Consideravam-se irmãos. A afinidade entre Eunice Muñoz e Ruy de Carvalho, a admiração mútua, foi percetível desde o primeiro instante para o realizador de "Eunice e Ruy - Viagem ao Princípio", Ricardo Clara Couto, e para a restante equipa. Os dois atores renderam-se à ideia de fazer este doc-ficção desde o primeiro minuto.

Como dois irmãos, para lá dos elogios, dos afetos, do carinho ao longo das filmagens, também houve amuos. Ele madrugador, ela notívaga. "A questão das horas deixava-os doidos", contam divertidos o realizador e o diretor de produção, Luís Hipólito.

"Quando marcávamos uma hora, mesmo em horário de compromisso, a Eunice ainda estava no rescaldo da noite, já Ruy de Carvalho fazia palavras cruzadas para matar o tempo. "Olha que esta! Agora tenho de ficar a fazer palavras cruzadas e a minha Eunice ainda vai ser maquilhada... Mas que coisa"", dizia ele.

Chegou mesmo a haver um dia em que um representou de manhã e o outro representou à tarde. "Perguntámos se queriam esperar e o Ruy respondeu: "Nem pensar, agora vou almoçar que estou cheio de fome"". Prerrogativas da idade e de dois amigos almas gémeas na arte, mas com biorritmos "completamente diferentes", e que obrigaram a produção a alguma ginástica. "Uma disponibilidade horária muito difícil de mudar, por questões mentais e físicas".

Mas este é apenas um pormenor divertido de um caminho que "se foi fazendo, quase como quem percorre um labirinto - vamos experimentar por aqui, agora por ali" -, ao longo de dois anos. O grande lamento é que Eunice não chegou a ver o resultado final. "Queríamos fazer uma antestreia a sério, numa tela de cinema, para que ela pudesse ver o seu filme. A nossa abordagem é muito mais cinematográfica do que televisiva e vista de outra forma podia ser redutora", explica Ricardo Clara Couto.

O objetivo era, antes de mais, fazer algo memorável com os atores Eunice Muñoz e Ruy de Carvalho. Celebrar a vida e os 80 anos de carreira de ambos. O projeto inicial, uma ideia original de Luís Hipólito, jornalista e produtor, incluía uma ida à Grécia, o berço do Teatro, mas a pandemia veio trocar-lhe as voltas.

Ricardo Clara Couto créditos: Pedro Marques | MadreMedia

"Começámos a falar com eles em 2019, uns meses antes da pandemia", conta o realizador Ricardo Clara Couto. Eunice e Ruy "adoraram a ideia" e houve até uma coincidência: "na semana anterior ao convite a neta Lídia tinha estado a falar com a avó sobre a ideia de um dia visitarem a Grécia, exatamente por ser o berço do Teatro", conta.

Ricardo Claro Couto: "O ICA só apoia os amigos dos amigos"

Como surgiu a sua paixão pelo teatro e pelo cinema?

O primeiro filme que fui ver foi o "Dune". Os outros miúdos iam ver "A Branca de Neve e os Sete Anões" e eu fui ver o "Dune" - que é de 79, eu sou de 77 -, teria uns seis anos, porque os filmes chegavam a Portugal com algum atraso. O meu pai era fotógrafo na Avenida de Roma e fomos ao Londres. Para mim foi incrível. Como era muito pequenino e não sabia jogar futebol, refugiei-me sempre nos livros. Mas havia uma coisa que me deixava triste: o livro acabava e as personagens "morriam" ali. Não me queria despedir delas. Então, tentava escrever histórias com essas personagens, continuar-lhes a vida. Isso durou até muito tarde. As minhas professoras adoravam as minhas composições - algumas também achavam que eu devia ser seguido por um psicólogo, e acabei por ser seguido por uma psicóloga, mas acho que a manipulava (ou, pelo menos, tinha essa pretensão), porque a certa altura dizia o que achava que ela queria que eu dissesse. Mas, a certa altura, a escrita não chegava, precisava de outro espaço.

Mas ainda era muito cedo para fazer filmes.

O meu gosto começa por aí. Depois acabo por fazer um canal pirata idealizado pelo meu padrasto, eu fazia a programação diurna e ele fazia a programação noturna. Não mostrava nada meu, mostrava filmes dos outros, mas o bichinho de poder mostrar os filmes que eu queria estava lá. E tinha audiência, tanto que fomos apanhados pela polícia. Era "o canal dos bons vizinhos", na Póvoa de Santo Adrião, e emitíamos em sinal aberto, tínhamos um transmissor no sótão. Fomos denunciados pelos videoclubes, que deixavam de alugar filmes porque as pessoas tinham acesso por ali e era de borla. Um belo dia, estava a minha mãe grávida, lembro-me perfeitamente, a GNR bate à porta com um mandato de busca... levaram-nos tudo. Acabou-se o canal pirata, mas o bichinho ficou.

Há um ponto de viragem?

Há um filme que me faz achar que é possível, de um realizador que tinha o mesmo background que eu, não estudou, não foi para a escola de cinema, que é o "Reservoir Dogs" [Cães Danados], de Tarantino, um ídolo da minha geração, mas não só. Depois vi um documentário sobre Oscar Micheaux, que eu conhecia dos livros, e também me identifiquei muito com ele: é negro nos Estados Unidos, não pôde estudar cinema, é brutal. Foi durante muito tempo um assistente de malas num comboio, até começar a escrever. Foi o primeiro realizador de cinema negro. Nessa altura percebi que não preciso entrar para o conservatório, que há outras alternativas além do desgosto de ficar de fora. E comecei a tentar, primeiro na televisão - tudo o que tenho feito é para televisão. Mas é ao cinema que quero chegar.

Que projetos tem em curso?

No final deste ano espero já estar a rodar a minha primeira longa-metragem, com um guião do Luís Filipe Borges, Já recebemos um apoio e espero receber mais. O ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual] não nos apoia, porque só apoia os amigos dos amigos. Os consagrados têm apoios garantidos, mas não se importam com o público. São consagrados para uma classe intelectual lisboeta, acho que nem sequer chegam à do Porto, que é um núcleo de 400 ou 500 pessoas, e depois as salas estão vazias. O ICA devia perceber de uma vez por todas o que está a fazer ao cinema português e se é correto. Tem de se olhar para o cinema como entretenimento, e foi isso que os franceses fizeram, que os espanhóis fizeram, já para não falar em Holywood, o exemplo do cinema pipoca. Perceberam que era preciso criar uma indústria, habituar as pessoas a ir ao cinema, que é o que temos de fazer. E durante um tempo tem de ser o Estado a financiar, mas, nesses países, em 15 ou 20 há quatro ou cinco consagrados a receber apoio.

E como é em Portugal?

Acho que a nova geração de realizadores de cinema já tem essa preocupação de ter público nas salas, coisa que a antiga geração não tinha. Mas é a antiga que ganha os concursos do ICA. Atenção, não sou crítico do que fazem, sou crítico do ICA só os apoiar a eles. Esse cinema também é importante, mas se são consagrados, têm de começar a pensar nas salas e viver mais da bilheteira e menos dos subsídios. Os subsídios têm de ser para aqueles que estão a começar, a experimentar novas linguagens, para realizadores emergentes. Mas esses não pontuam, é um círculo vicioso. Tem de haver um equilíbrio. Não sei qual é a visão do novo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, espero que seja mais reformista e não conivente com este tumulto que houve quando disseram que o dinheiro da Netflix não era para o ICA. Espero que essa medida não seja revogada.

Um filme português de eleição.

"Sapatos Pretos", de João Canijo, ou "A Outra Margem", de Paulo Branco, são filmes que me marcaram, que me desassossegaram e deixaram a pensar. Quando fazemos um filme não precisamos que as pessoas que o veem façam a mesma viagem que nós, mas se se questionarem, já valeu a pena.

O que espera de um ministro da Cultura?

É importante fazer um pouco aquilo que fez a RTP, que é dar voz a todos. A RTP rompeu com a tradição, que é ainda o que fazem os canais privados, de só trabalhar com produtoras grandes, e começou a apostar nos mais pequenos. Graças a isso, pessoas como eu e outros realizadores e outras produtoras puderam começar a produzir com outra frequência. Foi um balão de oxigénio e uma boia de salvação, criou uma indústria. O resultado é que se começam a ver séries portuguesas na Netflix, porque as produtoras puderam produzir com regularidade e isso dá-lhes margem para errar. Porque precisamos de errar sem medo de pensar que, se falharmos, não vamos ter outra oportunidade. E precisamos de errar para fazer melhor. Penso que Pedro Adão e Silva precisa de ouvir toda a gente, não só os óbvios, os Paulo Brancos da vida. Porque esses vão fazer-se ouvir de uma maneira ou de outra. A Cultura não pode estar apenas nas mãos de dois ou três em Portugal, porque há mais gente pronta a acrescentar coisas, novas ideias, novas visões. Se a nova geração não tiver um lugar na cultura, a cultura morre.

Entusiasmados, pré-produção em andamento, surge a pandemia. E fecha tudo: aeroportos, fronteiras, teatros. "E a nossa urgência em querer fazer algo com eles, sabendo que seria, muito provavelmente, o último documentário dos dois, quer pela idade, quer pela disponibilidade - que, fomos percebendo, era limitada, não pela falta de vontade, mas porque os anos cansam".

Covid e dois nonagenários não combina, de maneira que a primeira hipótese foi cancelar tudo. Mas, "não podíamos abortar, se o documentário não se fizesse então, não se faria nunca", lembra Ricardo Clara Couto, que explica que na altura já estavam todos "demasiado envolvidos no projeto para abdicar dele".

Não ir à Ir à Acrópole, em Atenas, e aos palcos de Epidauro, Delfos, de Siracusa e de Dionísio obrigou a refazer uma parte do guião. Por sorte, "o argumento de um documentário está em constante mutação, vai evoluindo, vai-se rescrevendo, nunca sabemos muito bem o que o objeto da história nos vai dar e para onde será mais interessante ir", considera o realizador, habituado a estas andanças.

O que foi interessante "foi que logo nas primeiras conversas que tivemos com a Eunice e com o Ruy percebemos claramente que não precisávamos da road trip para conseguir casá-los", diz Ricardo Clara Couto. À medida que foram acrescentando ideias surgiu Mérida. "Eu queria esta viagem de maneira a pô-los a falar um com o outro sobre as suas vidas, sobre a sua obra, os seus percursos, sem ser no formato clássico de talking heads. E não queria ter outras pessoas a falar deles, queria que eles fossem os protagonistas das suas próprias histórias, uma visão que raramente conseguimos ter".

Alternativa Mérida

Com a viagem Lisboa-Atenas, ida e volta, como narrativa central do documentário posta de lado, foi preciso encontrar uma alternativa. A certa altura volta a ser possível viajar e se Grécia continua interdita, reabrem as fronteiras com Espanha. Porque não Mérida? Afinal, é lá que está um dos mais grandiosos e antigos teatros romanos - onde atuou também Montserrat Caballé, "A Soberba".

A viagem é montada num fim de semana e na segunda-feira os protagonistas da história arrancam para uma aventura de três dias, cada um no seu carro, Eunice Muñoz conduzida por Luís Hipólito, Ruy de Carvalho por Fátima Morais, jornalista. Porquê em carros separados? "Porque queriam absorver tudo em silêncio, sem a obrigação de falar".

"Tínhamos de aproveitar aquela janela temporal - a Eunice estava a fazer a peça com a neta Lídia Muñoz, não tinha outra aberta de agenda, e o Ruy estava a fazer "A Ratoeira". Com tanta sorte que as fronteiras voltaram a fechar dias depois", recorda o realizador.

Também houve partes gagas. Ricardo Clara Couto fala na importância da estética. "Quando comecei a pensar no documentário, queria, de alguma forma, que os dois escolhessem do seu guarda-roupa alguns figurinos que casassem com o que eu tinha idealizado, peças intemporais. O que nem um nem outro o fizeram", conta divertido. "Ele procurou à maneira, no seu estilo clássico, a Eunice disse logo "nem pensar nisso, visto o que quero". A verdade é que tem uma forma de vestir elegantíssima, que tanto podia ser dos anos 50 como de agora, que era exatamente o que eu procurava, um guarda-roupa que não os datasse, que fosse transversal no tempo. Os dois apareciam sempre incríveis e nós de boca aberta. Foi engraçado".

"Penso que há aqui um sentimento maior do que aquele que resultou nas imagens: podemos ter-lhes oferecido a possibilidade de ir a Mérida, que não conheciam e adoraram, de contracenarem mais uma vez, de relembrarem o passado. Um presente singelo que nos enche de emoção. Mas só podemos agradecer ter sido testemunhas daquilo que filmámos", afirma o realizador.

E o que testemunharam não é pouca coisa. "Ruy de Carvalho tinha um sentimento muito protecionista em relação à Eunice. A fragilidade da voz dela preocupava-o. Curiosamente, era quando o microfone se desligava que a sua voz crescia", recorda. Também para Eunice e para Ruy tudo foi surgindo como uma surpresa. "A certa altura, pedimos-lhes para representarem "O Barão", peça encenada e pronta a estrear, mas que foi censurada pelo Estado Novo e nunca viria a ser exibida. Não estavam preparados, obviamente, mas sabiam o texto de cor. Transformaram-se", conta.

"Tentámos uma estética com alguma profundidade intimista, o documentário é quase todo feito com pouca luz", recriando o ambiente das peças de teatro. Isso acontece "sempre que estão a falar um do outro e a falar do passado - só há uma vez em que abrimos mais a luz, no presente, quando vão a caminho de Mérida. A imagem acompanha também a cadência do discurso de dois nonagenários, não quisemos ter planos demasiado rápidos ou demasiado mexidos. Mas os discursos não são monocórdicos, ganham dimensão à medida que vão decorrendo", revela o realizador.

Ricardo Clara Couto créditos: Pedro Marques | MadreMedia

O documentário é também uma homenagem ao teatro. "Queria que sentíssemos o cheiro do teatro, que o documentário nos catapultasse para uma sala de espetáculo. A maioria dos planos estão feitos ao contrário, da boca de cena para o público, porque é assim que os atores veem".

De resto, não há subterfúgios, é a vida deles, uma viagem ao passado. Por isso, "não foi preciso dirigi-los - também não era minha intenção fazê-lo. Os dois, como atores incríveis que são, pegam nas suas falas e interpretam-nas à sua maneira. Não de uma maneira falsa, mas com uma enorme densidade. E mostraram desde o princípio até onde eu, como realizador, podia ir - sempre de forma natural, cavalheiresca e elegante. Entendemo-nos muito bem".

Ricardo Clara Couto créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Há uma parte do filme em que Eunice e Ruy são espetadores. "Queríamos que sentissem o que nós sentimos quando os vemos, e tivemos a ideia de os levar para um estúdio onde colocámos projeções de diversas representações deles em vários ecrãs. Eles não sabiam ao que iam, e quisemos captar os primeiros takes, filmar a as suas reações. Mais uma vez, fomos uns privilegiados. Aplaudiram-se e o Ruy de Carvalho até vai repetindo as deixas que está a ver, recordava-se das falas", admira-se Ricardo Clara Couto.

"Penso que rejuvenesceram vinte ou trinta anos. De repente, estavam efusivos a ver aquilo. Há momentos em que interagem com o que estão a ver. Lembro-me de uma cena em que a Eunice da tela baixa a cabeça e a Eunice que assiste mimetiza o gesto. Engraçado, porque a Eunice diz que nunca se quer ver na televisão, foge sempre".

O documentário também vem atrás. "Tivemos a ideia de redigir cartas, um trabalho impressionante de Luís Filipe Borges, com pesquisa da Fátima Morais - que vão buscar expressões e palavras a entrevistas que ambos deram ao longo dos anos e transformam-nas em cartas que escrevem um ao outro e nas quais falam das suas infâncias, dos medos, dos sonhos, por palavras próprias. Cartas que eles leram e aprovaram. É a ficção ou a encenação da realidade. E é isso que gosto de fazer, de na mesma narrativa acrescentar narrativas paralelas".

Um documentário de 55 minutos que pode ser visto hoje na RTP, às 22h30, mas que "deverá ser aumentado para 75 minutos para se apresentar em festival e para ir para as salas de cinema", anuncia Ricardo Clara Couto.

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