que também não vai ser bom para nós. Mas eles têm livre arbítrio, se acham que é bom assim... paciência, temos de aceitar. Mas preferia que não acontecesse...

Nós pagamos aos políticos para nos liderarem o país. Temos a responsabilidade - nós todos - de escolher os melhores. Às vezes fazemo-lo, outras vezes nem por isso

Preferia também uma América mais tipo Obama do que o senhor que lá está agora, desejo-lhe muita sorte, espero que o senhor [Donald Trump] comece a ver que as coisas não são bem assim, ele vai dirigir a América como se dirige uma empresa e não é bem assim. Não sou muito politizado, mas vou estando atento.

Tem um carinho assumido pelas comunidades portuguesas espalhadas pelo Mundo. Há alguma mensagem que gostasse de enviar à comunidade portuguesa na América de Donald Trump?

Eu não preciso, os portugueses na América são pessoas esclarecidas. Sabem o que querem, são gente de trabalho. Acho que não vão ser muito afetados com tudo isto. Não me parece. Se a América continuar a dar-lhes as mesmas oportunidades. Espero que Donald Trump não faça trampa, mas a nível global. O mundo estava a caminhar para algo muito interessante. De facto o Obama conduziu a América para uma certa paz, para um certo equilíbrio, com uma aproximação à Europa que era necessária e, portanto, é a esse nível que as coisas se vão complicar. Já estava sensível ao terminar com a venda das armas livres como acontece na América, estava sensível às alterações climáticas... os EUA estavam a entrar num caminho importante. O Mundo em si vai perder, os portugueses não me parece porque são trabalhadores e vão continuar a poder sustentar as suas famílias como o fizeram até aqui.

Hoje, o Emanuel quer um abraço ou um beijinho?

Eu quero um abraço e quero um beijinho...se for com carinho. As duas coisas são boas.

Não se esqueçam de ser felizes.