Eu, o Luís Filipe Borges e o Ricardo Clara Couto tivemos um dia o sonho de fazer um documentário com duas figuras maiores do que os seus próprios nomes: Eunice Muñoz e Ruy de Carvalho. A RTP1 apadrinhou a ideia e, assim, sem mais nem menos, com toda a ambição do mundo, desafiámo-los.

Queríamos tê-los ao mesmo tempo, os dois, numa viagem real e metafórica, até ao princípio. Ao princípio das suas vidas, escolhas e caminhos, às origens do teatro, essa arte de fazer rir e chorar e, sobretudo, de fazer pensar, como dizia Eunice com um sorriso capaz de fazer desaparecer a força da gravidade.

Aos 93 anos continuava a devorar a vida com o sorriso e a curiosidade da menina alentejana que, aos 13 anos, deixou a sua boneca preferida no camarim e pisou o palco do Teatro Nacional Dona Maia II pela primeira vez.

Fizemos com Eunice e Ruy muitas reuniões, muitos planos. Ir à Acrópole, em Atenas, e aos palcos do Teatro de Epidauro, do Teatro de Delfos, do Teatro de Siracusa e de Dionísio, para beber das pedras milenares a história da arte que lhes corre nas veias.

Eunice e Ruy, ambos reais e mitológicos, enormes, então a caminho dos 80 anos de carreira, disseram sim com um entusiasmo infantil e sem reservas. Contudo, uma pandemia obrigou-nos a cortar caminho. A Grécia ficou lá longe, a coroar o imaginário, e a realidade foi uma viagem até Mérida, ida e volta. Inesquecível.

Eunice contemplava os caminhos em silêncio, a absorver tudo o que parecia dançar à passagem do carro. De vez em quando saltava-lhe uma memória, uma reflexão, uma intervenção - sempre cirúrgica, sempre cheia de poesia, sábia e desarmante. “Já só quero o presente”, dizia sentada numa esplanada da Plaza Grande.

Sem nostalgia ou ilusões revelou-me o segredo da sua longevidade: "Deitar-me tarde e beber chá e café com muito - demasiado - açúcar. Ah, e amar fazer parte deste espectáculo a que chamamos vida".

Com Oeiras como ponto de partida e de chegada, ao longo de quilómetros falámos de coisas simples, como de carros com mudanças automáticas, que vieram facilitar-nos a vida, mas, ao mesmo tempo, tirar-nos a emoção da condução feita de altos e baixos no perder e ganhar velocidade. Ou de telemóveis aos quais nos escravizámos, deixando que nos engulam por inteiro e a toda a hora: “Já ninguém escreve cartas?” E os postais, que saudades dos postais. “Em Mérida vamos escrever postais!”

E a emoção de pegar um bebé ao colo. Eunice estava quase a ser bisavó. O desejado Amadeu viajou connosco para Mérida; ao lado de Eunice a neta Lídia, já muito grávida, uma presença constante e diligente, dedicada à avó de alma e coração.

Parámos numa estação de serviço perto da fronteira. Eunice pede uma Coca-cola. O empregado reconhece-a e pede, envergonhado, uma fotografia a dois. “É para mostrar à minha mulher, que adora esta senhora”, diz. No fim oferece a bebida, ”é o mínimo que posso fazer por si”. Eunice insiste em pagar, “Este é o seu ganha pão, tem de ser pago por isso”.

No palco do complexo arqueológico de Mérida os turistas estiveram em silêncio. Durante um segundo Eunice e Ruy fizeram o universo parar. Recitaram poemas e receberam aplausos imaginários. Nos olhos, o brilho do dever cumprido.

Ao longo de anos vestiram-se de muitas vidas, muitas pessoas, foram personagens diferentes, cheias de amor, de ódio, de verdade e mentira. Existências que salvaram muitas pessoas do tédio, da solidão e até da morte.

Eunice guardou durante muito tempo um rebuçado. Um rebuçado muito bem embrulhadinho num papel brilhante que uma criança, uma noite, veio oferecer-lhe no final de um espectáculo. Estava comovida ao contar esta história. A emoção daquela menina era a prova de que tinha conseguido o prodígio da verdade naquela noite.

Estaremos vivos enquanto formos lembrados e, com isto, se garante a Eunice Muñoz, se dúvidas houvesse, vida eterna. Um brinde a si querida Eunice… Naturalmente numa chávena de chá carregada de açúcar.

*Luís Hipólito é jornalista e produtor do documentário “Eunice & Ruy - Viagem ao Princípio”, que estreia brevemente na RTP1

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