Carrie sacudiu o edredão, alisando as rugas com a mão. Um aroma a relva recém-cortada atraiu o seu olhar para a janela aberta. O vizinho do outro lado da rua enxugou a cara com a borda da camisa antes de fechar, com um baque, o caixote de lixo cheio de pedaços de relva. Arrastou-o para o pátio das traseiras, acenando a um carro que passava, a música ruidosa a desvanecer-se enquanto ele prosseguia. Atrás dela, na casa de banho, o chuveiro parou.
Carrie saiu do quarto.
— Mamã, posso ir lá para fora?
Scott estava ao fundo das escadas, segurando um carro telecomandado.
— Onde está a tua... — perguntou Carrie, dirigindo-se para baixo.
O bebé gatinhou sala dentro, cuspindo framboesas molhadas conforme avançava. Ao chegar aos pés do irmão, Elise agarrou-se-lhe aos calções e ergueu-se, o pequeno corpo oscilando levemente a tentar equilibrar-se.
— Bem, levaste os teus pratos para o lava-louças?
— Iá.
— Então podes, mas só dez minutos. Volta antes de o papá sair, está bem?
O garoto acenou e correu para a porta.
— Ná — disse Carrie por trás dele, apoiando Elise na anca. — Sapatos.
A princípio, o bebé — ups! —, dez anos depois do primeiro filho, tinha sido avassalador. Mas, conforme a família de três aprendeu a ser de quatro, Bill e Carrie perceberam que a diferença de idades significava que o irmão mais velho podia encarregar-se de pequenas tarefas, do tipo toma-conta-da-bebé-enquanto-eu-me-visto-e-faço-a-cama. Depois disso, tornou-se mais fácil gerir as coisas.
Carrie estava a sacudir os restos de batata-doce e abacate da cadeira de bebé quando ouviu abrir-se a porta da frente.
— Mamã? — gritou Scott, uma nota de alarme na voz.
Apressando-se até lá, encontrou o filho a fixar um homem que ela não conhecia. O estranho diante da porta de entrada mostrava uma expressão admirada, a mão parada a caminho da campainha.
— Bom dia — disse Carrie, mudando a bebé para a outra anca e deslocando-se de forma a colocar-se, disfarçadamente, entre o filho e o homem. — Em que posso ajudá-lo?
— Sou da CalCom — declarou o homem. — A senhora falou por causa da sua internet?
— Ah! — exclamou ela, abrindo mais a porta. — É claro, entre. — Carrie estremeceu ao pensar na sua reação inicial, esperando que o homem não tivesse reparado. — Desculpe. Nunca fiz um pedido de assistência que viesse a horas, quanto mais adiantado. Scott! — gritou ela para o filho, que rodopiava na extremidade do caminho de acesso. — Dez minutos.
O rapaz acenou e correu para fora.
— Chamo-me Carrie — disse ela, fechando a porta.
O técnico pousou a sua mala com o equipamento à entrada e Carrie viu-o a observar a sala. Tetos altos e uma escadaria para o primeiro andar. Mobiliário elegante e flores frescas na mesa de apoio. Na cornija da lareira, fotos da família ao longo dos anos, as mais recentes tiradas na praia ao pôr do sol. Scott era uma versão em miniatura de Carrie, o mesmo cabelo castanho chocolate esvoaçando com a brisa marinha, os olhos verdes franzidos em sorrisos rasgados. Bill, quase trinta centímetros mais alto do que Carrie, tinha ao colo a então recém-nascida Elise, a sua pele de lírio a contrastar com o bronzeado dele, estilo Califórnia do Sul. O técnico virou-se com um leve sorriso.
— Sam — apresentou-se ele.
— Sam — ela devolveu o sorriso. — Posso oferecer-lhe alguma coisa para beber antes de começar? Ia justamente preparar uma chávena de chá para mim.
— Um chá seria de facto ótimo. Obrigado.
Ela conduziu-o à outra divisão, a vibrante luz natural a encher a cozinha, que abria para a outra sala familiar salpicada de brinquedos.
— Obrigada por vir a um sábado. — Carrie sentou de novo a bebé na sua cadeira alta. Elise bateu com os punhos na mesa, e exibiu um sorriso com raros dentes. — Foi a única marcação que consegui em semanas.
— Pois, nós andamos com muito trabalho. Há quanto tempo está sem internet?
— Desde anteontem — respondeu ela, enchendo a chaleira de água. — English breakfast ou verde?
— English breakfast, obrigado.
— É normal — indagou Carrie, enquanto a luz piloto do fogão se transformava numa chama cheia — que a nossa casa seja a única com problemas? Perguntei a alguns vizinhos que também têm a CalCom e a deles está boa.
Sam encolheu os ombros.
— É normal. Pode ser do vosso router, pode ser dos fios. Vou fazer experiências.
Da sala da entrada ouviram-se passos pesados a descer a escada. Carrie conhecia bem os ruídos seguintes: uma mala e uma bolsa pousadas no chão, seguido de sapatos de sola dura a atravessar a entrada. Em meia dúzia de passadas, ele entrou na cozinha, de sapatos pretos impecáveis, calças bem vincadas, casaco e gravata. As asas por cima do bolso do casaco exibiam a insígnia da Coastal Airways, com BILL HOFFMAN gravado por baixo. Um par idêntico adornava a frente do boné debruado a dourado, que ele pousou suavemente na bancada. A entrada pareceu-lhe estranhamente teatral e Carrie notou o enorme contraste que a sua aura de autoridade fazia com o resto da casa. Nunca tinha reparado nisso; ele não ia jantar de farda. E, provavelmente, era apenas porque havia na sala outra pessoa, um homem que não o conhecia, que não conhecia a sua família. Mas, fosse porque fosse, nesse dia, era notório.
Bill enfiou as mãos nos bolsos com um aceno delicado ao técnico antes de virar a sua atenção para Carrie.
De lábios apertados, braços cruzados, ela enfrentou-lhe o olhar.
— Sam, importa-se...
— Claro, eu vou, hum, instalar-me — disse Sam para Carrie, deixando o casal sozinho.
O relógio de parede marcava os segundos. A bebé Elise batia com um anel de dentição todo babado na bandeja, até ele lhe escorregar dos dedos e cair ao chão. Bill atravessou a cozinha e apanhou-o, passou-o por água no lava-louças e enxugou-o a um pano antes de o devolver às mãos ansiosas da filha. Atrás de Carrie, a chaleira começou a assobiar suavemente.
— Ligo pelo FaceTime quando chegar ao hotel para saber como é que o jogo...
— Nova Iorque, certo? — interrompeu Carrie.
Bill acenou afirmativamente.
— Nova Iorque esta noite. Portland ama…
— Há uma festa de pizas depois do jogo. Com a diferença horária de três horas, já estarás a dormir quando chegarmos a casa.
— Ok. Então logo de...
— Amanhã de manhã vamos encontrar-nos com a minha irmã e os miúdos — disse ela, encolhendo os ombros. — Portanto, logo se vê.
Bill endireitou-se, respirou fundo, e as quatro listas douradas das epaulets subiram acompanhando o movimento dos ombros.
— Sabes que eu tive de dizer que sim. Se fosse outra pessoa qualquer a pedir, não o teria feito.
Carrie fixou o chão. A chaleira começou a chiar e ela apagou o bico de gás. O ruído foi diminuindo gradualmente até ser outra vez apenas o relógio a emitir um ruído.
Bill consultou o relógio de pulso e praguejou entre dentes. Deu um beijo no topo da cabeça da filha e disse:
— Vou chegar atrasado.
— Tu nunca chegaste atrasado — replicou Carrie.
Ele pôs o boné.
— Telefono depois do check in. Onde está o Scott?
— Lá fora. A brincar. Deve estar a entrar para se despedir.
Era um teste e Bill sabia disso. Carrie fitou-o do outro lado da linha invisível que tinha traçado. Ele lançou um olhar ao relógio de parede.
— Falamos antes de eu levantar voo — disse ele, saindo da sala.
Carrie ficou a vê-lo partir.
A porta da frente abriu-se e fechou-se uns instantes depois e o silêncio caiu sobre a casa. Ao dirigir-se para o lava-louças, Carrie observou as folhas do carvalho das traseiras agitarem-se com a brisa. Ao longe, o carro de Bill arrancou e afastou-se.
Ouviu um pigarro atrás dela. Enxugou rapidamente a cara e voltou-se.
— Peço imensa desculpa — disse ela para Sam, revirando os olhos, embaraçada. — Bem. Disse English breakfast. — Rasgou a saqueta do chá e enfiou-a numa caneca. Despejou a água quente e o vapor ergueu-se da chaleira. — Quer leite ou açúcar?
Não ouvindo resposta, Carrie olhou para trás.
Ele pareceu surpreendido com a sua reação. Provavelmente tinha imaginado que ela gritaria. Talvez que deixasse cair a chávena. Começasse a chorar, quem sabe. Esperara seguramente algum tipo de drama. Quando uma mulher, em sua casa, na sua cozinha, se vira e depara com um homem que conhece apenas há meia dúzia de minutos a apontar-lhe uma arma, pareceria natural uma reação violenta. Carrie tinha sentido os olhos arregalarem-se-lhe reflexivamente, como se o seu cérebro precisasse de assimilar melhor a cena para confirmar que aquilo estava de facto a acontecer.
Ele franziu os olhos, como que a dizer: A sério?
O coração de Carrie martelava-lhe nos ouvidos e uma dormência fria descia-lhe do cimo da coluna até à parte de trás dos joelhos. Todo o seu corpo, toda a sua existência, pareciam reduzidos a nada mais do que uma sensação de zumbido.
Mas isso era um conhecimento dela. Ignorou a arma e concentrou-se antes nele, e não lhe deu nada.
A arrulhar e a fazer beicinho, a bebé Elise atirou novamente o seu anel de dentição para o chão soltando um gritinho. Sam deu um passo na direção da bebé. Carrie sentiu as narinas dilatarem-se-lhe involuntariamente.
— Sam — disse Carrie calmamente, lentamente. — Não sei o que você quer. Mas é seu. Tudo. Eu farei tudo. Mas, por favor — a voz cedeu-lhe —, por favor, não faça mal aos meus filhos.
A porta da frente abriu-se e fechou-se com estrondo. O pânico apertou-lhe a garganta e Carrie inspirou para gritar. Sam engatilhou a pistola.
— Mamã, o Papá já saiu? — chamou Scott da outra sala. — O carro dele não está cá, posso continuar a brincar?
— Diga-lhe que venha para aqui — ordenou Sam.
Carrie mordeu o lábio inferior.
— Mamã? — repetiu Scott com a impaciência infantil.
— Estou aqui. — Carrie fechou os olhos. — Anda cá depressa, Scott.
— Mamã, posso ficar lá fora? Tu disseste que eu podia... — Scott imobilizou-se ao ver a pistola. Olhou para a mãe e depois para a arma e depois de novo para a mãe.
— Scott — disse Carrie, chamando-o com um gesto. O rapaz não despegou os olhos da arma enquanto atravessava a cozinha para se juntar a ela, que deliberadamente o colocou atrás de si.
— Os seus filhos podem ficar ótimos — disse Sam. — Ou não. Mas isso não depende de mim.
As narinas de Carrie dilataram-se de novo.
— De quem é que depende?
Sam sorriu.
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Bill sentia as pessoas a observarem-no.
Era a farda. Tinha esse efeito. Endireitou-se um pouco mais.
Bill era muitas coisas, mas o consenso parecia ser que, acima de tudo, era simpático. Professores e treinadores na adolescência, raparigas que namorava, os pais dos amigos. Toda a gente conhecia Bill como o tipo simpático. Não que se importasse. Ele era simpático. Mas quando envergava a farda, qualquer coisa mudava. Simpático não era a descrição padrão. Ainda continuava na lista. Mas não era a única palavra nela.
As cabeças dos passageiros ergueram-se quando ele ultrapassou a interminável fila do controlo de segurança no Aeroporto Internacional de Los Angeles, mas bastou um olhar àquele boné e gravata para transformar a indignação em curiosidade. As pessoas já não se vestiam assim. Aquilo remetia para uma época em que as viagens aéreas eram um privilégio raro, um acontecimento importante. Propositadamente inalterada, a farda mantinha viva uma certa mística antiquada. Inspirava respeito. Confiança. Proclamava um sentido de dever.
Bill aproximou-se da solitária agente da TSA sentada num pequeno estrado discretamente instalado um pouco afastado do controlo de segurança dos passageiros. Ao digitalizar o código de barras da parte de trás da sua placa de identificação, a máquina fez bip e o computador começou a funcionar.
— Bela manhã — cumprimentou Bill, entregando o seu passaporte à mulher.
— Ainda é manhã? — ripostou ela, analisando a informação impressa ao lado da fotografia dele. Comparando-a com os dados da placa de identificação, fez deslizar o passaporte sob uma luz azul, levando ao aparecimento de hologramas e letras ocultas no espaço em branco do documento. Ergueu os olhos, e confirmou que a face à sua frente condizia com a da identificação.
— Tecnicamente, suponho que já não é manhã — disse Bill. — Apenas é manhã para mim.
— Bem, é a minha sexta-feira. Por isso o dia tem de se despachar.
A foto e as informações da placa de Bill surgiram no ecrã do computador. Depois de ter verificado por três vezes as três formas de identificação, ela devolveu-lhe o passaporte.
— Bom voo, Comandante Hoffman.
Ao abandonar o posto de controlo de segurança da tripulação de bordo, passou pelos passageiros, que voltavam a calçar os sapatos e a guardar os líquidos e portáteis nas mochilas. Na sua última viagem, Bill voara com uma assistente de bordo que recusava reformar-se simplesmente porque não queria perder a autorização de segurança da tripulação. Torcia o nariz à ideia de ter de viajar como simples mortal; esperar em fila, restrições de líquidos, limitação de dois volumes — que seriam revistados sempre e não ocasionalmente de forma aleatória. Vendo um homem sem sapatos a ser apalpado, Bill foi forçado a admitir que ela tinha certa razão.
Procurando privacidade numa porta desocupada, Bill ligou para casa como prometido. Observou um camião de catering lá em baixo, na pista, a serpentear por entre operadores de bagagem com coletes de néon que carregavam e descarregavam malas do porão, enquanto ouvia o telefone tocar interminavelmente do outro lado da linha. Uma aeronave taxiava para fora da pista de pouso e, ao longe, uma outra descolava.
Não era frequente ele e Carrie discutirem, razão pela qual, quando o faziam, lidavam mal com isso. Ela tinha todo o direito a estar aborrecida. Nesse dia era a abertura da temporada da Little League de Scott e Bill havia-lhe prometido estar presente. Certificou-se de que não tinha viagens escaladas para o dia do jogo e os dois dias antes e depois. Mas se o chefe dos pilotos nos telefona a pedir que façamos um voo como favor pessoal, não dizemos que não. Não podemos dizer que não. Bill era o terceiro piloto com mais antiguidade. Quando fora contratado, ninguém tinha a certeza se a companhia ia sequer ter êxito. As companhias aéreas start-up quase nunca têm. Mas, apesar disso, ele aguentou. E presentemente, quase vinte e cinco anos mais tarde, a companhia era um sucesso total tanto com os passageiros como com os acionistas. A Coastal era o seu bebé. Portanto, se o chefe diz que a operação precisa de nós, nós dizemos que sim. Nem sequer é uma opção.
Ele dissera isso mesmo a Carrie. Mas não lhe dissera que o jogo de Scott nem sequer lhe viera à cabeça quando O’Malley perguntara se ele estava disponível. Ou que, ainda que tal tivesse acontecido, não teria feito diferença.
O telefone continuou a tocar até que, finalmente: «Olá! Ligou para a Carrie. Não posso...» Ele desligou e viu uma foto de família surgir na imagem de fundo do telemóvel antes de o meter no bolso.
Captando de relance o seu reflexo na janela, Bill observou o espesso cabelo preto. Havia umas cãs traidoras nas têmporas. Os olhos eram de um azul profundo, vibrante.
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Bill carregou na campainha pousada no meio da mesa de apoio.
— Olhos. Os meus olhos.
— Resposta final? Esta é para venceres.
— Ela disse que eles eram como nadar à noite. Quando não se consegue ver o fundo. Mas é excitante. Portanto, sim. Os olhos. Resposta final.
Carrie ficou de boca aberta.
Bill inclinou-se para a frente. Sentia o cheiro da cerveja no seu próprio hálito.
— Ouvi-te dizer isso uma vez a uma amiga, ao telefone. Mas nunca te contei. Amo-te tanto, querida. — Atirou um beijo a Carrie.
As esposas aplaudiram, os maridos troçaram.
— Bem, Carrie — disse o anfitrião da festa. — «Os olhos.» Foi a tua resposta para qual é a parte que preferes no teu marido?
Ela corou. Com uma risadinha, mostrou um pedaço de papel com a sua resposta rabiscada: O rabo.
A sala explodiu em gargalhadas. Bill foi quem mais se riu.
Ajeitou a gravata. Sou um homem bom, recordou a si mesmo sem hesitação. Veio-lhe à cabeça a imagem do ar de desapontamento de Carrie quando ele saíra da cozinha. Pestanejou e olhou para fora seguindo a descolagem de um avião.
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