Estamos um pouco divididos quanto à manutenção da linha do norte, mas julgo que o comboio ainda é a forma mais romântica de aqui chegar. A estação é linda e descemos bem nas faldas da cidade, junto ao rio, antes do início da planície.

Ligo o motor e vamos logo direitos à Ribeira, essa mesmo que encantou Garrett e à qual chamou “pitoresco bairro”. Aqui cresci e daqui saí casado. Esta terra é cheia de memórias. Por exemplo, a freguesia é dividida pelo linha do comboio. Quando cresci podíamos brincar livremente na rua depois da escola, mas obviamente não podíamos atravessar a linha. Então havia a malta da linha de cima (que se subdividiam entre "os gajos da Igreja" e os "gajos da Calçada" (os mais finos de todos e onde fui arranjar casamento); e da linha de baixo, onde tínhamos  "a malta da Santa" — os meus — e a "malta de Palhais".

Esta Santa refere-se a uma estátua de Santa Iria, figura maior na mitologia da cidade, e estas divisões serviam para tudo, desde torneios de futebol a corridas de bicicleta e, de vez em quando, porrada "da boa". A Ribeira foi, até que o rio deixou de ser navegável, a zona portuária e burguesa da cidade. Talvez até princípios do séc. XX, mas já em franco declínio. As casas mais antigas ainda são simples, mas grandes. No meu tempo já era comum uma casa albergar duas ou três famílias, espaçosamente instaladas com simples construção ou omissão de uma ou outra porta.

É tão rica esta terra que podíamos passar aqui o dia todo e não esgotaria enredo. Temos mesmo de nos pôr a andar, mas pelo caminho ficam ainda com estas memórias: mais velhos, quando andávamos ao Liceu e já podíamos ir sozinhos ao rio depois das aulas, abríamos a época balnear em março e fechávamos em setembro. Sabem uma coisa? O bronze do rio nada tem a ver com os doirados do mar. É "castanho carregado" e dura mais tempo! E na época das cheias, quando o rio galga as margens, a desgraça dos pais era a nossa festa. Já pensou o que é andar na sua rua… de barco!? Não tem preço, embora a minha mãe não achasse graça nenhuma a ter a sala com água pelo meio da parede.

Subimos então ao centro da cidade. Sabem, Santarém foi bem pensada, está assente num planalto mais ou menos plano, do qual é possível controlar as planícies circundantes num raio de quilómetros. Devia ser uma cidade muito difícil de tomar de surpresa… Ainda é!

Talvez por isso seja tão antiga. Aqueles povos famosos das aulas de história devem ter tido aqui todos poiso: Fenícios, Gregos, Cartaginenses. Os romanos chamaram-lhe Scalabis, é por isso que somos Escalabitanos. O nome Santarém vem da Santa Iria, aquela mesma que vimos à beira do rio. Pergunto-me muitas vezes que nome terá no futuro! Nunca pensamos que o presente é uma parte transitória da história, pois não? Segundo algumas mitologias, somos “netos” de Ulisses e Calipso e talvez lhes tenhamos herdado a coragem e a rebeldia respectivamente.

Vamos agora dar uma volta breve pelos monumentos da cidade. Uma das características dos Escalabitanos de que não gosto é a falta de amor à cultura. Somos um povo prático, julgo eu, sem grande dificuldade em deitar abaixo um edifício centenário para construir um mamarracho de ferro e vidro que melhor convenha às necessidades mundanas e estéticas do momento. Valha-nos as instituições que nos obrigam a preservar, com alguma dificuldade, a traça nos locais mais emblemáticos. Tenho muita pena que não possamos exibir, à imagem de outras cidades, o peso histórico que vai para lá das igrejas, maioritariamente góticas, que se encontram espalhadas pela cidade.

Seguimos então até ao castelo, aqui chamado de Portas do Sol. É um local lindo, mas que conserva apenas a muralha e mais alguns "tesouros" meio enterrados, meio esquecidos pela população. Para a minha geração, havia aqui perto o único  cinema da cidade (que era, na realidade, uma sala de teatro), o Rosa Damasceno. Tinha uma sala e, acho, dois filmes diferentes, se não me falha a memória. Um principal e outro para a matiné. Mudava a cada 15 dias, imaginem. Muitas vezes a sessão continuava sentados na muralha, de costas para a segurança.

Se no tempo de D. Afonso I esta zona foi um importante ponto de controlo do rio e das planícies adjacentes, para os meus contemporâneos representou importante papel noutras conquistas. O primeiro beijo, a primeira mão nervosa por baixo da roupa, o primeiro amor, o primeiro sim, o primeiro não... eram muitas vezes vividos na discrição e no recanto da muralha. Hoje, é um sítio giro para trazer os filhos a brincar e partilhar um vinho numa esplanada com os amigos.

Mas vamos embora que ainda temos de ir ao antigo campo da feira. Aqui, junto à Casa do Campino (um espaço que se encontra escandalosamente subaproveitado) era realizada a Feira Nacional da Agricultura, aquela que para todos vocês se chama “feira de Santarém" e que agora é realizada numas instalações construídas especificamente para o efeito, junto à encosta oeste do planalto.

Já nada faz crer que aqui vivíamos um dos pontos mais altos do ano, talvez o momento em que o espírito da cidade mais se fazia sentir na sua plenitude. Daquele lado ficava a exposição das máquinas, ali as cavalariças que podiam ser visitadas. Uma manga larga em U albergava a exposição de animais de um lado e as famosas largadas de toiros (que para nós se chamam picarias). Um aspeto muito curioso é que as "varolas", os barrotes que constroem o "cercado" eram muito velhos e os touros (ou vacas) tinham muita facilidade em rebentá-las e fugir para o recinto. Era quase diário o alarme de "O boi fugiu!" e era uma festa ver toda aquela gente a procurar abrigo como podia. Acreditem, até nos telhados se via gente. Não era incomum os animais fugirem para o meio da cidade. Quem pegasse o boi, quem salvasse o amigo da cornada certa, quem fizesse uma cabriola colorida ao animal, seria herói durante dias.

À volta do cercado, bares, barzinhos e petisqueiras animavam o corpo e a alma. Somos amantes da festa brava e gostamos de um petisco como poucos. "Quem não presta para comer, não presta para trabalhar", dizia-se por todo o lado. Reminiscências da nossa ligação ao árduo trabalho do campo, julgo eu!

Nos últimos anos houve um franco desenvolvimento da restauração local. Comida boa sempre tivemos — estamos em Portugal meus senhores, numa zona de agricultura belíssima. Aqui tudo se dá! Mas não é isso. Desenvolveram-se algumas cozinhas de autor e a oferta cultural também enriqueceu um bocadinho. Numa altura em que as corridas nas cidades são moda, orgulhamo-nos de ter dois grupos com enorme adesão, um deles dos mais antigos do país.

Não podem ir embora sem vos levar ao centro histórico que, apesar de não viver os melhores dias, continua lindo e convida ao passeio. Parece-me que as sucessivas governações autárquicas, cada vez mais dependentes das agendas partidárias, têm vivido mais preocupadas em deixar carimbos de betão do que em dar vida à cidade. Mas nisso, a responsabilidade também é de todos nós, que não percebemos ainda que a democracia pressupõe a existência de uma forte sociedade civil, que limite, controle e regule o poder e as ações dos políticos, que devemos depender o menos possível de Câmaras e Estado. Há tanto que podemos fazer, mesmo sem dinheiro. Queremos a liberdade da democracia e a dependência da ditadura. Temos de escolher uma ou outra, e aceitar o que vem com ela.

Enfim, não somos perfeitos, mas somos duros e casmurros. Quando muitos queremos, conseguimos fazer acontecer e cada vez vejo mais gente a "querer" em Santarém.

Muito ficou por mostrar e falar. É um escândalo nada dizer sobre o festival de gastronomia, festas da cidade, Torre das Cabaças, o mercado… o meu adorado liceu! Enfim, tanta, tanta coisa.

A verdade é que não precisamos ser presidentes de Câmara, Secretários de Estado ou boys de nenhum partido para fazer pela nossa cidade. Podemos querer, juntar pessoas que também queiram e simplesmente fazer!

Mas pronto, este passeio fica por aqui que o dinheiro que pagaram não dá para mais. Querem que vos deixe no comboio ou preferem que vos leve a um hotel muito porreiro, onde por acaso trabalha uma prima minha, e ficam para amanhã?

Hugo Mendes estudou Engenharia Biotecnológica mas a paixão pelos vinhos falou mais alto e desde a vindima de 2006 que se dedica por inteiro à enologia. Quinta da Murta, Quinta das Carrafouchas e, mais recentemente, Vale das Areias são marcas às quais está intimamente ligado. Amante da comunicação da arte aos consumidores, é presença habitual nas redes sociais desde 2008, altura em criou um blog dedicado a mostrar o lado de dentro da produção de vinhos. Tornou-se produtor em nome próprio na vindima de 2016, tendo para isso realizado o primeiro crowdfunding em Portugal para financiamento de um vinho.

A Minha Terra é uma rubrica especial do SAPO 24 em que várias pessoas são convidadas a falar da sua terra, "à boleia" das eleições autárquicas do próximo dia 1 de outubro de 2017.

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