Prefácio 

A história da Sena Sugar Estates contada por Paul Lapperre estende-se por mais de 100 anos, tendo o autor feito um esforço considerável para atingir um resultado com maior equilíbrio do que investigadores anteriores, como Vail e White (1980) no seu Capitalism and Colonialism in Mozambique: A study of the Quelimane District; Ishemo (1995) em The Lower Zambezi Basin in Mozambique: A study in economy and society, 1850-1920; e Judith Head (1980) na sua tese de doutoramento State, capital and migrant labour in Zambezia, Mozambique: A study of the labour force of the Sena Sugar Estates Limited. Todos eles pintaram um quadro bastante unilateral, que culminou numa aura de «notoriedade» em torno da Sena Sugar Estates. 

Doce Amargura coloca alguns dos aspectos totalmente inaceitáveis desta história no seu contexto. Qualquer exploração de açúcar em África que tenha existido por quase um século tem um percurso com lados mais sombrios e outros mais brilhantes. Para a Sena Sugar Estates, o lado sombrio era, sem dúvida, o «dilema do trabalho barato» e todas as questões raciais que lhe estavam ligadas. 

No lado positivo, esteve a peculiar «mentalidade de fronteira» do meu bisavô, ao construir um Império do Açúcar num canto remoto do mato africano a partir de 1890. Pitt Hornung morreu em 1940 e o testemunho foi passado ao meu avô, Bernard Hornung, e ao meu tio-avô, George Hornung. O terceiro irmão, mais novo, John Peter Hornung, tombou na Primeira Guerra Mundial.

Em fevereiro recebemos Rita da Nova e Joana Silva

Rita da Nova e Joana da Silva são as convidadas do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 24 de fevereiro, pelas 21h.

Iremos conversar a obra de Elena Ferrante e mais concretamente sobre "A Filha Obscura", novela integrada em "Crónicas de Mal de Amor", livro editado em 2014 pela Relógio d'Água. A conversa surge também no âmbito da adaptação desta história ao cinema, com o nome de "A Filha Perdida".

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

Na década de 1960, o meu tio, John Derek Hornung, transformou, com uma eficiência e rapidez incríveis, aquilo que era uma clássica plantação colonial de trabalho forçado numa empresa moderna e mecanizada.

Coube ao meu pai, Stephen Hornung, a ingrata tarefa de supervisionar, quase impotente, o colapso do próspero império do açúcar quando a independência de Moçambique chegou, em 1975. Discutir com ideologias marxistas-leninistas em questões de produção industrial era absolutamente impossível e a Sena Sugar Estates estava condenada. A guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO fez o resto. 

Milhares de pessoas qualificadas e dezenas de milhares de africanos foram privados de ganhar a vida. Doce Amargura é a história de um grande empreendimento e do seu distinto fundador, J. P. Hornung. Um industrial pioneiro, ousado, e por vezes implacável, na África Oriental Portuguesa. 

Seria um erro sugerir e atribuir culpas pelo colapso da Sena Sugar Estates Limited. Na reabilitação da que outrora foi a Pérola da Zambézia, devemos usar as lições do passado para garantir que os mesmos erros não se repitam. 

Bernard Hornung
The Warren
Bashurst Hill
Horsham, West Sussex

Doce Amargura
créditos: Casa das Letras

Nasce um livro 

Diário de viagem da travessia de África em 2006, Paul & Meta Lapperre, p. 86
16 de Agosto de 2006

Fazemos os 15 km de Caoxe ao Luabo em pouco mais de uma hora. Quando saímos do caminho de terra, o carro perde velocidade na relva alta e finalmente pára em frente à ruína daquela que já foi a nossa residência colonial. Ninguém fala. Olhamos para as paredes sem telhado. Através das portas da sala de jantar, uma granada-foguete deve ter entrado e rebentado com a maior parte da parede e da varanda. A majestosa figueira africana do jardim da frente foi vítima de um machado. Nenhum de nós se atreve a quebrar o silêncio. Estávamos preparados, claro, mas não a este ponto. Na picada de lama entre Mopeia e Caoxe, vimos as primeiras casas bombardeadas, e quando entrámos no Luabo, um pouco mais tarde, as ruínas dos correios e do complexo fabril. Mas não esta, a nossa antiga casa! Ficamos sentados durante algum tempo, desanimados, depois o Paul sai do carro e sobe lentamente até ao buraco que já foi a porta da frente. [Fotografia: R. Lapperre] 

As entradas originais do diário de viagem da Meta são a lápis, esborratadas. Isso condiz de alguma forma com o choque e o desânimo que sentimos quando chegámos à plantação abandonada de cana-de-açúcar da Sena Sugar Estates Ltd. (SSE) no Luabo, Moçambique, no final da tarde de 16 de Agosto de 2006. Passaram-se 41 anos desde que lá chegámos pela primeira vez e 32 anos desde que partimos, na véspera das desastrosas primeiras décadas da independência de Moçambique. É mais do que apropriado começar o breve relato do nascimento deste livro no sítio onde tudo começou para mim — no Luabo. 

O sol está quase a pôr-se quando as rodas do pequeno avião batem na relva. Depois de o piloto travar e curvar no final da faixa, o motor faz um breve rugido. Em seguida, começa a rolar lentamente em direcção ao terminal, um pequeno barracão caiado de branco com um telhado de ferro ondulado corroído pelo tempo e coberto por uma buganvília roxa. Cheguei a Luabo, sede da SSE na África Oriental Portuguesa. Estamos em 22 de Novembro de 1965, três meses depois de me casar e três semanas antes do meu 23.º aniversário. Um africano num Land Rover verde-desbotado leva-me à casa de hóspedes e eu vejo o Rio Zambeze, quase escondido atrás de grandes árvores da borracha e casuarinas. Depois de beber um copo de refresco tirado de um velho frigorífico, desfaço as malas e encontro um lugar para a minha máquina de escrever portátil e os meus livros. Mais tarde, nessa noite, sentado sozinho na varanda a olhar para as miríades de estrelas, os meus pensamentos vagueiam por Amesterdão, onde a Meta termina os seus últimos estágios, e pela análise do solo, que devo começar em breve. Graduei-me em Ciências do Solo Tropical há apenas quatro meses e agora sou um homem temporariamente só, num fim de mundo qualquer da África Oriental. De repente, acuso a tensão de dois dias de viagem e cedo ao cansaço. Nem nos meus sonhos mais loucos poderia imaginar que esta noite seria o início de uma relação íntima e para toda a vida com a África Subsaariana.

Na posse do tão cobiçado diploma em Medicina, Meta junta-se finalmente a mim no Verão de 1966. Ela transforma o pequeno e espartano bangalô numa casa e consegue entender-se com os dois criados e o jardineiro. O nosso primeiro filho nasce em Março de 1967. Ocupamo-nos do bebé e evitamos os aspectos mais entediantes e arcaicos da vida colonial. À noite, pomos a leitura em dia e ouvimos discos. Planifico um laboratório agrícola, supervisiono a sua construção e começo a formar vários técnicos. O levantamento do solo da concessão da SSE na margem norte do Zambeze está concluído em meados de 1968, e eu decido candidatar-me a uma pós-graduação no Centro Internacional de Formação para o Levantamento Aéreo e Ciências da Terra (ITC) em Delft, na Holanda. 

De volta aos Países Baixos, Meta começa a praticar medicina, permitindo-me focar nos meus estudos de mestrado. No Outono de 1969, o nosso segundo filho nasce, e no início de 1970 volto ao Luabo para investigar o papel dos montes de térmitas como elemento na interpretação de fotografias aéreas. Acompanhado por uma pequena tripulação africana, viajo por grandes zonas do remoto Delta do Zambeze, a pé e de barco. O meu criado, Muluga, torna-se num sócio e num amigo. Através dele, ganho conhecimento em primeira mão das pequenas comunidades africanas do Delta, da flora abundante e da exuberante vida selvagem. A escrita da minha tese é feita na Holanda e não demoramos muito a decidir voltar ao Luabo para uma segunda temporada. 

No início da Primavera de 1971, voltamos a aterrar na pequena pista ao longo do Zambeze. A minha nomeação como agrónomo-chefe põe fim à nossa vida isolada. Do bangalô, mudamo-nos para uma mansão colonial com um jardim bem implantado e uma equipa africana de seis pessoas, incluindo o respeitável Banna, como mordomo, e Chal, o cozinheiro corpulento. Tanto ler como ouvir música clássica tornam-se, na melhor das hipóteses, num luxo de fim-de-semana. Em Novembro de 1972, nasce uma filha, enquanto estou a inspeccionar uma área na margem sul do Zambeze. Com a minha equipa de investigação africana, passo grande parte do tempo num acampamento remoto na margem de um afluente do Zambeze, o Rio Cuncue. Aqui, ao final da tarde, enquanto o cozinheiro prepara o jantar, vejo as majestosas palancas-negras e fico fascinado a olhar para o «meu» leopardo e as suas duas crias a beberem no rio. Por esta altura, África tornou-se no lar e os Países Baixos desapareceram para a periferia dos nossos pensamentos. 

A realidade política alcança-nos na noite de 25 de Abril de 1974, quando, como de costume, nos sentamos no escritório a ouvir o Serviço Mundial da BBC. Depois de ouvirmos o habitual This is London, ficamos a saber que, ao início do dia, unidades do Movimento das Forças Armadas em Portugal tomaram posição em Lisboa e apanharam desprevenida a ditadura de Caetano. A Revolução dos Cravos está em marcha e não temos dúvidas de que a independência de Moçambique se seguirá. No dia 27 de Julho, o General António de Spínola, Presidente interino de Portugal, de ar austero e monóculo, confirma-o numa declaração sobre a transferência de poderes em África. 

Nas semanas seguintes, as tensões aumentam, e quando os combatentes da FRELIMO se infiltram no Delta, vindos do Norte, provocam a primeira agitação laboral grave na história da SSE. No dia 2 de Setembro de 1974, de madrugada, trabalhadores excitados, brandindo bastões e facões de corte, incendeiam algumas das lojas indianas do Luabo e depois reúnem-se em frente à Sede. Os nossos dois polícias portugueses perdem a calma e abrem fogo. Quando eles são dominados, três de nós, que estavam no escritório central, barricam a sala de rádio. O nosso May Day... May Day é escutado pela guarnição de Quelimane, a cerca de 80 quilómetros de distância. Três quartos de hora depois, um avião ligeiro deixa cair meia dúzia de pára-quedistas. Dispersam a multidão e restauram alguma ordem sem mais derramamento de sangue. Tornamo-nos numa comunidade cercada. Os portugueses criam uma força de defesa civil, a maioria das pessoas vai trabalhar armada e depois de escurecer ficamos dentro de casa. Rumores arrepiantes de atrocidades cometidas pelas Forças Armadas Portuguesas e pela FRELIMO aumentam o sentimento de insegurança. 

No dia em que os combatentes da FRELIMO, empunhando orgulhosamente as suas espingardas de assalto AK47 e lança-granadas RPG, marcham para o Luabo, a nossa vida, surpreendentemente, volta ao normal. Recebemos de soldados adolescentes as nossas primeiras lições obrigatórias de marxismo-leninismo e lemos no Diário de Moçambique que Samora Machel será o primeiro Presidente de um Moçambique livre. Damos a Machel e à FRELIMO o benefício da dúvida, mas a nossa decisão de deixar Moçambique e ir para o Quénia continua de pé. Em Novembro de 1974, fugimos do Luabo. Em 25 de Junho de 1975, a África Oriental Portuguesa, após quase 400 anos de domínio colonial, passa a ser a República de Moçambique. Querendo evitar mandar os nossos filhos para um colégio interno, também deixamos o Quénia no final de 1976 e regressamos à Holanda. 

A Meta consegue um emprego no Serviço Provincial de Saúde, e eu entro para a Universidade de Tecnologia de Eindhoven (TU/e) como chefe do Gabinete de Cooperação para o Desenvolvimento. No espaço de um ano, faço parte do circo de ajuda ao desenvolvimento e passo grande parte do meu tempo em aviões e em salas de hotel e conferências em África. Um dos mal-afamados Lords of Poverty de Hancock (1). Em 1986, fui nomeado director do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais e desenvolvi, em colaboração, um programa de mestrado em tecnologia para países do Terceiro Mundo. Durante o último ano do programa, os estudantes passam seis meses em trabalho de investigação na Tanzânia, e, em 2001, reunimos os resultados mais emocionantes da investigação no livro The Industrial Experience of Tanzania. Só no final da década de 1980 tenho mais tempo para a minha pesquisa, e defendo a minha tese de doutoramento em 1992. Um ano depois, sou nomeado professor associado. A investigação e o ensino permanecem no centro da minha vida profissional até a Meta e eu nos aposentarmos, em 2005. 

A ideia de revisitar os lugares onde vivemos e trabalhámos em África, incluindo o Luabo, nasce pouco depois da nossa reforma, quando é diagnosticado a Meta um linfoma não-Hodgkin. Ao apercebemo-nos de que o tempo que nos resta se reduzirá a um ou dois anos, decidimos ir de novo para África. Em primeiro lugar, porém, a quimioterapia cobra o seu preço, e só em Junho de 2006 iremos conduzir o nosso Land Rover série III de 1972 a partir de um contentor nas docas da Cidade do Cabo, rumo a norte. Demoraremos sete meses e pouco mais de 34.000 quilómetros até regressarmos à nossa casa na Holanda. Nessa altura, Meta está mais uma vez gravemente doente e preparamo-nos para o inevitável. Acontece que ela sobrevive a outra quimioterapia e o cancro regride. O livro sobre a nossa viagem de carro em África — The Eye shields the Heart: A diary of a life-long journey through Africa — é editado em 2010. 

Em casa, na Holanda, o Luabo continua a assombrar-me. Quando cheguei ao Luabo, em 1965, a propriedade era uma ilha industrial moderna e próspera num canto remoto do mato africano. Cerca de 70.000 pessoas dependiam da SSE para a sua vida, e os impostos pagos pela empresa eram uma fonte vital de rendimento para o Governo português. A SSE fornecia água canalizada e electricidade às pessoas nas propriedades de Luabo e Marromeu e construiu casas modernas, hospitais e escolas. Não passava uma semana sem haver pessoas de todo o mundo a visitar as fábricas e os campos. Revistas científicas internacionais publicavam resultados de investigações de pessoal da SSE. Dezenas de milhões de libras (GBP) foram investidas em infra-estruturas, edifícios, material circulante, máquinas e, finalmente, pessoas.

Doce Amargura
créditos: Casa das Letras

Livro: Doce Amargura: Vida e morte do império açucareiro Hornung na Zambézia (1888–1988)

Autor: Paul Lapperre

Editora: Casa das Letras

Preço: € 19,71

Quando regresso ao Luabo, em Agosto de 2006, encontro um cemitério industrial e uma aldeia-fantasma: um complexo de fábricas enferrujadas, um enorme derrame de óleo de tanques degradados, oficinas cobertas pela vegetação, ruínas residenciais e 7000 hectares de terra de cana-de-açúcar reconquistados pela floresta de acácias. Os vapores do rio e os guindastes do porto caíram em desuso. Os carris do comboio foram arrancados das travessas. Os canais de irrigação foram assoreados. As torres de 30 estações de bombagem destacam-se contra o céu azul brilhante como artefactos de um mundo esquecido. Praticamente todos os habitantes abandonaram a área. «A Pérola da Zambézia», como o Luabo era outrora chamado, já não existe. 

Porque voltaram as plantações de cana-de-açúcar da SSE a ser mato? Os ataques da RENAMO de 1984 a 1986 às propriedades são, naturalmente, o golpe mortal, mas, poucos anos depois da independência, a produção de açúcar já baixara para menos de metade da de 1974. Resultará o declínio dramático da produção, como afirma repetidamente o Governo da FRELIMO, de uma «sabotagem económica premeditada»? Ou será o ataque contínuo do Governo à SSE um mero encobrimento da sua incompetência técnica e de gestão? Falando com os antigos trabalhadores da SSE em 2006, os lados negros da vida na plantação — salários baixos, habitação inadequada, pobreza e segregação racial de facto — são bem recordados e ferozmente condenados. Não há ninguém que não me pergunte, no entanto, se a propriedade do Luabo irá ser reabilitada. O que eles querem na verdade saber é: «vão reconstruir as nossas casas?», «vamos ter água corrente e electricidade a funcionar outra vez?», «haverá de novo um hospital e um médico?», «voltaremos a ter salários regulares?». 

Começo a ler e a redescobrir relatórios e artigos de um género que quase tinha esquecido. Após as independências, nas décadas de 1960 e 1970, os cientistas sociais, particularmente os da Europa e da América do Norte, lançaram-se sobre os jovens estados africanos como gafanhotos num viveiro de cana-de-açúcar. Muitos deles apoiaram os movimentos de libertação quando eram estudantes e têm uma forte motivação política. Os seus relatórios, artigos e teses possuem duas coisas em comum: o colonialismo e o capitalismo são identificados como dois lados da mesma moeda e descontroladamente vilipendiados; e o socialismo africano, seja de que marca for, é visto como o alvorecer de uma era de felicidade e prosperidade duradouras. Em 1974, a Sena Sugar Estates ainda é referida como uma «próspera indústria agrícola moderna». Em 1984, tornou-se na «tristemente célebre Sena Sugar Estates». 

No final da década de 1980, o paradigma muda mais uma vez quando os Governos conservadores chegam ao poder em muitos países ocidentais. A crescente ênfase nas políticas de mercado livre e o desempenho desastroso de muitas economias em África conduzem a um apelo ao desmantelamento da propriedade pública, do planeamento central e da regulamentação governamental das actividades económicas. Com os votos decisivos das nações industrializadas nas duas mais poderosas agências financeiras mundiais — Banco Mundial e FMI —, as políticas de ajustamento estrutural em África tornam-se numa nova realidade. Até a elite da FRELIMO muda de cor e começa a abraçar o capitalismo. Talvez não como uma filosofia de desenvolvimento de que se orgulhe, mas, certamente, como um sistema económico de que se pode lucrar em privado. 

No final da década de 1990, o capitalismo tal como John Kenneth Galbraith o tinha tipificado — «Um Deus zangado pode ter dotado o capitalismo com contradições inerentes. Mas ao menos, pensando melhor, teve a gentileza de tornar a reforma social surpreendentemente coerente com o melhor funcionamento do sistema» — foi substituído pela variante que impõe o «corte de gorduras». O capitalista paternalista, que lutou para encontrar um equilíbrio difícil entre os interesses a curto prazo dos seus accionistas gananciosos, os benefícios a longo prazo da sua empresa e o bem-estar dos seus empregados, torna-se prisioneiro dos seus accionistas. Cada vez mais, a habitação fornecida pelas empresas, o apoio à educação, os cuidados médicos e as pensões dos trabalhadores transformam-se em extravagâncias das quais os gestores executivos se querem livrar. Moçambique segue a tendência global e o seu líder, Armando Guebuza (sucedido por Filipe Nyusi em 2014), torna-se num empresário rico, aplicando princípios de gestão «sem gorduras» ao seu empório de construção, pesca e exportação. 

As mudanças de paradigma social e económico ao longo do tempo intrigam-me, e pergunto-me se poderão ser o pano de fundo de um livro sobre a história da SSE. Procuro publicações recentes e antigas e descubro que nada de real importância sobre a SSE foi dado à estampa nos últimos 25 anos. Em seguida, pergunto-me o que aconteceu aos arquivos da SSE e dos Hornungs. Esta busca demora algum tempo. Ao que parece, os arquivos da família Hornung e alguns dos registos do escritório de Londres da SSE foram entregues pela família ao West Sussex Record Office (WSRO), em Chichester, no início de 2009. Relatórios e Contas da SSE para o período 1947-1974 acabaram na biblioteca da Universidade de York. A maioria dos arquivos da SSE moçambicana foi parar à Universidade Eduardo Mondlane, Faculdade de Letras e Ciências Sociais, em Maputo, mas alguns foram para o Instituto de História da Expansão Ultramarina da Universidade de Coimbra, em Portugal. O Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, tem uma valiosa colecção de fotografias da SSE, algumas ainda do século XIX

Tentando desenterrar documentos e fotografias antigos e obter testemunhos oculares dos últimos anos da SSE, publico mensagens na Internet. Espero entrar em contacto com famílias que viviam no Luabo e Marromeu. A resposta, principalmente dos luso-falantes, é esmagadora. Muitas famílias viveram duas ou três gerações nas propriedades, e eu não só ganho novos amigos como também recebo material fotográfico e informação valiosos. Sem dúvida, o documento mais importante vem de São Pata, filha de Manuel Luís Pata, outrora capitão dos vapores da SSE Zambeze. O livro do seu pai, Recordações de Moçambique: com o Zambeze no coração, é um relato comovente da sua vida pessoal e profissional no poderoso Rio Zambeze. 

No Verão de 2010, convidamos Peter Du Boulay († 2017) e a sua mulher, Jenny, para a nossa casa nas margens do Lago Oanob, na Namíbia Central. Peter era bisneto de J. P. Hornung e o último da família a deixar as propriedades em 1978, debaixo de um assédio insustentável. Olhando a lua a subir sobre as montanhas distantes, com casacos de malha a proteger-nos da brisa fria vinda do Deserto de Omaheke, falamos de África e, inevitavelmente, da Sena Sugar Estates. Embalando um copo de whisky de malte bem envelhecido, acabamos por chegar a um título para um livro: Bitter Sweetness: Rise and demise of the Hornung sugar empire in the Zambezi delta (1888-1988). 

Na Primavera de 2015, somos convidados de Carmen Hornung-Palacios e do seu filho mais velho, Bernard. Carmen é viúva de Stephen Peter Hornung, o último director do Conselho de Administração de Londres da SSE. Bernard, tal como Peter Du Boulay, é bisneto de J. P. Hornung. Na encantadora casa estilo Tudor de Carmen em West Sussex — The Warren —, revivemos os últimos e turbulentos anos da SSE e temos o privilégio de explorar os álbuns de fotos dos Hornungs. 

Tendo como pano de fundo a mudança dos tempos, Doce Amargura é a história de uma grande empresa e do seu distinto fundador, J. P. Hornung. Este último é um industrial pioneiro, ousado, e por vezes implacável, na África Oriental Portuguesa, cujos descendentes não actuaram atempadamente quando os «ventos de mudança» atingiram África no final da década de 1950 e início da de 1960. A sua incapacidade de agir de forma decisiva e eficaz em defesa da herança africana de J. P. Hornung tem muitas razões. A destruição das propriedades em 1984-1985 é um acto de guerra. Não significa apenas a perda dos Hornungs, mas também a perda de dezenas de milhares de africanos no Baixo Delta do Zambeze.

Nota

1. Referência ao livro de Graham Hancock, Lords of Poverty: The Power, Prestige and Corruption of the International Aid Business, Atlantic Month Press, 1994. (N. da T.)