PREFÁCIO

Ainda criança, tive a sorte de pegar num livro intitulado Tales from Ancient Greece. Foi amor à primeira vista. Por muito que viesse mais tarde a deliciar-me com os mitos e as lendas de outras culturas e outros povos, havia qualquer coisa nessas histórias gregas que me iluminavam interiormente. A energia, o humor, a paixão, a especificidade e os pormenores verosímeis do seu mundo fascinaram-me desde as primeiras palavras. Espero que com os meus leitores aconteça o mesmo. Talvez já conheçam alguns dos mitos aqui relatados, mas dirijo-me especialmente àqueles que podem desconhecer as figuras e as histórias da mitologia grega. Não é preciso saber nada para ler este livro; ele começa com um universo vazio. Não é necessário qualquer «educação clássica», ou conhecimento sobre a diferença entre néctar e ninfas, sátiros e centauros, ou sobre os Fados e as Fúrias. Na mitologia grega, não existe nada de académico nem de intelectual; é viciante, lúdica, acessível e espantosamente humana.

Mas de onde vieram eles, esses mitos da Grécia Antiga? No emaranhado da história humana, podemos ser capazes de puxar pela ponta de um único fio grego e segui-lo até às origens, mas, ao selecionarmos uma civilização e as suas histórias, pode-se pensar que estamos a tomar algumas liberdades em relação à verdadeira fonte do mito universal. Os primeiros seres humanos maravilharam-se com as fontes de energia que alimentaram os vulcões, as trovoadas, os maremotos e os terramotos. Festejavam e veneravam o ritmo das estações do ano, a procissão de corpos celestes no céu noturno e o milagre diário do nascer do Sol.

E interrogavam-se sobre como tudo poderia ter começado. O inconsciente coletivo de muitas civilizações contou histórias de deuses irados, deuses que morrem e se renovam, deusas da fertilidade, divindades, demónios e espíritos do fogo, terra e água.

Evidentemente, os gregos não foram o único povo a tecer uma tapeçaria de lendas e tradições a partir da trama desconcertante da existência. Os deuses da Grécia, se quisermos encarar o tema através dos olhos da arqueologia e paleoantropologia, remontam aos pais celestes, às deusas da Lua e aos demónios do Crescente Fértil da Mesopotâmia – onde se situam hoje o Iraque, a Síria e a Turquia. Os babilónios, sumérios, acádios e outras civilizações da região, que floresceram muito antes dos gregos, tinham as suas histórias sobre a criação e mitos populares, que, tal como as línguas que os exprimiam, podiam encontrar a ancestralidade na Índia e partir daí para ocidente, recuando à Pré-História, a África e ao nascimento da nossa espécie.

Mas sempre que contamos qualquer história, temos de cortar o fio da narrativa em algum sítio, a fim de termos um ponto de partida. É fácil fazer isto com a mitologia grega porque ela sobreviveu com um detalhe, uma riqueza, uma vida e um colorido que a distinguem das outras mitologias. Foi captada e preservada pelos primeiros poetas e chegou até nós numa linha contínua quase desde o início da escrita e até ao presente. Se bem que os mitos gregos tenham muito em comum com os chineses, iranianos, indianos, maias, africanos, russos, nativos americanos, hebreus e nórdicos, eles têm como característica única como disse a escritora e mitógrafa Edith Hamilton – o serem «a criação de grandes poetas». Os gregos foram o primeiro povo a elaborar narrativas coerentes, até uma literatura, sobre os seus deuses, monstros e heróis.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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O arco dos mitos gregos acompanha a ascensão da humanidade, o nosso combate para nos libertarmos da interferência dos deuses – do seu abuso, da sua intromissão, da sua tirania sobre a vida e a civilização humanas. Os gregos não rastejavam perante os deuses. Tinham consciência de que estes sentiam uma vã necessidade da súplica e da veneração, mas acreditavam que os homens eram seus iguais. Os mitos gregos compreendem que quem criou este mundo desconcertante, com os seus caprichos, crueldades, maravilhas, belezas, loucura e injustiça devia ser igualmente caprichoso, cruel, maravilhoso, belo, louco e injusto.

Os gregos criaram deuses à sua semelhança: belicosos mas criativos, sábios mas ferozes, afetuosos mas ciumentos, ternos mas brutais, compassivos mas vingativos.

A grande história dos mitos gregos começa no início, mas não termina no fim. Se tivesse incluído heróis como Édipo, Perseu, Teseu, Jasão e Hércules e os pormenores da Guerra de Troia, este livro seria demasiado pesado até para um titã. Além disso, só me preocupei em contar as histórias, não em explicá-las nem em investigar as verdades humanas e as perceções psicológicas que possam estar por trás delas. Os mitos são suficientemente fascinantes em todos os pormenores perturbadores, surpreendentes, românticos, cómicos, trágicos, violentos e encantadores para valerem por si mesmos como histórias. Se os leitores, à medida que avançarem, não conseguirem deixar de se interrogar sobre o que terá inspirado os gregos para inventarem um mundo tão rico e complexo nas personagens e nos incidentes, e se derem por si a refletir sobre as verdades profundas que os mitos encerram – bom, então isso faz certamente parte do prazer.

E prazer é o que se pretende retirar deste mergulho no mundo da mitologia grega.

O CASTIGO ETERNO DE SÍSIFO

Amor fraterno

O castigo eterno que Sísifo suporta no Hades entrou também na linguagem e na tradição, mas a sua história vai muito além da famosa pedra que ele está eterna e infrutiferamente condenado a empurrar monte acima. Sísifo era um homem perverso, ganancioso, ambíguo e muitas vezes cruel, mas quem não encontra algo de apelativo – mesmo de heroico – no infinito entusiasmo e desafio a pulso com que viveu (na verdade sobreviveu)? Poucos mortais se atreveriam a desafiar a paciência dos deuses de maneira tão imprudente. O seu desdém insensato e a recusa de pedir desculpa ou de se conformar fazem lembrar um Don Giovanni grego.

Deucalião e Pirra, os sobreviventes do dilúvio, tiveram um filho chamado Heleno, razão pela qual os gregos, até hoje, se autodenominam helénicos. O filho de Heleno, Éolo, teve quatro filhos – Sísifo, Salmoneu, Atamas e Creteu. Sísifo e Salmoneu nutriam um ódio visceral e implacável um pelo outro, como os humanos não tinham ainda testemunhado. Rivais pelo afeto dos pais e em tudo, nenhum deles, desde o berço, suportava ver o outro ser bem-sucedido. Os dois príncipes saíram do reino do pai, a Eólia, como era então chamada a Tessália, e dirigiram-se para sul e oeste a fim de fundarem os seus próprios reinos. Salmoneu reinou em Elis e Sísifo criou Éfira, posteriormente denominada Corinto. Destes bastiões, olhavam um para o outro através do Peloponeso, enquanto a amarga inimizade crescia de ano para ano.

O ódio de Sísifo por Salmoneu era tão grande que lhe roubava o sono. Queria-o morto, morto, morto. O desejo era tão angustiante que se esfaqueou repetidamente com um punhal numa coxa para se acalmar. Mas não havia nada que pudesse fazer. As fúrias vingar-se-iam terrivelmente se ele se atrevesse a assassinar um irmão. O fratricídio era um dos piores crimes de sangue. Por fim, decidiu consultar o Oráculo de Delfos.

– Filhos de Sísifo e Tiro, ergam-se para matarem Salmoneu – entoou a Pítia.

Isto era música para os ouvidos de Sísifo. Tiro era sua sobrinha, filha do odiado irmão Salmoneu. Tudo o que Sísifo tinha a fazer era casar-se e ter filhos com ela. Filhos que «se ergueriam para matar Salmoneu». Naquele tempo, os tios podiam casar-se com as sobrinhas sem causar estranheza, pelo que começou a cortejar e seduzir Tiro com cavalos, joias, poemas e oceanos de encanto pessoal, porque Sísifo sabia ser cativante quando decidia sê-lo. A determinada altura, a sua corte conquistou-a, casaram-se e ela deu-lhe dois rapazes vigorosos.

Um dia, alguns anos mais tarde, Sísifo foi pescar com o seu amigo Melops. Enquanto apanhavam sol nas margens do rio Sythas, começaram a conversar. Exatamente na mesma altura, Tiro saiu do palácio levando consigo uma criada, os dois rapazes – agora com cinco e três anos – e um cesto de comida e vinho, com o objetivo de surpreender Sísifo com um piquenique familiar.

Voltando à margem do rio, Melops e Sísifo falaram demoradamente sobre cavalos, mulheres, desporto e guerra. O grupo de Tiro avançava pelos campos.

– Diz-me, senhor – disse Melops –, surpreendeu-me sempre que, apesar da tua disputa feroz com o rei Salmoneu, tivesses escolhido casar-te com a filha dele. Tanto quanto sei, continuas a não gostar nada dele.

– Não gostar dele? Abomino-o, odeio-o, desprezo-o e detesto-o – disse Sísifo, dando uma gargalhada sonora, ao ponto de Tiro ter percebido a sua localização exata. À medida que o grupo se aproximava, ouvia cada palavra que o marido dizia.

– Só me casei com Tiro, aquela cabra, porque odeio Salmoneu – insistia. – Estás a ver, o Oráculo de Delfos disse-me que, se tivesse filhos com ela, eles cresceriam para o matar. Então, quando ele morrer às mãos dos próprios netos, livro-me do porco vil do meu irmão sem receio do castigo das erínias.

– Isso é... – Melops tentou encontrar a palavra.

– Brilhante? Astucioso? Engenhoso?

Tiro conteve os filhos, que se preparavam para correr para o local de onde vinha a voz do pai. Fê-los dar meia volta, empurrando-os rapidamente para uma curva do rio, e a criada seguiu-os.

Tiro sucumbira ao charme de Sísifo, mas amava o pai, Salmoneu, com uma lealdade tal que ultrapassava qualquer outro sentimento. Estava fora de questão deixar crescer os filhos para matarem o avô. Ela sabia como desafiar a profecia do oráculo.

– Vem, filho – disse para o mais velho. – Olha para a corrente. Consegues ver alguns peixinhos?

O pequeno ajoelhou-se junto ao rio e olhou para baixo. Tiro agarrou-o pelo pescoço e empurrou-o. Quando ele parou de se debater, ela fez o mesmo com o mais novo.

– Agora – disse calmamente para a traumatizada criada – vais fazer...

Nessa tarde, Sísifo e Melops apanharam muito peixe. Quando o dia terminava e começavam a arrumar as coisas, a criada de Tiro surgiu, fazendo uma vénia nervosa.

– Perdão, majestade, mas a rainha pergunta se quereis saudar os príncipes. Eles estão na margem do rio, esperando por vossa majestade. Por trás do salgueiro, senhor.

Sísifo encaminhou-se para o local indicado, onde deparou com os dois filhos deitados na relva, pálidos e sem vida.

A criada fugiu para salvar a vida e nunca mais se ouviu falar dela. Quando o enfurecido Sísifo chegou ao palácio com a espada desembainhada, já Tiro estava a salvo a caminho de Elis, o reino do pai. Quando chegou, Salmoneu casou-a com o seu irmão Creteu, com quem foi profundamente infeliz.

Salmoneu, quase tão orgulhoso e vaidoso como o odiado irmão, tinha-se instalado em Elis como uma espécie de deus. Alegando possuir um poder idêntico ao de Zeus para desencadear tempestades, ordenou a construção de uma ponte de bronze sobre a qual gostava de conduzir a sua quadriga a uma velocidade vertiginosa, arrastando cafeteiras, caldeirões e potes de ferro para imitar o som do trovão. Ao mesmo tempo, archotes a arder eram atirados para o céu, para imitar os raios. Zeus apercebeu-se de tão blasfema impertinência e acabou com aquela confusão, lançando um raio verdadeiro. O rei, a quadriga, a ponte de bronze, os utensílios de cozinha, e tudo o mais, explodiram e ficaram em átomos, e a sombra de Salmoneu foi eternamente amaldiçoada e condenada a permanecer nas profundezas mais escuras do Tártaro.

Os trabalhos de Sísifo

Sísifo deu uma grande festa para celebrar a morte do infame irmão fazedor de trovões. Na manhã seguinte, foi acordado por uma delegação de senhores, proprietários e rendeiros lesados. Depois de ter esfregado os olhos para espantar o sono e aliviado a dor de cabeça com uma taça de vinho puro, concordou em inteirar-se do que se trataria.

– Majestade, anda alguém a roubar o nosso gado! Cada um de nós sofreu uma perda. Até as manadas reais também foram roubadas. És um rei sábio e inteligente. Seguramente serás capaz de descobrir quem é o responsável?

Sísifo mandou-os embora com a promessa de investigar. Tinha fortes suspeitas de que o ladrão era o vizinho Autólico, mas como prová-lo? Sísifo era inteligente e astuto, mas Autólico era filho de Hermes, o príncipe dos ladrões e dos canalhas, o deus que ainda bebé roubara o gado de Apolo. De Hermes, Autólico herdara não só a propensão para se apoderar de vacas que não lhe pertenciam, como também poderes de encantamento que tornavam difícil apanhá-lo em flagrante.1 Além disso, o gado subtraído a Sísifo e aos vizinhos era castanho e branco, com cornos generosos, enquanto o de Autólico era preto e branco sem cornos. Era desconcertante, mas Sísifo tinha a certeza de que os feitiços ensinados por Hermes estavam por trás de tudo, e que Autólico, em segredo, mudava a cor às vacas roubadas.

«Muito bem», disse para consigo, «vamos ver o que tem mais força, se a magia barata de um malandro filho bastardo de um deus ou a inteligência e perspicácia inatas de Sísifo, fundador de Corinto, o rei mais astuto do mundo.»

Ordenou que nos cascos de todo o seu gado e dos vizinhos fossem gravadas as palavras «autólico roubou-me» em letra pequenina. Durante as sete noites seguintes, como esperado, o número de animais das manadas continuou a diminuir regularmente. Ao oitavo dia, Sísifo e os principais proprietários foram visitar Autólico.

– Saudações, meus amigos – gritou o vizinho, acenando alegremente. – A que devo a honra desta visita?

– Viemos inspecionar o teu gado – disse Sísifo.

– Claro. Estão a pensar criar animais pretos e brancos? A linhagem da minha manada é única na região, dizem-me.

– Oh, é única, claro – respondeu Sísifo. – Quem alguma vez viu cascos como estes? – E levantou a pata dianteira de uma das vacas.

Autólico inclinou-se, leu as palavras gravadas no casco e encolheu os ombros triunfalmente.

– Ah – disse ele. – Foi engraçado enquanto durou.

– Levem-nos todos – ordenou Sísifo. Enquanto os proprietários tratavam de levar os animais, Sísifo olhou para a casa de Autólico. – Acho que vou levar todas as tuas vacas até à última bezerra –. E com isto referia-se a Anfítea, mulher de Autólico. Sísifo não era um homem bom.2

A águia

O êxito de ter sido mais esperto do que a descendência do rei trapaceiro subiu à cabeça de Sísifo. Começou a acreditar que realmente era o homem mais inteligente e engenhoso do mundo. Assumiu-se como uma espécie de solucionador de problemas da realeza, pronunciando-se sobre todos os assuntos que lhe eram apresentados e cobrando quantias enormes pelos pareceres. Mas há uma diferença entre astúcia e bom senso, esperteza e juízo, perspicácia e sabedoria.

Lembram-se de Asopo? Fora nas águas deste rio beócio que Sémele, sacerdotisa de Tebas, se lavara, chamando a atenção de Zeus e dando à luz Dioniso. Infelizmente, o deus daquele rio tinha uma filha, Egina, suficientemente bela para atrair os olhares de Zeus. Assumindo a forma de águia, o deus fez um voo picado e agarrou a rapariga, levando-a para uma ilha ao largo da costa de Ática. O desesperado deus-rio procurou-a por todo o lado, perguntando a todos com os quais se cruzava se tinham visto algum sinal da sua amada filha.

– Uma jovem vestida com uma pele de cabra, é isso? – questionou Sísifo quando chegou a sua vez de lhe pedirem informações. – Porquê? Sim, vi essa donzela ser agarrada por uma águia, não há muito tempo. Ela estava a tomar banho no rio, quando ele emergiu do sol... E foi a mais...

– Para onde a levou? Viste?

– Essas pulseiras são mesmo de ouro? Admito que são muito bonitas.

– Fica com elas, são tuas. Por piedade, diz-me o que aconteceu a Egina.

– Eu estava no cimo de uma colina, por isso vi tudo. A águia levou-a para... Esse teu anel é de esmeraldas, não é? Obrigado, agora deixa-me ver... Sim, eles sobrevoaram o mar e aterraram ali, naquela ilha. Chega aqui à janela. Estás a ver, lá no horizonte? Creio que chamam Enone à ilha. É ali que os encontrarás. Oh, vais-te embora?

Asopo alugou um barco para ir até à ilha. Não tinha percorrido metade do caminho, quando Zeus o viu aproximar-se e, com o arco, disparou um raio sobre ele. O rebentamento gerou uma onda gigante, que arrastou Asopo e o barco estuário acima e rio adentro.3

Mas Sísifo! Havia algum tempo que Zeus mantinha este canalha debaixo de olho. Não passara despercebido ao deus da xenia que Sísifo tinha um historial de abuso dos convidados que viajavam pelas suas terras. Tributando-os, saqueando-lhes os tesouros, abusando das mulheres, transgredindo despudoradamente cada cânone das leis sagradas da hospitalidade. E agora ousava intervir em assuntos que não eram da sua conta, interferir em assuntos dos seus superiores, contar histórias do próprio rei dos deuses. Era tempo de agir. Algo tinha de ser feito para servir de exemplo a outros. Morte e maldição para ele.

Apesar de Sísifo ter sangue real, a sua vida tinha sido muito perversa, demasiado vergonhosa para, segundo Zeus, merecer a honra de ser conduzido ao submundo por Hermes. Em vez disso, Tanatos, a personificação da morte, foi enviado para o algemar e escoltar.

Enganar a morte

Tanto quanto um espírito tão sombrio era capaz de exprimir uma emoção de contentamento, Tanatos gostava sempre do momento em que se apresentava perante os que estavam marcados para morrer.

Aparecendo perante eles, mas invisível para os demais, esquelético e de negro, libertando gases infernais, esticava o braço para as vítimas com uma lentidão deliberadamente cruel. Quando, com a ponta do dedo descarnado, tocava a carne delas, ouvia-se uma lamúria triste vinda das suas almas. Tanatos adorava observar a pele das vítimas a empalidecer e os olhos a tremer e a vidrar à medida que a vida se extinguia. Acima de tudo, adorava o som do último suspiro exalado pela alma ao abandonar o corpo, pronta a ser algemada e levada dali.

Sísifo, como a maioria dos oportunistas astutos e ambiciosos, tinha o sono leve. A sua mente estava sempre às voltas e o mais pequeno ruído acordava-o. Por isso, até o murmúrio silencioso da morte deslizando pelo seu quarto o fez sentar-se.

– Quem és tu?

– Quem? Eu sou o Inferno. Muahahaha! – Tanatos soltou a gargalhada sinistra e abominável que frequentemente levava os mortais moribundos a gritar loucamente.

– Para de gemer. O que se passa contigo? Estás com dor de dentes? Indigestão? E não fales por enigmas. Qual é o teu nome?

– O meu nome... – Tanatos fez uma pausa. – O meu nome... – Não tenho a noite toda.

– O meu nome é...

– Será que tens mesmo nome?

– Tanatos.

– Oh, então és a morte, não és? Hum. – Sísifo pareceu não ficar impressionado. – Pensei que fosses mais alto.

– Sísifo, filho de Éolo – acentuou Tanatos em entoações contidas. – Rei de Corinto, Senhor de...

– Sim, sim, eu sei quem sou. Tu és o único que parece ter dificuldade em lembrar-se do nome. Senta-te, não queres? Alivia os pés.

– O meu peso não está nos pés. Estou a flutuar.

Sísifo olhou para o chão.

– Ah, pois estás. E vieste à minha procura, não foi?

Pouco confiante em que as suas palavras fossem recebidas com o respeito e o temor que mereciam, Tanatos mostrou as grilhetas a Sísifo e agitou-as ameaçadoramente junto à cara dele.

Pré-publicação de "A Grande História de Troia". O recontar de um mito clássico por um dos mais famosos atores britânicos
Pré-publicação de "A Grande História de Troia". O recontar de um mito clássico por um dos mais famosos atores britânicos
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– Então também trouxeste grilhetas. Ferro?

– Aço. Aço inquebrável. Grilhetas forjadas no fogo de Hefesto, por Estérope, o ciclope. Encantadas pelo meu senhor Hades. Quem elas prenderem só pode ser libertado pelo próprio deus.

– Impressionante – reconheceu Sísifo. – Mas, com base na minha experiência, nada é inquebrável. Além do mais, nem sequer têm um cadeado ou um fecho.

– O ferrolho e a mola estão demasiado bem disfarçados para poderem ser vistos pelos olhos dos mortais.

– Dizes tu. Não acredito de forma alguma que funcionem. Aposto que não as consegues fechar sequer em volta do teu braço tão fininho. Vá, experimenta.

Não era suportável tal ridicularização das suas valiosas grilhetas.

– Homem tonto – gritou Tanatos. – Dispositivos tão complicados como este estão além da compreensão de um mortal. Vê aqui! Passam uma vez pelas minhas costas e depois pela frente. Fácil. Uno os pulsos e depois fecho as argolas. E se tiveres a amabilidade de carregar aqui, para acionar o fecho, há uma placa invisível e... vê!

– Sim, vejo – disse Sísifo, pensativamente. – Vejo. Estava enganado, muito enganado. Que trabalho soberbo!

– Oh!

Tanatos tentou mover as grilhetas, mas a parte superior do seu corpo estava agora limitada e imóvel.

– Aaaa... socorro!

Sísifo pulou da cama e abriu a porta de um armário enorme, no extremo do quarto. Era agora facílimo despachar o flutuante Tanatos, solidamente amarrado, pelo quarto fora. Com um empurrão, tinha entrado e batido com o nariz no fundo do armário.

Fechando-o à chave, Sísifo berrou-lhe alegremente.

– A fechadura deste armário pode ser barata e feita pelos homens, mas posso garantir-te que funciona tão bem como quaisquer grilhetas forjadas no fogo de Hefesto.

Ouviam-se gritos de desespero abafados, implorando a libertação, mas, com um grande «Muahahaha», Sísifo escapuliu-se, surdo às súplicas da morte.

Vida sem morte

Os primeiros dias de prisão de Tanatos passaram sem incidentes. Nem Zeus, nem Hermes, nem o próprio Hades pensaram confirmar se Sísifo dera entrada nas regiões infernais como estava determinado. Mas quando passou uma semana inteira sem que chegasse nenhuma nova alma morta, os espíritos e os demónios do submundo começaram a murmurar. Decorreu outra semana e alma alguma entrara para encaminhamento, salvo a de uma venerável sacerdotisa de Artemisa, cuja vida irrepreensível mereceu a honra de ser escoltada por Hermes, o psicopompo, até ao Elísio. Esta interrupção súbita do fluxo de almas intrigou os habitantes do Hades, até alguém lembrar que não viam Tanatos havia dias. Foram enviados grupos de busca, mas ninguém encontrou a morte. Nunca tal tinha acontecido. Sem Tanatos, todo o sistema se desmoronou.

No Olimpo, as opiniões estavam divididas. Dioniso achou a situação hilariante e fez um brinde ao fim da cirrose letal do fígado. Apolo, Artemisa e Poseidon eram mais ou menos neutros sobre o assunto. Deméter temia que a autoridade de Perséfone como rainha do submundo estivesse a ser ignorada. As estações sobre as quais mãe e filha tinham domínio implicavam que a vida terminasse e começasse num ciclo ininterrupto, algo que apenas estava ao alcance da morte. A inconveniência de tal escândalo indignou Hera, o que, por sua vez, inquietou Zeus. O habitualmente feliz e irreprimível Hermes estava também ansioso, tanto mais que o normal funcionamento do submundo era parcialmente da sua responsabilidade.

Mas foi Ares que achou a situação intolerável. Sentiu-se ultrajado. Olhou para baixo e viu que no reino humano as batalhas eram travadas com a crueldade habitual, mas sem provocar mortos. Os guerreiros eram trespassados com zagaias, pisados por cavalos, estripados pelas rodas das quadrigas e decapitados com espadas, mas não morriam. Parecia um combate fingido. Se os soldados e os civis não morriam, a guerra não fazia sentido. Não resolvia nada. Não levava a lado nenhum. Ninguém venceria.

As divindades menores estavam tão divididas sobre o tema quanto os habitantes do Olimpo. As queres continuavam a beber o sangue dos que caíam em combate, não se interessando minimamente pelo que acontecia às suas almas. Duas das horai, Dice e Eunómia, concordaram com Deméter que a ausência de morte afetava a ordem natural das coisas. A sua irmã Irene, a deusa da paz, mal conseguia conter a satisfação. Se a ausência da morte significava a ausência da guerra, teria então chegado a sua vez?

Ares preocupou os pais, Hera e Zeus, com tal insistência, até eles não suportarem mais. Determinaram que Tanatos tinha de ser encontrado. Hera exigiu saber quando é que ele fora visto pela última vez.

– Com certeza, Hermes – disse Zeus –, não foi assim há tanto tempo que o mandaste buscar a alma de Sísifo, aquele vilão de coração negro?

– Irra! – Hermes bateu na coxa, irritado. – Claro! Sísifo. Enviámos Tanatos para o prender e levá-lo até ao Hades. Espera aqui.

As asas nos calcanhares de Hermes esvoaçaram, tremeram, zumbiram e lá foi ele.

Regressou num abrir e fechar de olhos.

– Sísifo nunca chegou ao submundo. Há meia lua, Tanatos foi enviado a Corinto para o ir buscar e, desde então, não foram vistos.

– Corinto! – urrou Ares. – De que estamos à espera?

O armário fechado no quarto foi rapidamente encontrado e arrombado, deixando ver um humilhado Tanatos sentado a chorar no canto, debaixo de uns mantos. Hermes levou-o para as regiões infernais, onde Hades agitou a mão para abrir as grilhetas encantadas.

– Mais tarde falaremos sobre isto, Tanatos – disse ele. – Por agora, espera-te um engarrafamento de almas.

– Senhor, primeiro deixa-me apanhar Sísifo, esse vilão – implorou Tanatos. – Não vai conseguir enganar-me duas vezes.

Hermes arqueou uma sobrancelha, mas Hades olhou para Perséfone, sentada no seu trono próximo do dele. Ela acenou com a cabeça. Tanatos era o favorito dos seus servos do submundo.

– Vê lá, agora não estragues tudo – grunhiu Hades, despachando-o com um gesto de mão.

Rituais fúnebres

Já percebemos que Sísifo não era tolo. Não imaginou nem por um segundo que Tanatos ficaria fechado no armário eternamente. Mais cedo ou mais tarde, a morte seria libertada e retomaria o seu caminho.

Na casa onde se instalou temporariamente, Sísifo falou à mulher. Depois de a sobrinha Tiro ter afogado os filhos e de o ter deixado, ele voltara a casar-se. A jovem rainha era tão gentil e obediente quanto Tiro tinha sido voluntariosa e teimosa.

– Minha querida – disse ele, cingindo-a. – Sinto que em breve morrerei. Quando der o último suspiro e a minha alma tiver partido, que farás?

– O que tiver de ser feito, meu senhor. Lavar-te-ei e ungir-te-ei. Colocarei um óbolo na tua língua para que possas pagar ao barqueiro. Guardaremos o teu catafalco durante sete dias e sete noites. Queimaremos oferendas para agradar ao rei e à rainha do submundo. E, desta maneira, a tua jornada até aos Prados de Asfódelos será abençoada.

– Dizes bem, mas isso é o que não deves fazer – disse Sísifo. – Assim que eu morrer, quero que me dispas e que me atirem para a rua.

– Meu senhor!

– Falo a sério. Mortalmente a sério. Este é o meu desejo, o meu pedido, a minha ordem. Independentemente do que os demais possam dizer, não rezarás, não farás sacrifícios, nem exéquias. Trata os meus restos mortais como se fossem os de um cão. Promete-me isso.

– Mas...

Sísifo agarrou-a pelos ombros e olhou-a bem fundo nos olhos para reforçar a seriedade das suas ordens.

– Amas-me, estás ligada a mim, e como esperas nunca ser atormentada pela minha sombra zangada, promete-me que irás fazer exatamente o que te disse. Jura pela tua alma.

– Eu... eu juro.

– Boa! Vamos beber. Um brinde... à vida.

A escolha do momento foi excelente, como sempre, já que nessa noite Sísifo foi acordado pelo murmúrio da morte à cabeceira.

– Chegou a tua hora, Sísifo de Corinto.

A Grande História dos Mitos Gregos
créditos: Clube do Autor

Livro: "A Grande História dos Mitos Gregos"

Autor: Stephen Fry

Editora: Clube do Autor

Publicação: 1 de março

Preço: € 17,96

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– Ah, Tanatos. Tenho estado à tua espera.

– Não contes enganar-me.

– Eu? Enganar-te? – Sísifo levantou-se e permaneceu numa posição de submissão, oferecendo os pulsos às algemas. – Nada podia estar mais longe da minha mente.

As grilhetas foram colocadas e ambos deslizaram para a entrada do submundo. Tanatos deixou Sísifo junto à margem mais próxima do Estige e foi-se embora, ansioso por prosseguir com a recolha das muitas almas que aguardavam.

Caronte, o barqueiro, aproximou o barco e Sísifo entrou. Quando o barco se afastava da margem, Caronte esticou a palma da mão.

– Nada feito – disse Sísifo, batendo nos bolsos.

Sem uma palavra, Caronte empurrou-o borda fora para a escuridão do Estige. Estava frio, abominavelmente frio, mas Sísifo conseguiu fazer a travessia. As águas queimaram e empolaram-lhe a pele para lá do suportável, mas logo que chegasse ao outro lado, sabia que o seu estado suscitaria uma visão tão lastimável quanto pretendia.

Sombras esvoaçavam sobre ele, desviando o olhar.

– Qual o caminho para a sala do trono? – perguntou a uma delas. Seguindo as suas orientações, viu-se na presença de Perséfone.

– Venerável rainha – disse Sísifo, inclinando a cabeça. – Imploro uma audiência com Hades.

– Hoje, o meu marido está no Tártaro. Falo por ele. Quem és tu e como te atreves a vir à minha presença em tal estado?

Sísifo estava nu, uma das orelhas fora arrancada e um dos olhos pendia da órbita. O seu corpo espectral estava coberto com marcas de dentadas, vergões, hematomas, cortes e feridas abertas, testemunhas do tratamento físico cruel por parte dos conterrâneos nas ruas de Corinto. A mulher obedecera às suas instruções.

– Senhora – inclinou-se ante Perséfone –, ninguém sente a indecência disto tão profundamente quanto eu. A minha mulher, maldosa, perversa, monstruosa e blasfema... foi ela que me pôs neste estado lamentável. Mesmo a morrer, ouvi-a dizer a outras mulheres: «Não desperdiçaremos ouro em rituais fúnebres. Os deuses do submundo não nos dizem nada. Atirem o corpo dele aos cães para o comerem. Gastem o dinheiro que ele poupou para o funeral numa grande festa. As bezerras que ele guardou para sacrificar a Hades e a Perséfone serão assadas para nosso deleite.» Depois riu-se e bateu palmas, e esses, venerável rainha, foram os últimos sons que ouvi no mundo.

Perséfone estava indignada.

– Ela atreveu-se? Ela atreveu-se? Será castigada.

– Sim, majestade. Mas como?

– Esfolada viva...

– Sim, nada mau. Mas, permite-me dizer – Sísifo sorriu a pensar na ideia que tivera –, não seria divertido se me devolvesses vivo ao mundo superior? Imagina a surpresa dela!

– Hum...

– Eu obrigá-la-ia todos os dias a pagar pela insolência e pelo desrespeito. Nada de ouro ou festas, apenas tratamento cruel, insultos e servidão. Mal posso esperar para ver a cara dela quando lhe aparecer à frente, vivo, bem e inteiro... e talvez... talvez mais jovem, vital e belo do que nunca? Ela tem apenas vinte e seis anos, mas imagina o seu tormento se eu lhe sobrevivesse! Usá-la-ia como escrava. Todos os dias seriam de tortura para ela.

Perséfone sorriu da ideia e bateu as palmas.

– Que assim seja.

Os anos passados no submundo tinham dado a Perséfone um orgulho régio e uma crença firme no bom funcionamento do reino do inferno.

E assim Sísifo foi conduzido ao mundo superior, onde ele e a sua encantada rainha viveram felizes para sempre.

A sua morte, quando finalmente aconteceu, é outro assunto.

Rolando a pedra

Zeus, Ares, Hermes e Hades não ficaram satisfeitos quando descobriram que Sísifo escapara à morte pela segunda vez. Perséfone tinha, no entanto, tomado a sua decisão, e a decisão de um imortal não podia ser anulada por outro.

Quando, após quase cinquenta anos de uma vida próspera e serena, a mulher de Sísifo por fim morreu, o contrato entre ele e Perséfone terminou. Tanatos fez-lhe uma terceira e última visita.

Desta vez, Sísifo pagou a portagem a Caronte e atravessou o Estige sem problemas. Hermes aguardava-o na outra margem.

– Bem, bem, bem. Rei Sísifo de Corinto. Mentiroso, trapaceiro, velhaco e vigarista. Um homem do meu coração. Mortal algum foi capaz de enganar a morte, mas tu conseguiste-o duas vezes. És esperto.

Sísifo inclinou-se.

– Tal feito merece uma oportunidade de imortalidade. Segue-me. Hermes conduziu Sísifo para as profundezas através de incontáveis

corredores e galerias, até uma ampla câmara subterrânea. Uma rampa enorme inclinava-se do chão ao teto. Na base estava uma grande pedra, iluminada por um raio de luz.

– O mundo superior – disse Hermes, indicando a fonte da luz. Sísifo observou que a rampa conduzia a uma entrada quadrada no teto, através da qual brilhava um raio de luz. Quando Hermes apontou, a entrada fechou-se e o raio de luz desapareceu.

– Agora, tudo o que tens a fazer é empurrar aquela pedra rampa acima. Quando chegares ao topo, abre-se o buraco. Conseguirás sair e viver para sempre como o imortal rei Sísifo. Tanatos nunca mais te visitará.

– É só isso?

– É só – disse Hermes. – Claro que se a ideia não te agradar, posso conduzir-te ao Elísio, onde gozarás uma bem-aventurança eterna na companhia de outras almas de virtuosos defuntos. Mas se escolheres a pedra, tens de continuar a tentar até conseguires conquistar a tua liberdade e imortalidade. Faz a tua escolha. Uma existência idílica após a morte aqui, ou uma oportunidade de imortalidade à superfície.

Sísifo examinou a pedra. Era volumosa, mas não colossalmente. A rampa era íngreme, mas não acentuada. Quarenta e cinco graus de inclinação, não mais. Portanto, uma eternidade pulando pelos campos do Elísio com os enfadonhos e bem-comportados ou a eternidade à superfície no mundo real, com diversão, sujeira, pândega e frenesim?

– Sem artimanhas?

– Sem artimanhas, sem pressão – disse Hermes, pousando a mão no ombro de Sísifo e exibindo o seu sorriso mais deslumbrante. – A escolha é tua.

Conhecemos o resto. Sísifo encostou o ombro à pedra e começou a empurrá-la rampa acima. A meio caminho, confiava que a vida eterna estaria garantida. Três quartos percorridos, sentia-se cansado, mas não arrumado. Quatro quintos e... irra, era um trabalho muito difícil. Cinco sextos, dor. Seis sétimos, agonia. Sete oitavos... estava a centímetros do topo, à distância de uma unha negra, apenas mais um grande esforço e... Nãoooooo! A pedra escorregou, fez ricochete em cima de Sísifo e rolou até ao fundo. «Bom, nada mau para um primeiro esforço», pensou Sísifo. «Ao meu ritmo, se conservar a força, consigo lá chegar. Sei que consigo. Descobrirei a técnica. Talvez suba às arrecuas, com a pedra às costas. Consigo fazê-lo...»

Sísifo lá continua nos salões do Tártaro, empurrando a pedra rampa acima e quase chegando ao topo antes de ela rolar para baixo e ele ter de começar de novo. Ali ficará até ao fim dos tempos. Acredita ainda que conseguirá. Apenas um último esforço supremo e conquistará a liberdade.

Pintores, poetas e filósofos interpretaram de muitas formas este mito de Sísifo. Viram nele uma imagem do absurdo da vida humana, a futilidade do esforço, a crueldade impiedosa do destino, a inconquistável força da gravidade. Mas observaram também algo da coragem, resiliência, força, tenacidade e autoconfiança dos humanos. Veem algo de heroico na nossa recusa de submissão.

Notas

  1. O artista desavergonhado, carteirista, trapaceiro, «aproveitador de ninharias sem importância» que surge na obra de Shakespeare O Conto de Inverno tem o nome de Autolycus. (N. do A.)
  2. Esta violação de Anfítea deu origem ao boato de que Sísifo era o verdadeiro pai de anticleia, filha de Autólico. Anticleia gerou laertes e Laertes gerou o grande herói odisseu, também conhecido como Ulisses, célebre sobretudo pela sua astúcia e recursos. (N. do A.)

  3. Asopo estava encarregado de, pelo menos, dois rios. Um na Beócia, que abastecia Tebas, e este, que atravessava Corinto. (N. do A.)