Quando em 2001 a fábrica deixou de laborar, Francisco era o maquinista da máquina a vapor que gerava a energia para o fabrico da pólvora. Hoje, já em contexto museológico, é também ele quem a mantém operacional e preocupa-o que não exista alguém a quem um dia passar o testemunho.

“Fui o último maquinista. Parei a máquina em fevereiro de 2001”, explicou em entrevista à agência Lusa Francisco Moura, de 57 anos, agora a trabalhar com a Câmara Municipal do Seixal, no distrito de Setúbal, a quem os proprietários (Sociedade Africana de Pólvora) doaram o espaço após cancelamento do alvará industrial.

Com uma história industrial de mais de um século (1896-2001), a Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços é o único sítio em Portugal de reconhecido valor patrimonial onde um sistema original de energia a vapor, conservado ‘in situ’ e em operação é dado a conhecer, fazendo parte do Ecomuseu Municipal do Seixal desde 2001 e tendo sido classificada em 2012 como monumento de interesse público.

O sistema de produção de energia mecânica a vapor, constituído por uma caldeira geradora de vapor, de 1911, da marca João Peres, e uma máquina a vapor, de 1900, da marca Joseph Farcot, é conservado e interpretado em condição operacional mediante o trabalho de um operador com a dupla função de fogueiro e de maquinista.

É esta a função de Francisco Moura: mostrar ao mundo da era digital como funcionava uma fábrica na era do vapor, uma tarefa que assegura mantendo viva a alma daquela que foi quase sempre a sua casa, desempenhando uma função que sonhou quando ainda era criança.

“Fui nascido e criado dentro da fábrica da pólvora. O meu pai, a minha mãe, os meus irmãos e os meus primos trabalhavam cá. Nos tempos de miúdo olhava para aqui e via esta manivela a andar e pensava…um dia ainda vou trabalhar com a máquina a vapor” contou.

A máquina, agora com 122 anos, explicou, era a pérola da fábrica e o maquinista o número um dos operários. Chegar a este patamar era um sonho de Francisco Moura, que aos 17 anos saiu para trabalhar na construção e aos 22 regressou com um único objetivo: tornar-se maquinista.

“Fui aprender com o António José Pereira [o anterior maquinista], que me conheceu e viu nascer. Era um trabalho de grande responsabilidade e esta máquina está no estado em que está devido à responsabilidade de todas estas pessoas. Cada maquinista que passou aqui teve o seu mérito, porque isto não se podia estragar, era a pérola da fábrica”, disse adiantando que se a máquina não trabalhasse atrasava-se todo o fabrico da pólvora.

O amor pela sua arte não esmoreceu, mesmo quando um dia foi vítima de uma explosão quando procedia à queima de resíduos. Dos seis funcionários da unidade, dois morreram e dois sofreram queimaduras. Francisco foi um deles, ficando com 72% do corpo com queimaduras de 2.º e 3.º grau, ainda visíveis.

“Nas fábricas de explosivos, inevitavelmente, há acidentes. Estive um bocado mais para lá do que para cá. Costumo dizer na brincadeira que fui falar com o S. Pedro, ele disse-me que estava mal passado e mandou-me cá para baixo outra vez para voltar aqui a pegar neste projeto”, disse, sorrindo.

Voltou em 2007 a convite da Câmara Municipal do Seixal, para trabalhar no que realmente gosta, tendo colocado a si próprio o desafio de voltar a pôr a máquina a trabalhar.

“Voltei aqui porque no fundo isto é a minha casa, foi aqui que fui criado, foi aqui que tive as minhas vivências. Ando aqui sozinho e parece que vejo as pessoas a andarem de um lado para o outro. No fundo, isto era o meu mundo”, disse.

Hoje, explicou, é com orgulho que mostra aos visitantes do ecomuseu a imponência de uma máquina com 122 anos, com um motor raro e a funcionar em toda a plenitude no local onde foi montada em 1900, algo que acontece pelo menos uma vez por mês, tendo a dupla função de demonstrar e de manter o mecanismo oleado.

À questão de como vai ser possível passar este saber para as gerações futuras, Francisco Moura responde que esta é uma angustia que o acompanha.

“Era com bastante gosto que teria aqui um aluno para um dia também eu poder ser uma visita. Para mim era um gosto, mas os jovens não estão para aí virados. Estudar e ter licenciatura é importante, mas o saber fazer também é importante, talvez até mais do que as licenciaturas”, disse, confidenciando que ainda tem a esperança de conseguir conquistar o neto para esta arte.

Por enquanto, Francisco Moura ocupa os seus dias a manter o mecanismo na perfeição e a “carregar as baterias”, como diz, com os rostos admirados dos visitantes, entre os quais investigadores na área do património industrial ao verem a “Farcot” a funcionar.

A máquina, afirma, é algo que vive, que tem alma e que transporta a alma de muitas outras pessoas que passaram pela fábrica.

“A gente vai a um museu, é tudo muito bonito, mas falta o cheiro a óleo, o cheiro a vapor, porque isto é autêntico e único”, disse aquele que foi e ainda é o último maquinista da pólvora de Vale de Milhaços.

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