A tatuagem "já foi uma das poucas formas de identificação de um indivíduo", explica o Ministério da Justiça no anúncio da exposição "Tatuagem", que vai estar no MUDE - Museu do Design, em Lisboa, entre Dezembro e 1 de Março de 2017, da responsabilidade do Instituto Nacional de Medicina Legal.

O texto aborda ainda o lançamento do livro "Álbum de Tatuagens", da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que relembra como, em 1915, "se inscreviam todas as tatuagens dos reclusos, com o intuito de fazer um correto reconhecimento do indivíduo e estudar o seu percurso de vida através da iconografia tatuada". No álbum, eram reproduzidas as imagens inscritas nos reclusos "mas também se registavam a respectiva localização no corpo" e dados do processo. "Muitos reclusos apenas sabiam identificar outros com quem tinham cometido crimes através das tatuagens que tinham ou pessoas com quem se tinham cruzado", pelo que surgiam alcunhas como o "Manuel das cruzes", provavelmente uma pessoa com várias cruzes tatuadas.

"Nos inúmeros desenhos de tatuagens encontram-se elementos como nomes de pessoas, barcos, aviões, peixes, armas, condecorações, elementos iconográficos que remetem para aspectos políticos, culturais e religiosos, entre outros". São precisamente estes aspectos que estão agora a ser motivo de polémica, por um programa semelhante, mas actualizado tecnologicamente e que recorre a algoritmos de identificação biométrica nos EUA.

Ameaça às liberdades

Há dois anos que o FBI norte-americano tem um programa para reconhecimento de tatuagens. Segundo revelou recentemente a Electronic Frontier Foundation (EFF), este programa levanta sérias questões sobre a Primeira Emenda da Constituição do país, relativa à liberdade de expressão. O programa de identificação tecnológica de "tattoos" foi lançado pelo National Institute of Standards and Technology (NIST) em 2014, usando uma base de dados de 15 mil imagens, recolhidas pelo Biometric Center for Excellence do FBI a prisioneiros ou outras pessoas simplesmente mandadas parar na rua pela polícia, mas registadas sem o seu consentimento, critica a organização de defesa de direitos digitais.

As tatuagens "podem revelar quem somos, as nossas paixões, ideologias, crenças religiosas e até as nossas relações sociais", diz a EFF, salientando que é por tudo isso que os "algoritmos automatizados" ameaçam as liberdades civis.

Símbolos selectivos

As tatuagens podem representar "erros que fizemos na juventude", mas também serem "símbolos que representam a herança étnica ou o orgulho nas filiações, como as unidades militares, a pertença à igreja ou a ideologia política", assim como de "músicos ou filmes que nos encantaram" e o nascimento ou morte de familiares. Ou, até, serem sinais médicos que podem ajudar numa emergência. Em resumo, diz a EFF, as tatuagens "revelam onde estivemos, quem somos e quem esperamos ser".

Elas são uma forma selectiva e expressiva das pessoas demonstrarem as suas crenças pessoais e, para as forças de autoridade, de identificação "cultural, religiosa e política", segundo a EFF, apesar de assim poderem ajudar na identificação policial ou por videocâmaras de membros de "gangues, sub-culturas, crenças religiosas ou ritualísticas, ou ideologia política".

Para as autoridades, são "apenas identificadores biométricos". É nesse campo que se coloca o problema da liberdade de expressão, dado uma tatuagem ser algo inscrito "na nossa pele", pelo que a sua identificação automática levanta questões relativas à Primeira Emenda.

A tecnologia de reconhecimento dos "tattoos" permite efectuar "ligações entre pessoas com tatuagens temáticas similares ou fazer inferências sobre as pessoas a partir das suas tatuagens". O alerta da EFF surge no âmbito de uma campanha mais generalizada sobre o acesso das autoridades a tecnologias biométricas - como o reconhecimento facial ou da íris e as impressõs digitais.

Exploração privada

O programa "Tattoo Recognition Technology" tem três vertentes: Evaluation (Tatt-E), Best Practices (Tatt–BP) e Challenge (Tatt-C). Este último foi o responsável pelo registo das 15 mil imagens, recolhidas entre Setembro de 2014 e Maio de 2015, que "foi distribuído a 19 organizações - cinco instituições de investigação, seis universidades e oito empresas privadas".

Vários documentos mostram que o conjunto de dados "foi fornecido a partes terceiras com reduzidas restrições sobre quem pode aceder às imagens e durante quanto tempo elas serão mantidas", diz a EFF, salientando que algumas dessas imagens são de "partes íntimas dos corpos". A organização pretende que as cópias dessa base de imagens sejam devolvidas e destruídas.

A organização afirma ainda que as imagens do programa do NIST foram parar às mãos de empresas privadas como a MorphoTrak, "uma das maiores" no negócio da identificação pessoal biométrica, e sem "escrutínio ou validação ética" para a sua exploração. A MorphoTrak é a subsidiária norte-americana da Morpho, empresa da Safran (ex-Sagem Défense Sécurité), e está envolvida no reconhecimento de tatuagens desde 2009, em projectos de investigação com a Michigan State University (MSU) para "o desenvolvimento de identificação avançada e técnicas de análise para investigações criminais".

Falhas éticas

Para a organização de defesa de direitos civis, por outro lado, o programa de investigação do NIST "está tão cheio de problemas que a EFF acredita que a única solução para o governo é suspender o programa imediatamente", escrevia em Junho passado, nomeadamente por as imagens obtidas coercivamente a presos conterem "informação pessoal ou simbolismo religioso ou político".

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Os investigadores do NIST "falharam" nos protocolos que deviam ser seguidos na investigação com humanos, ainda segundo a EFF, e apenas "pediram autorização dos supervisores após o primeiro maior conjunto de experiências estar completo", sem lhes revelarem a origem das tatuagens. Assim, o NIST e o FBI "tratam os prisioneiros como um fornecimento infindo de dados gratuitos".

O NIST assegura que a base de dados não se integra na regulação federal de investigação científica sobre humanos, mas reconhece que as "tatuagens fornecem informações valiosas sobre as filiações ou crenças de um indivíduo e podem suportar a verificação da sua identidade". Após as críticas da EFF, a instituição federal removeu referências públicas às tatuagens religiosas ou políticas.

O problema é que os investigadores ligados a instituições governamentais estão obrigados a um conjunto de regulações e princípios éticos, conhecido por Common Rule. Este foi "adoptado por mais de 15 agências federais, incluindo o NIST", refere a EFF, mas o projecto Tatt-C não seguiu essas regras, apesar de lidar com presos. Os investigadores envolvidos declararam não saber que isso era requerido, ainda segundo a organização.

O FBI ainda não comentou o assunto.

Mais 100 mil tatuagens

Este Verão, o NIST pretende activar a próxima fase do programa, o Tatt-E, com o registo de mais 100 mil imagens de "tattoos", provindos das autoridades nos estados da Florida, Michigan e Tennessee. O organismo federal está aparentemente a seguir os protocolos da Common Rule, nomeadamente nos pedidos de aprovação aos seus superiores, e salienta em documentos internos que a identificação pela tatuagem pode ser útil em casos de catástrofes ou de crimes.

Isso já sucedeu no Brasil, onde a identificação de uma jovem foi conseguida pela tatuagem que tinha num braço.Mas, como demonstra Oren Segal, director do Center on Extremism da Anti-Defamation League, estas imagens são problemáticas, porque os mesmos símbolos tatuados podem - além de estarem desactualizados perante devaneios juvenis - ter sentidos duais.

Por exemplo, a imagem dos martelos cruzados do grupo racista skinhead Hammerskins é também usada pelos fãs do álbum "The Wall", dos Pink Floyd. E mesmo a suástica nazi é um "símbolo sagrado e tem um significado espiritual para os nativos americanos, budistas e hindus".

Créditos/ Foto de destaque

Uma tatuagem feita por Dave Lum, um "tattoo artist" (Museu da Tatuagem de Amesterdão)