Dez anos parece muito tempo, mas isso depende sempre da perspetiva. Para uma criança, dez anos é um número enorme; para uma pessoa já com muita vida nas costas, dez anos constitui uma ninharia. Gisela João talvez ocupe esse meio termo. Parece que foi ontem que lançou o seu primeiro álbum, homónimo, que a colocou nos lugares cimeiros da nova geração de fadistas. Seguiram-se as consagrações, com “Nua” e “AuRora”. Agora, antes de mirar o futuro – nomeadamente, um novo trabalho, há que celebrar o que já foi.
Daí a marcação de dois concertos especiais, primeiro este sábado, no 8 Marvila, em Lisboa, e no dia 27 deste mês no Museu do Carro Elétrico, no Porto (já esgotado), nos quais terá ao lado não só a sua banda mas o seu namorado, o norte-americano Justin Stanton, dos Snarky Puppy. Antes, falou com o SAPO 24, acompanhada por um chá, sobre o fado que a apaixona, mas não só: há em Gisela João um amor gigante, também, pelas eletrónicas mais dançáveis, o house e o techno à cabeça. Claro que o melhor deste encontro não deu para reproduzir: o momento em que, finda a mesma, e depois dos agradecimentos e despedidas, a ouvimos descer umas escadas a cantar a viva voz, a cappella, todo um mundo ou até todo o mundo ali contido naquela maravilha sonora. Porque é isso que Gisela João é: uma das sete maravilhas de Portugal, quiçá de Barcelos.
Começo então pela pergunta óbvia: que balanço fazes destes dez anos (que não são bem dez anos) de carreira?
É só vitórias, só vitórias. Eu sou de Barcelos, como sabes. Olhando para trás, se me perguntasses isto há uns meses, não te ia responder assim. Não ia mesmo. Mas, de repente, comecei a perceber que são mesmo só vitórias. Porque aquilo que eu acho que era expectável de uma menina de Barcelos, do estrato social de onde vem, tudo o mais, era muito pouco. E, portanto, eu acho que aquilo que somei, até agora, são vitórias.
"Hoje em dia, tu podes chegar a casa, gravar uma música, e podes em cinco minutos tornar-te viral, conhecido"
Qual é que é a maior vitória, o ponto mais alto?
É conseguir manter. Porque é tudo muito fugaz, e é muito fácil ter-se um hit – até há, mesmo, aquele termo do one hit wonder, não é?
No fado, isso talvez seja mais difícil...
O mundo em que nós vivemos, hoje em dia... É tudo tão global, e tão universal que, de repente, aquilo que se aplica a um género de música aplica-se a todos os outros. Somos engolidos por coisas novas a toda a hora. Hoje em dia, tu podes chegar a casa, gravar uma música, e podes em cinco minutos tornar-te viral, conhecido. E, de repente, estás a gravar discos, estás a lançar faixa a faixa, o que hoje acontece muito... Sei lá. Nós somos de outra geração. Eu vejo miúdos, hoje em dia, que fazem as coisas muito mais rápido, sabem mexer nos materiais muito mais rápido do que eu, por exemplo. E acho que isso faz muita diferença.
E quanto aos pontos mais baixos?
Muitos falhanços, principalmente comigo própria. Falhar constantemente com a minha família, com os meus. Porque não tenho tempo, não consigo ter tempo. É muito difícil consegui-lo. Como é uma profissão tão instável, e muito exigente... Aquilo que muitas vezes eu penso, e comento com amigas minhas, é: tu vais para o teu escritório, fazes m**** – claro, acontece, houve alguma coisa que correu mal no teu trabalho –, há um certo número de pessoas que o sabem. No nosso caso, se acontece alguma coisa, e às vezes nem é por nossa causa, estamos sempre dados ao julgamento de toda a gente. Essa permeabilidade pode ser muito violenta. Pode ser mesmo muito violenta. E depois, lá está: ou estamos preparados ou não. E eu sinto que há pessoas que têm mais estofo do que eu, muito mais.
Não sendo necessariamente alto ou baixo, este é um dos pontos mais bizarros?
Eh pá, isso foi antes do [lançamento do] meu [primeiro] disco... Incrível. Eu estava muito feliz, como podes ver nesta fotografia. Eu não sentia os meus pés. E vou dizer-te uma curiosidade: isto que eu tinha aqui na cabeça, que era como se fosse uma mesa, de uma tasca portuguesa, para me fazerem isto... O meu cabelo é muito liso. E então, puseram-me o cabelo cheio de gel e de laca, e com – não estou a exagerar – para aí uns duzentos ganchos... Sabes que isto das marchas demora horas, não é? Vão até de manhã, e depois fica-se à espera de saber os resultados, e tudo o mais. Quando cheguei a casa, não conseguia tirar os ganchos, então, tive que me enfiar na banheira, molhar o cabelo, tirar gancho a gancho, e não imaginas as dores do cabelo, depois, a voltar ao sítio...
Acho que não quero imaginar.
Não queres, não é?... [risos]
Nestes dois espetáculos de celebração, vais ter a teu lado não só a tua banda, como também o teu parceiro, o Justin Stanton – que também te vai acompanhar no Festival Montepio Às Vezes o Amor. Tocar com a cara-metade atribui a estes espetáculos um significado ainda mais especial?
Não. Às vezes, até é mais complicado. Porque quando tens mais confiança, também abusas mais um bocadinho, e é mais difícil controlar as coisas.
Com dois músicos a viver sobre o mesmo teto, como é que é a vossa vida em casa? Constantes trocas de ideias para canções? Já tiveram planos para fazer um álbum juntos?
Já. É uma conversa que surge muitas vezes.
E porque é que ainda não foi concretizada?
Por falta de tempo...
"Já eras fã dos Snarky Puppy, antes de o conheceres?
Não os conhecia. A nossa relação começa em 2019, quatro anos depois de os conhecer. Lembro-me que o meu irmão estava cá a passar uns tempos; ele é designer, e os designers passam a vida de fones, a ouvir música. Disse-lhe que ia abrir para uma banda norte-americana, que vinha cá, e ele quis ir comigo. Foi no Paradise Garage, que à altura estava fechado, e abriram-no para fazer aquelas noites [nota: terá sido em 2016]. E o meu irmão: “O quê, não os conheces, 'tás tola, 'tás-te a passar?” Ficámos amigos, e anos mais tarde é que nos encontrámos.
"Há pouco tempo, escrevi uma letra, umas coisas em casa, sobre a minha avó, e a dada altura digo que ela vive em mim"
Estes dois concertos terão por base o teu primeiro disco, homónimo. Não resisto a uma pequena provocação: se são de facto uma celebração dos teus dez anos de carreira, porque não incluir o “Nua” e o “AuRora”?
Não estás a provocar, é uma questão que eu própria me coloco até hoje. Tudo pode acontecer até ao dia do concerto. Mas é que, de facto, este disco... Eu perdi a minha avó em setembro do ano passado. Passo a vida a falar dela, em todas as entrevistas que dei na vida, nos concertos... A minha avó foi o grande pilar da minha vida.
Os meus pêsames. Também perdi uma avó, em maio.
Obrigada. É muito doloroso. Muito doloroso. Parece que uma parte de nós desaparece. Mas, com o tempo... Há pouco tempo, escrevi uma letra, umas coisas em casa, sobre a minha avó, e a dada altura digo que ela vive em mim. Ela está aqui. Isto para dizer: no ano passado, percebi que tinha muita vontade de fazer uma festa com as pessoas. Não só com a minha equipa, mas também com o público, porque os concertos acabam e eu vou dar beijinhos, autógrafos, essas coisas. E, depois, não há nada. Vai toda a gente para casa porque eu estou estourada, já não consigo sequer ir beber um copo.
Depois da pandemia, com mais vontade ainda fiquei de fazer uma festa. E, no início deste ano, quando percebo: “'pera lá, 2013 foi quando lancei o meu primeiro disco!”, pensar em todo o significado que aquele disco teve na minha vida, e o impacto que teve na minha vida... É absolutamente gigante, é maior do que eu. E esta comemoração merece aquele disco – até porque aquele disco foi um disco muito disruptivo, na altura. É um disco de fado tradicional, puro e cru, que aparece numa altura em que o fado estava em ponto caramelo. Acho que aquela guinada de volante foi muito marcante. E eu devo-lhe muito.
E também acho interessante perceber que aqueles poemas, e aquelas músicas, vivem muito bem no tempo. E que, quando eu cantava determinadas músicas, pensava em algumas coisas... Nomeadamente, a 'Meu Amigo Está Longe', pensava num dos meus melhores amigos, que foi viver para longe de mim. E a dada altura perdi o meu avô, depois perdi um grande amigo meu, o Manel, e entretanto perco a minha avó... Agora, quando canto estas músicas, já são outras histórias que estão lá, e é muito interessante perceber isso nas músicas e nos poemas, nos discos.
"Eu passo a vida a viajar, a deixar os meus amigos e a minha família longe, para ir cantar para os outros"
A última vez que te vi ao vivo foi na Feira de Maio da Azambuja, no ano passado. Já te refizeste das picadas das melgas?
[Risos] Estavas lá! Eu, por acaso, não sofro tanto, mas tenho pessoas na minha equipa que pareciam um Ferrero Rocher.
Isto para te perguntar: aquilo que cantas faz mais sentido neste tipo de festas populares, dado que o fado é a música popular por excelência, ou em registos mais íntimos?
Depende. É preciso haver esta distinção: quando nós vamos fazer um concerto num teatro, eu sei, à partida, que 90% das pessoas que lá estão querem, de facto, ouvir-me. Vão lá porque compraram bilhete, gastaram o seu dinheiro, cravaram a alguém, alguém lhes ofereceu. Aquelas pessoas vão mesmo lá para me ouvir. Portanto, nesses espetáculos eu tenho mais abertura para explorar tudo aquilo que me apetecer. Num espetáculo de rua, e eu até considero que às vezes estico um bocadinho a corda, não faço isto só para mim. E tenho que perceber que, quando eu estou a fazer um espetáculo de rua, é a festa daquela terra. Muitas das pessoas [que lá estão] não vão lá para me ver. Vão lá porque é a festa da terra, e estão no seu direito, porque é a festa que a terra deles lhes proporciona. Eu acabo por ser uma convidada para essa festa, mas estou na casa deles. Não canto só para mim.
Eu passo a vida a viajar, a deixar os meus amigos e a minha família longe, para ir cantar para os outros; nesse tipo de concerto, tem que haver uma seleção. Tem que haver um meio termo. Tenho que cantar 'O Senhor Extraterrestre' para as pessoas, mesmo que não me apeteça cantá-la. Mesmo que só me apeteça cantar a 'Louca', a 'Meu Amigo Está Longe', que não me apeteça cantar nada das coisas mais alegres, eu preciso de as cantar. É um compromisso que eu tenho com as pessoas que estão ali à minha frente, porque elas querem isso. E eu tenho que lhes dar isso.
Porque é que a Gisela João, filha de Barcelos, nunca atuou no Milhões de Festa?
BOA PERGUNTA. Escreve isso em grande. Mas agora acabaram com o festival, não é? Foi a câmara...
Passando um bocadinho mais para noroeste, quando é que podemos ver a Gisela no NeoPop?
Ui, amigo, se tu soubesses a minha vida com o NeoPop... Fui à primeira, segunda, terceira, quarta e quinta edições.
Conta mais.
Não posso contar mais. [Risos] Posso dizer-te que sempre me diverti muito, horrores. Em boa verdade, quando eu vim para Lisboa, foi quando eu acalmei mais de poder sair. Quando eu vivia no norte, tinha uma profissão, trabalhava nas lojas. Pelo que não tinha os cuidados que tenho que ter hoje em dia. Tenho um concerto na sexta-feira: esta semana já tenho que estar em repouso. Não posso andar em loucuras.
A beber cházinho...
A beber cházinho. Com isto, só chegava a casa às 11h da manhã. E não pode ser.
"Acho que o fado está muito para além da guitarra portuguesa"
Tendo em conta a tua apetência por seguir caminhos que não são tão tradicionais ao fado – como a inclusão de música eletrónica no “AuRora” – achas que aquilo que fazes é NeoFado?
[Risos] Olha, não. Não sou purista, sabes? Mas, às vezes, questiono-me: será que o sou, e não percebo? Mas não sou, mesmo. Acho que tudo aquilo que eu faço é fado. Porque acho que o fado está muito para além da guitarra portuguesa.
Da ortodoxia.
Sim. Acho que o fado passa muito mais por uma forma de vida. Agora que me puxaste aqui o NeoPop, eu sou muito fã de um senhor chamado Jeff Mills. Já o vi algumas vezes e continuo a adorar aquilo. Aquilo que ele faz, pela densidade daquilo que ele faz, há fado ali para mim. Agora não sei se as pessoas entendem isto muito bem...
Recordo uma entrevista que deste ao “Mesa de Mistura”, em 2012: “Quando nos recebeu no Lux, calçava uns ténis da nova colecção Zara tipo Adidas bling-bling. Na pele, uma tatuagem sem xaile a cobrir”. Fugir à indumentária fadista é um ato de subversão?
Sempre fui essa pessoa, desde pequenina. Eu ainda me lembro de adorar as Spice Girls, nunca passei pelo rock, ou pelo grunge. Fui diretamente para o house, o deep house, o techno, porque no meu grupo de amigos havia DJs, faziam muitas festinhas... Eu cresço com o fado e com a música eletrónica, que hoje em dia até prefiro chamar de “música tecnológica”, já que a eletrónica se disseminou. É uma coisa que é tudo, e para mim não é.
Há quem faça a distinção entre “música eletrónica de dança” e outros tipos de música eletrónica.
A música eletrónica está em tudo, hoje em dia. Está na música pop, no rock. Está em todo o lado. Sintetizadores, batidas, em todo o lado. Isso incomoda-me um bocadinho, porque acho que os géneros se vão perdendo a meio caminho.
Eu não fiz a primeira comunhão. E íamos ao domingo à missa, de vez em quando – nunca fui obrigada a isso – e eu lembro-me que tinha um vestido que eu punha só ao domingo, e eu parecia um bolo de chantilly. Eu adorava aquele vestido. E tinha umas All Star amarelas, todas podres. A minha avó ficava doida, porque eu punha as sapatilhas com aquele vestido... E aquilo sempre me deu gozo. Há uma expressão na minha terra, que é: “não é por te vestires de feira que és da Feira”. E isso, para mim, sempre me explicou o mundo. Não é por te vestires de advogado que és advogado, não é porque pões uma cara mais séria que és mais sério do que os outros.
Eu gosto muito de provocar. A provocação, o impacto que ela tem é de crescimento. Se eu me sinto provocada, eu sinto que no meio da dor, e dessa provocação, eu cresço. E questiono-me, e penso noutras coisas. Tenho muito prazer em fazer isso. Eu sentia, quando eu tinha quinze anos, que os meus amigos, que gostavam tanto de música como eu, olhavam para o fado, naquela altura – como tu sabes muito bem, devemos ter a mesma idade...
Eu só comecei a gostar do som do fado quando surgiu A Naifa.
Pois. Porque é moderno, são cool, têm aquele ar também cool. Eu gostava tanto de fado, mas olhava para a televisão – porque era onde havia fadistas – e aquele ar muito pesado, de preto, aqueles vestidos compridos... E pensava: isto afasta muitas pessoas.
Tirando góticos.
[Risos] Mas para os mais jovens, não é? É como a comida: tu olhas para um bolo, tem um aspecto incrível, espetacular, queres dar uma chinca, dás uma chinca, aquilo não te sabe a nada, ugh. Olhas para outro, está maravilhoso...
É normal que aos quinze anos só se goste de McDonald's e aos vinte se comece a comer sarrabulho.
[Risos] Eu não gostava de bolo-rei. Hoje em dia gosto.
"Tenho pouca elasticidade, pouco tempo para poder ir ver coisas de que eu gosto"
Voltando atrás: falaste do Jeff Mills, mas eu ia falar do Aphex Twin. À “Sábado”, disseste que ele “tem fado” na sua música. Primeiro, pergunto o porquê. Segundo, porque é que nunca escreveste um poema a acompanhar a 'Avril 14th'?
[Risos] Estou sempre a partilhar essa música! Olha, não sabes se já não a escrevi e não sabes se até já gravei coisas em casa... Eu acho que tem fado precisamente pela densidade, e pela simplicidade. Às vezes só são necessárias duas ou três notas para surtir um efeito em ti, um arrepio. Ele, assim como outros – Alva Noto, por exemplo – é para mim tão denso...
Foste vê-lo ao Semibreve, em 2022?
Não. Um dos problemas que eu tenho, desde que vim para Lisboa, e desde que a minha profissão é esta – não me estou a queixar –, é que eu tenho pouca elasticidade, pouco tempo para poder ir ver coisas de que eu gosto. Mas eu acho que o segredo dessas pessoas é perceber a densidade. Também percebo que haja muitas pessoas que dizem “eh pá, mas isso não é música, que chata”, e não sei quê.
Tudo o que seja feito “com computadores” parece que é uma arte menor.
Sim, completamente. Agora imagina o que é que ouço.
Sei que ouves, por exemplo, Frankie Knuckles. De onde é que nasce o amor pelo house?
Eu adoro o Frankie Knuckles. Fogo... Ele, o François Kevorkian... Este é um dos que começa a cena techno pelo mundo. Há um documentário incrível, que até está no YouTube. Aqui há uns tempos, fui procurar e vi. É mesmo incrível, porque tu percebes que um grupo de putos, de amigos, começa a fazer umas batidas, e umas misturas, e umas coisas e, de repente, percebem que do outro lado do oceano estavam a acontecer festas incríveis, gigantes. E até há uma parte lá, muito cómica, em que um deles diz assim: “A sério que as festas lá são só brancos?” E eles espantados.
"Nós somos todos iguais e a música é a linguagem de todos nós"
Compreensível: o house nasce nos anos 80, pela mão de pessoas negras e queer.
Sim, sim, mas eles achavam que era uma coisa underground dentro do underground! E, de repente, isto torna-se numa coisa maior do que eles. Eu tenho mesmo muito respeito [por eles]. Para mim, são músicos como outros quaisqueres.
Recordo um discurso do Chuck Roberts, imortalizado numa versão da 'Can You Feel It', do Larry Heard: «no one man owns house, because house music is a universal language spoken and understood by all». O fado também é assim?
É. Eu cheguei da Sérvia anteontem. Eu assumo sempre que a minha língua é uma língua difícil, portanto, vou falar bastante durante o concerto, para as pessoas perceberem, para lhes explicar o que é que são os poemas de que eu estou a falar. E é comovente perceber a disponibilidade das pessoas, e perceber, acima de tudo, o quanto a música é uma das provas de que não há cores, não há idades, não há alturas, não há cor dos olhos, não há nada. Nós somos todos iguais e a música é a linguagem de todos nós.
Qual é a melhor canção que já cantaste, e porque é que essa canção é o Hino do Futebol Clube do Porto?
Ai tu és do FêQuêPê... [Risos] Já cantei tanta coisa boa... Costumo dizer em jeito de brincadeira mas é a sério: eu acho que eu nasci com um defeito muito grande, o meu coração é defeituoso. É muito grande, cabe muita coisa lá dentro.
E é azul e branco.
É azul e branco, mas isso não é defeituoso. Mas também é azul por causa de outra coisa: sou mais adepta de hóquei que propriamente de futebol. A minha cidade sempre teve o hóquei, o Óquei Clube de Barcelos era muito forte. E eu cheguei a jogar hóquei. Por isso é que não posso treinar muito pernas, senão ficam umas batatas horríveis... Até é engraçado: depois de eu me tornar numa figura pública, muitas pessoas começaram a falar das minhas pernas, das minhas pernas. Eu tinha muita vergonha das minhas pernas. Tinha mesmo! Por causa disso, do exercício, do hóquei. E, de repente, vivo muito bem com as minhas pernas.
Pronto, o que é que fui dizer... Já vai sair isso das minhas pernas [risos]
[Confere] O que é que representa melhor esta coisa de se ser português: o fado ou o David Bruno?
Os dois. Eu acho que o David tem uma genialidade... Ele é um performer. Ele representa uma grande parte da população portuguesa que está lá longe, lá para cima.
E que, no sul, é vista como exótica.
É. Às vezes dói-me um bocadinho, fico até um bocado irritada, mas depois tenho que acalmar o morango. Parece que é sempre uma caricatura, parece que é sempre piada. Aquelas pessoas e aquelas personagens que o David representa, que vai buscar, são personagens que existem. Tu és do norte?
Sou de Alverca, mas tenho raízes minhotas.
Foste lá muitas vezes, em criança?
Todas as Páscoas eram em Ponte de Lima.
Então: quantos senhores, e quantas senhoras, é que tu já não viste a falar assim, a vestir assim? Aquelas pessoas são reais. Aquelas pessoas existem. E uma das coisas que mais me dá orgulho, nestes dez anos, é também o sentir precisamente que eu represento muitas pessoas que se sentem lá longe, tão distantes, no sentido de até ser possível sonhar com “isto” aqui. É uma coisa que me orgulha muito.
"Não gosto de partilhar, mas coleciono, para mim, mensagens com histórias"
Era uma das coisas que ia perguntar a seguir, recuando um pouco até à biografia da Amália, escrita por Vítor Pavão dos Santos. No livro, ela diz: «compreendo que tenha ajudado pessoas só por me ouvirem cantar». Tu sentes o mesmo.
Completamente. Modéstia à parte. Não sinto: tenho a certeza. Eu recebo mensagens... Há uma coisa que é: eu não gosto de expor mensagens das pessoas. Parto do princípio que se me mandam uma mensagem privada, ela é entre mim e a pessoa. Mesmo que eu não a conheça, mesmo aqueles que me estão a insultar. Não gosto de partilhar, mas coleciono, para mim, mensagens com histórias. Algumas delas até cheguei a acompanhar. Histórias muito emocionantes, mesmo.
"Quando eu lanço o meu primeiro disco, ninguém sabia quem eu era"
Fui buscar a Amália porque ela ainda existe como O termo de comparação quando se é fadista. Pergunto, não só se o sentes, mas se as outras cantoras de fado com quem te dás sentem o mesmo: ser-se comparada a Amália é uma bênção ou um fardo?
Não te sei responder. Sei-te responder a outra coisa que tem um pouco a ver com isso: a própria expetativa que eu crio sobre mim é um fardo. Quando eu lanço o meu primeiro disco, ninguém sabia quem eu era. Quando eu lanço o segundo, já há pessoas que querem que eu faça amarelo e outras que querem que eu faça preto. E outras que querem que eu faça verde, e outras que eu faça cor-de-rosa, e outras vêm-me dizer: “se quiseres faz vermelho, se calhar é mais giro”. Mas eu penso: “não, eu vou é fazer azul”. Mas ficas muito confusa. Porque tu própria já te deste ao mundo, já te deste a conhecer, e levantaste a fasquia até aqui. E, portanto, pensas: “agora não posso fazer menos do que isto”.
E até perceberes que, às vezes, até precisas de fazer menos do que isto para depois conseguires fazer mais... É difícil. É muito difícil viver de forma exposta. Em que te dizem assim: este trabalho não vale nada. É difícil. Eu acho que ninguém está preparado para uma coisa dessas. Mas é muito necessário. Porque se tu estás sempre a pensar nas tuas vitórias, isso, para mim, é sinal de que estás sempre num lugar de conforto, que te é fácil. Já sabes qual é a matemática a fazer para estar sempre ali. Isso não me satisfaz. Não venho daí, não venho desse lugar. Sempre tive que esgravatar muito.
Falando de vozes emblemáticas: e a Maria Bethânia?
Uma das minhas professoras, sem ela o saber. Amo-a. E passei uma das maiores vergonhas da minha vida, com ela. Fui ver um concerto dela no Coliseu, e depois tive a oportunidade de a conhecer, e não conseguia falar. Só conseguia chorar de vergonha. Ainda por cima eu sei qual é a sensação de teres uma pessoa no fim do teu concerto a chorar: ficas um bocado sem saber o que fazer, ficas um bocado atrapalhada. Ela só me dizia: calma, calma, está tudo bem, e eu não disse nada, não dei uma para a caixa...
Agora, algo um pouco mais sério: há algumas semanas, partilhaste nas redes sociais uma imagem de uma boneca, de punho erguido, com a mensagem “contra o fascismo”.
Todos os dias!
"Eu e os meus irmãos somos uma força da liberdade, somos um exemplo máximo daquilo que tu consegues fazer com a tua liberdade"
Como encaras a ascensão deste tipo de partidos um pouco por todo o mundo?
Acho que é muito triste. Falando outra vez da minha avó: há cerca de ano e meio, fui visitar a minha avó, e a televisão estava ligada no telejornal. Ela estava caladinha, a ouvir, e eu: “ó 'vó, então, que é que foi?” E ela diz: “Ai, filha, eu nunca pensei que vocês fossem ouvir coisas como as que aquele moço estava ali a dizer. Pensei que isto já tinha acabado, que vocês já estavam livres disto”. Acho que é muito assustador.
2024 é para mim um ano muito importante. Sinto-me num passeio de escola: não conseguias dormir porque no dia seguinte tinhas um passeio, tinhas que levar o farnel, tudo o mais. Sinto isso com o 25 de Abril. Desde sempre. O meu avô fazia questão de me ensinar isso, a minha avó, o meu pai, a minha mãe. Eu e os meus irmãos somos uma força da liberdade, somos um exemplo máximo daquilo que tu consegues fazer com a tua liberdade. O 25 de Abril é mesmo muito caro. E fico doente, enjoada, transtornada. Sinto que... Às vezes apetece-me fazer como se diz lá na minha terra e dar duas lapadas a certas pessoas e perguntar-lhes: “ouça lá, está a dizer isso a sério ou está a dizer isso a brincar?”.
"O mundo não se faz assim. Eu não vivo sozinha, vivo em relação com o outro. Portanto, eu tenho responsabilidade social"
Nos comentários a essa publicação, houve quem te dissesse para deixares “o fascismo, o comunismo e o socialismo para os políticos, porque o fado é fado e está acima disso”, ou que “o melhor mesmo é ir cantar para Cuba ou para a Coreia do Norte”. Esta é uma pergunta com várias partes: primeiro, como é que reages a este tipo de comentários? Segundo, porque é que ainda persiste a ideia de que um artista não pode ter a sua própria posição política?
Porque há muitos artistas que continuam a manter essa posição, não é? O que eu também percebo: o nosso país é muito pequenino, e é muito fácil tu queimares-te. Agora: acho que antes de eu ser uma pessoa famosa, antes de eu ser uma cantora, eu sou uma pessoa como outra qualquer. Eu vejo a vida a acontecer à minha frente, eu vejo o mundo a acontecer. Não acho normal que esteja a acontecer um genocídio e que eu, enquanto artista, tenha que estar calada no meu canto, porque eu quero é fazer concertos, e ganhar o meu dinheirinho, e fazer a minha vidinha.
O mundo não se faz assim. Eu não vivo sozinha, vivo em relação com o outro. Portanto, eu tenho responsabilidade social, porque eu tenho voz, eu apareço nos jornais, eu entro pela televisão das pessoas adentro, sem pedir licença. Vais no carro, ligas a rádio, se calhar levas comigo lá a falar. Eu preciso de não só dar a minha opinião, mas também de pensar que eu estou a falar, provavelmente, por muitas outras pessoas, que não têm voz, que não conseguem ter voz. Arrisco-me muito? Arrisco. Mas não sou só eu. Sou eu e muitas outras pessoas que conheço. E eu até me considero bastante controlada. Parece que tenho muito tempo nas redes sociais, mas não o tenho. Nem tinha visto esses comentários.
Tenho uma política: essas pessoas, caso queiram conversar comigo sobre esse assunto, se um dia me encontrarem, podem pedir-mo. Se o meu nome for para aparecer em revistas ou em jornais é pelo meu trabalho, não por arrufos de internet. O que é que é uma m**** de um comentário, meu? Sabes? É preciso ter uma conversa longa. Ainda por cima eu, que sou zero sucinta, sou prolixa máxima.
"Eu acho que um dos grandes segredos da vida é nós conseguirmos ir percebendo o que é que é bom para nós, o que é que funciona para nós"
A terceira era como é que se combate tudo isto, mas acho que já respondeste.
Há uma expressão que aprendi há pouco tempo e que adorei: “cabeça vazia, oficina do diabo”. Nunca a tinha ouvido, foi uma amiga minha, brasileira, que ma ensinou. Isso é incrível, porque é verdade. Se tu estiveres muito ocupado, não tens tempo para andar com comentários. Há uns anos decidi sair do Facebook, por causa destas coisas, que me faziam muito mal. E percebi, passado uns tempos, que havia pessoas que eu conheço que estavam chateadas umas com as outras. Porque há todo um mundo a acontecer ali nos comentários. Mas é um mundo que não é real. Para mim, para aquelas pessoas, pode ser.
Eu acho que um dos grandes segredos da vida é nós conseguirmos ir percebendo o que é que é bom para nós, o que é que funciona para nós. Para funcionar para o nosso melhor amigo não tem que funcionar para nós. Ter coragem para dizer: “não, calma, eu preciso de me deitar às nove da noite, eu queria mesmo ir jantar às dez convosco, mas não consigo”. É preciso ter coragem, porque nós temos sempre esta necessidade de pertencer a um grupo.
Continuando com as redes sociais. Publicaste, em novembro: «A sensação de que se é uma fraude aparece muitas vezes e bloqueia-me». A síndrome de impostor é uma constante na tua vida?
Sim. Sabes que a forma como nos vêem não é a forma como nós nos vemos a nós, não é? Faço muita terapia. Aconselho toda a gente a fazê-lo. Essa síndrome é uma coisa muito recorrente na minha vida e, ao longo de algum tempo de terapia, percebo de onde é que vem. Esta insegurança desta miúda que nunca estudou música, desta miúda que não foi para a universidade, que vive num país onde essas coisas são todas muito importantes – o canudo, o “Senhor Doutor”, a “Senhora Doutora”... Uma miúda que vem de uma família com poucas posses, que nunca foi escolhida em primeiro lugar para nada... Nunca houve muita fé em mim, sabes? Nunca senti muita fé em mim. Mas olhava para o lado e via que as pessoas acreditavam. E então, pensava: “vai!”. E comecei a olhar para mim como um cavalo de corrida. Vou, quero e faço. Nem que vá sozinha.
À “NiT”, disseste ser muito obcecada pelo silêncio. Numa era em que ele cada vez existe menos – entramos num supermercado e há música a tocar, vais no trânsito e ouves a rádio, corres no parque e levas os fones... –, iremos eventualmente perceber a sua importância?
Acho que tudo isto está tão cheio... Olho para o mundo e para as pessoas, quando vou na rua, como se fossem balões, todos prontos a rebentar. Cheios, cheios, cheios. E acho que a probabilidade de haver mais pessoas a ter essa necessidade é grande. Por outro lado, também não sei se, quando eu tinha vinte anos, havia uma miúda aqui sentada a falar com outro jornalista, ela com a minha idade de hoje, a dizer exatamente a mesma coisa.
Mas a verdade é que eu sempre fui obcecada pelo silêncio. Também tem ligação com o ter crescido numa casa com nove pessoas, havia sempre barulho; eu sou a mais velha de sete irmãos. Era tudo mais pequenino, havia sempre alguém a gritar, alguém a chorar, alguém a rir. E eu lembro-me de sonhar: um dia vou ter a minha casa e vou estar em silêncio...
Falamos da Gisela João como “a” Gisela João, artista solo, mas queria perguntar-te se, no futuro, te veremos a cantar noutros projetos: uns novos Atlantihda, por exemplo.
[Risos] Não. Os Atlantihda nunca foram um projeto meu... Mas não, não vejo essa hipótese. Fora, fiz o projeto “Mirrors”, com o Michael League, o Louis Cato, o Justin Stanton, a Becca Stevens. E foi um projeto que me deu muito gozo fazer. É muito difícil fazermos tudo com aquilo, porque todos temos agendas muito preenchidas. Mas não vejo isso de parte. Para mim, a coisa mais importante, sempre, é a música. Se eu gostar da música...
"[Daqui a 10 anos] espero poder cantar só quando me apetece"
Disseste à “TV 7 Dias” que um dia gostarias de representar. Em que tipo de filmes, peças de teatro?...
Fiz uma peça de teatro com os Praga, há uns anos, em 2017 ou 2018. E adorei. Mas eu gostava mesmo de fazer cinema. Mesmo, mesmo. Horror? Não. Gosto de filmes mais artsy, mais lado B, mais experimentais.
Daqui a dez anos, onde estará a Gisela João?
Acho que a minha vida não estará muito diferente. Espero ter uma vida mais segura e mais calma. Espero já ter dois ou três filhos. Espero ter muita música. E espero poder cantar só quando me apetece. Não é que eu não faça muito isso, já...
Para terminar, sei que sabes fazer um belo pudim de abade de Priscos. Mas e um panado como os do Xispes?
Os meus panados são melhores do que os do Xispes! Eram muito bons, mas eram muito grandes. E eu gosto de partir os panados aos pedacinhos para poder depenicar, sem ter que estar a cortar ou a dobrar no pão.
E quanto ao isquifante?
Lembro-me de uma vez ver a senhora... Eu e a minha amiga Raquel, uma vez, fomos ao balcão pedir uma garrafa de isquifante. Ela pegou numa garrafa que tinha sangue, de fazer um arroz de sarrabulho. Deitou água, abanou, deitou fora, meteu um bocado de sal, limpou aquilo e disse: “já está tudo limpo” e fez lá dentro a nossa bebida. Isto é verdade, é tudo verdade!
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