De olhos postos na "alvorada da lua" e na "lua branca", nasceram em 2010 os Albaluna, uma banda de música do mundo com origem na cidade de Torres Vedras, no distrito de Lisboa. As influências têm sido várias ao longo dos anos: música tradicional portuguesa, sons medievais, rock progressivo, folk, música turca, árabe e afegã. Tudo o que tiver história e permitir explorar instrumentos tradicionais étnicos — ou adaptar os mais comuns e transversais a várias culturas — tem lugar na vida destes músicos.

Ao fim de onze anos de projeto, a História cruza-se com as histórias. Foram à Índia, Turquia, China, Marrocos, Espanha, França, Alemanha, Itália. Passaram por vários pontos do país, mas o mundo lá fora, com a sua diversidade de culturas, grita mais alto. Dizem que se sentem bem em qualquer parte, desde que possam sentir tudo — e dar a sentir — pela música.

Em 2020, apesar da pandemia, arregaçaram as mangas. Tempo em casa é tempo para criar. As viagens param, mas não a música. Na próxima semana, a 6 de março, lançam um novo álbum, "Heptad", que conta uma viagem pela rota da seda. Mas tanto mais há a contar antes de se ouvirem as novas músicas.

Aqui, em quatro capítulos.

1. A família Albaluna

2. Porque o mundo é todo casa

3. Da pandemia surgiu "Heptad", um "estoiro emocional"

4. "A magia acontece-te à frente"

1. A família Albaluna

Apresentam-se em sexteto, tendo já sofrido algumas mudanças durante o percurso da banda: são, atualmente, o Ruben Monteiro, a Raquel Monteiro, o Dinis Coelho, o Christian Marr’s, a Carla Costa e o Tiago Santos. Pertencer aos Albaluna é pertencer a uma família que viaja para tocar e para adquirir conhecimento — e isso nem sempre encaixa no dia-a-dia de qualquer pessoa. Dizem que é preciso ter amor à camisola para sobreviver neste sistema. O mote, esse, é simples: "Aqui somos todos lenha, fazemos parte da mesma fogueira", resumem.

Tudo começou com Ruben, que, além da música, tinha um percurso relacionado com História e Arqueologia. "Eu sempre estive mais relacionado com o metal, com o rock, etc. E quando comecei a estudar Arqueologia entrei em contacto direto e académico com uma série de culturas que despertaram a minha curiosidade, essencialmente culturas mais orientais. Fui descobrindo também música relacionada com essas culturas e apaixonei-me de tal forma que decidi focar-me neste universo da música do mundo", começa por contar ao SAPO24.

Com ele, ainda antes de haver o nome Albaluna, estavam Raquel e Dinis. Foram tocando e aperfeiçoando ideias, "como em qualquer processo de amadurecimento".

Para Raquel, que tocava violino, foi preciso alargar horizontes. "Estudei no Conservatório em Torres Vedras, a escola clássica, e fui sendo, progressivamente e cada vez mais, influenciada pela música de outras culturas. A forma de tocar e as músicas que se procuram e estudam passam a ser outras, passou a ser outro o foco", aponta.

Já Dinis, que começou numa banda filarmónica, era o percussionista que faltava para o início do projeto. E depressa se deu a adaptação. "Sempre tive gosto por alguns instrumentos étnicos, então ao longo dos anos, conforme a necessidade e os caminhos que o projeto foi levando, fui aprendendo alguns instrumentos relacionados com culturas que estávamos a explorar", explica. Até hoje, diz já ter tocado mais de 30 diferentes.

Em 2014 chegou Christian Marr’s, que tocava baixo e guitarra, principalmente em bandas de rock e metal. Todavia, partilhava a outra paixão de Ruben. "Tive um percurso ao mesmo tempo muito ligado à História, na universidade. Acabou por fazer todo o sentido quando integrei o grupo, apesar de não conhecer tanto as culturas que aplicávamos aqui e o tipo de música. Já tinha algum interesse, ainda um bocadinho platónico, e mergulhei num mundo diferente. Também tive sempre muito interesse em escrever, principalmente poesia, e felizmente tenho a oportunidade de usar algumas das coisas que escrevo como letras para as músicas", desvenda.

Um ano depois, em 2015, Carla juntou-se ao grupo, trazendo os instrumentos de sopro consigo. "Até à banda foi um percurso à volta da música tradicional portuguesa e da música tradicional europeia, música irish e francesa", começa por dizer. "Nos Albaluna tenho tido uma abordagem não tão focada no ocidente, mas para criar uma grande fusão entre a música étnica e a música atual".

Por fim, chegou Tiago Santos, em 2019. "Aos 10 anos comecei a ter aulas privadas e depois comecei a tocar em bandas aos 16. Fiz todo o tipo de coisas, desde bailes, bares, tudo", relembra.

Apesar de o ponto de partida não ser o mesmo, a banda uniu esforços para encontrar um caminho comum. No início, as "influências da música tradicional portuguesa e da música medieval" são notórias, começando depois a surgir "alguns toques mediterrânicos, com umas influências orientais", explica Ruben, mentor do projeto. "Tínhamos música com guitarra portuguesa, com bandolim, usávamos muito o bouzouki, um instrumento na sua origem grego, mas a nossa versão era o irlandês", exemplifica.

Numa segunda fase, após travarem conhecimento com Éfren López, que se dedica também à música do mundo, mais caminhos se desenharam. "Desbloqueou-se aí uma porta para deixar de ser só uma curiosidade. Percebemos que existia aqui a música turca, árabe e afegã, então deixou de ser uma ideia platónica para ser uma realidade", recorda.

Mas essa realidade implicou um processo complexo. Não é só conhecer e tentar replicar, é preciso estudar e procurar ir além. "Os Albaluna são uma família que partilha uma paixão, viajamos juntos não só para tocar, mas para ir aprender ou procurar professores e encontrar instrumentos", diz Ruben. No fundo, é um caminho em que "todos têm de ir beber à mesma fonte".

Neste caminho, apesar das influências ditas tradicionais, tinha de haver espaço para a modernidade. "Começámos a ficar muito conotados com a música étnica, mas temos no nosso sangue uma cena brutal, que é o rock progressivo e está sempre a fervilhar, com as guitarras, o baixo, a bateria. Depois foi fundir estes dois mundos tão diferentes, tem sido esta a nossa luta. Não é só esta loucura com a música tradicional e étnica de determinado sítio, é também esta loucura com o rock progressivo, que faz parte da nossa vida", nota o fundador da banda.

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créditos: Albaluna

2. Porque o mundo é todo casa

De uma pequena cidade do Oeste de Portugal fizeram-se ao mundo: Índia, Turquia, China, Marrocos, Espanha, França, Alemanha, Itália. Não fosse a pandemia e teriam já ido ao Egito.

Christian "agarrou muito as rédeas da missão internacional". É holandês, tem muita facilidade com línguas e acaba por ter este gosto dos contactos internacionais, por "esta parte mais burocrática e institucional". E em todo o lado se fazem contactos — e se ganham amigos.

"Conhecemos uns músicos egípcios em Marrocos, em 2019, e através dessa amizade que se criou, de repente tínhamos no nosso email um convite da biblioteca de Alexandria, que é uma coisa de que nenhuma banda portuguesa se pode gabar", conta o baixista com entusiasmo. "Ficámos completamente histéricos, porque historicamente é um sítio que representa o que representa. É um monumento, é uma das grandes maravilhas do mundo, apesar da destruição da biblioteca original", lembra.

"A nossa intenção primária é exportar aquilo que fazemos. Não fazemos música local nem regional"

"Estava tudo organizado, tudo perfeito. E no momento em que está fechado o contrato... acabou, porque veio a covid-19. Há um ano e tal que estamos a tentar remarcar e manter essa ideia de ir a Alexandria. Mas mesmo no Egito está complicado. É raro haver um raio de esperança em qualquer parte do mundo", lamenta Christian.

Ruben aponta o caricato da situação. "As músicas são muito bem recebidas [no estrangeiro]. Aí ninguém te conhece, ninguém percebe o que tu dizes. Ninguém te viu antes. E tens uma ou duas músicas para fazer com que aquela gente vá à loucura — e vão mesmo. Não fazem ideia do que estamos a dizer, mas sentem que é super verdadeiro. Isso dá-nos muita força", começa por referir.

"Tivemos várias críticas em revistas internacionais. Mas em Portugal... quase zero. E é onde percebem o que nós dizemos. Se calhar é por causa disso!", diz a rir. "Estes cantam em português, se calhar o melhor é ignorar".

Contudo, a banda não esconde que o principal objetivo é mesmo triunfar além fronteiras. "A nossa intenção primária é exportar aquilo que fazemos. Não fazemos música local nem regional. Há muitas bandas que cantam em português que têm essa dimensão, mas nós sempre quisemos o contrário", explica Ruben.

"Como a nossa música se inspira em muitas culturas, sempre tivemos essa curiosidade de ir aos sítios originais. Talvez por termos essa coragem e dedicação é que as coisas nos acontecem assim. Quanto mais se viaja, quanto mais se contacta com o mundo, melhor se percebe que vivemos num país mesmo muito pequenino, onde não há espaço para todos. Como dizia o meu avô, Portugal é Lisboa e o resto é arredores", acrescenta.

Para Raquel, no exterior "há mais respeito e valorização". "Acho que é um questão um bocadinho cultural, não há uma grande valorização da cultura e da arte, mesmo os programas que já estão inseridos nas escolas são escassos", diz.

E o que é que justifica o sucesso lá fora? Ruben não hesita em explicar — e fá-lo com gestos de aprovação de todos os elementos dos Albaluna:

"Portugal é um país muito lindo e gostamos muito de voltar ao cantinho, ainda por cima vivemos aqui no Oeste, onde temos mesmo esta sensação de aconchego. Mas é isto, é um cantinho engraçado que nos acolhe. Há muita gente muito capaz e muito boa, que maioritariamente se destaca quando vai para fora. Há sempre esta ideia de que 'santos da terra não fazem milagres' e não é um ditado à toa. Vais contactar uma Câmara ou uma biblioteca e pura e simplesmente te ignoram. Não querem saber porque ainda não ouviram falar de ti no telejornal ou numa revista", exemplifica.

Apesar das dificuldades, admitem o valor da cidade que os acolhe. "Temos uma terra com alguma dinâmica cultural. Em Torres Vedras temos uma relação boa com a vereadora da Cultura e com o presidente da Câmara. Levam-nos a sério, conversamos com alguma regularidade sobre estes assuntos e sobre projetos. Percebem esta dimensão", diz Ruben. E o mesmo acontece noutros pontos do país, por onde vão também passando.

créditos: Albaluna

Apesar disso, Tiago refere também que "é mais fácil" serem "acarinhados lá fora" porque os Albaluna "são uma banda muito diferente daquilo a que se está habituado".

"O que em Portugal algumas pessoas acham estranho, nos outros países desperta curiosidade e ficam coladas ao concerto do início ao fim. O feedback tem sido muito bom, lá as pessoas realmente dão valor ao trabalho", refere.

Christian vai mais longe diz mesmo que, em Portugal, "as pessoas acham muitas vezes que todo o trabalho da banda surge um bocadinho do ar". E tem uma história que o exemplifica.

"Uma vez, aqui num café em Torres Vedras, de repente estava com o baixista de uma das bandas portuguesas mais conhecidas e ele diz-me assim: 'Puto, como é que conseguiram ir à Índia?'. Como assim? Nós fazemos o nosso trabalho. 'Mas vocês não tem agentes?'. Não, somos os nossos próprios agentes. Temos os nossos contactos, num lista feita ao longo dos anos. Temos cerca de 15 mil nomes que são contactados todos os anos e que sabem de nós. Em Portugal fizemos uma espécie de tratado de Tordesilhas, dividimos o país entre nós [ao nível dos contactos a fazer]", conta.

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3. Da pandemia surgiu "Heptad", um "estoiro emocional"

São vários os álbuns dos Albaluna: "Dantes", "Alvorada da Lua", "Nau dos Corvos", "Amor, Ira e Desgosto" — e, agora, "Heptad", uma construção em sete músicas, como o nome sugere. Ao longo dos anos, mais do que apenas apresentarem álbuns com diferentes sonoridades, a evolução passou também pela palavra.

"Inicialmente não havia uma preocupação tão poética, depois os álbuns tornaram-se também um livro de poesia que as pessoas podem ler, em português. Agora há uma preocupação muito forte com a palavra", começa por dizer Ruben.

Quanto ao novo álbum — cujo pré-lançamento acontece a 5 de março, numa escuta partilhada com a banda no seu canal de YouTube, estando depois disponível em todas as plataformas no dia seguinte, 6 de março —, Ruben diz que este é "um grande estoiro emocional". "Pela primeira vez, assumimos toda uma série de misturas de elementos culturais, num nível de profundidade diferente", refere.

Neste processo, o confinamento a que a pandemia obrigou fez-se acompanhar dos ingredientes necessários para a criação de algo novo. Todavia, nem sempre foi fácil.

"Inicialmente, [o confinamento] foi libertador, no sentido em que podíamos parar e não fazer nada. Mas depois trouxe muitas revoltas e, claro, acabámos por contrariar a teoria de que a arte está a acabar, de que o mundo vai acabar e de que não há cultura", aponta.

"O artista vai sempre fazer, vai sempre criar. A arte não morre jamais. Então pensámos: se o mundo vai acabar ou se podemos nunca mais tocar na nossa vida, então vamos dar tudo. Sempre demos tudo", diz.

"Esta pandemia é uma prova. Quem é que vai manter essa gana? E quem é que vai dizer que isto não está a dar?"

Para que fosse possível o novo projeto houve também um importante empurrão: o apoio da Direção-Geral das Artes (DGARTES).

"Candidatámo-nos a um dos projetos da linha de apoio às artes — que também está envolvida numa série de controvérsias, mas concorremos. Qualquer grupo podia concorrer e nós avançámos com um projeto muito curioso, que envolve música, dança e poesia, inspirado nas culturas da rota da seda. É aquilo que nos move: música de hoje, feita com as influências atuais e com a música étnica", explica.

E o álbum nasceu. "Houve alguém que percebeu que aquilo que estamos a fazer não é um trabalho freaky, não é pegar nos instrumentos e pum-pum-pum, pá-pá-pá", caricatura. "Nós vamos aos sítios, estudamos os instrumentos, estudamos as culturas, sabemos os nomes de tudo e de mais alguma coisa. Acaba por ser até doentio", reflete. "Olhamos para a nossa música quase como um documentário. Vamos buscar coisas reais e transformamo-las para a nossa realidade — mas preservamos os verdadeiros elementos", conclui o mentor do projeto.

Em "Heptad" chegam essas histórias, com "sete composições, sete poemas do Christian", que transportam quem ouve a música até à rota da seda: "vislumbra-se toda a magnitude da natureza, das pessoas, da cultura".

Apesar das influências ancestrais, há modernidade na música (a ouvir nos sublinhados). "É uma viagem intemporal. Tem baixo e bateria e isso transporta-te para hoje, mas também se ouvem todos os instrumentos com milhares de anos, como o rubab afegão e as tablas, o baglama turco e o ney turco, a sanfona e o riqa viola medieval e o oud árabe. Alguns são instrumentos que são tocados desde os primórdios da humanidade", acrescenta.

"Heptad" conta a história de um viajante que transporta a banda na sua essência. "Essa personagem acaba por ser cada um de nós, nesta luta, fechados aqui. [Construir este disco] foi uma forma brutal de nós viajarmos", refere Ruben.

"Somos como atletas de alta competição: se nos encostarmos à box, quando voltarmos a correr não dá mais"

Afinal, é preciso ultrapassar o desgosto com a criação artística. "Este ano que passou teve dias de tristeza profunda, mas conseguimos ir vislumbrando [um caminho]. Com uma dose de loucura brutal, mesmo muito grande. Quando está toda a gente a dizer ‘não', tu dizes ‘sim' e continuas, não paras. Quem não tem essa loucura leva com três ‘nãos’ e desiste. Só que o ‘sim’, quando vem, é muito bom. E nós tivemos este ‘sim’", diz.

"Há bandas que servem para ganhar dinheiro, a nossa é uma banda da alma. E enquanto ela existir, que é enquanto estivermos vivos, vamos sempre fazer coisas, independentemente do que aconteça. É preciso manter a chama acesa", diz Ruben. "Por mais difícil que seja, os artistas têm de se manter, com essa consciência de que, quando as coisas ganharem mais alento, temos de estar na nossa melhor forma. Somos como atletas de alta competição: se nos encostarmos à box, quando voltarmos a correr não dá mais".

"Esta pandemia é uma prova a isso. Quem é que vai manter essa gana? E quem é que vai dizer que isto não está a dar? Tu estás sempre a dar, vais arranjar sempre forma de dar, não sabes fazer outra cena. É o teu caminho, não é porque agora não ganhas tanto dinheiro que vais dizer que não dá. Tu é que não estás a dar — e a responsabilidade é tua", remata.

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4. "A magia acontece-te à frente"

Quando se olha para os Albaluna saltam à vista os "instrumentos exóticos". Pode não se saber o nome nem ao que soam, mas assume-se à partida que deverão ter vindo de longe. E em cada um deles há uma história: podem ter sido comprados num impulso, por sugestão de alguém, porque foi amor à primeira vista ou um acaso do destino. Há também os mais comuns e modernos, que depressa são adaptados para adquirir a sonoridade pretendida para o projeto, o que representa também um desafio.

Dinis Coelho deixa desde logo um aviso: "não são instrumentos fáceis de aprender, não é pegar e tocar. Até se tocar minimamente bem demora muito tempo, as coisas têm horas de investimento", garante. Raquel Monteiro acrescenta outro aspecto: "nem são fáceis de se comprar, pelo seu preço, ou por ser difícil de se encontrar à venda".

Quando olha para estes instrumentos, Carla Costa vê viagens e histórias. "Nós conseguimos ir com a nossa música a uma série de países onde estes instrumentos se tocam. E apaixonamo-nos por eles nos sítios onde são tocados, então vamos beber a uma fonte que é super genuína", começa por explicar.

"O Dinis foi à Índia e comprou lá as tablas e viu tocadores geniais", exemplifica. "Nós vamos aos sítios, voltamos para casa não apenas com um instrumento, mas com uma carga emocional. Trazemos aventuras que nos fazem depois querer embrenhar naqueles instrumentos", conclui.

E o percussionista confirma. "É incrível estares com pessoas à tua frente e estares ali a aprender e a absorver tudo. A magia acontece-te à frente", conta Dinis.

"Voltas [a casa] com os instrumentos, com histórias, e vais compor música que tem trechos disto tudo. Deixa de haver fronteira. Há esta conexão com o mundo, com a música do mundo, com os instrumentos do mundo", acrescenta Ruben Monteiro.

"Podias falar nos Albaluna como os gajos que até as mãos arrancavam para que a música deles fosse ouvida no mundo inteiro"

O mentor do projeto não esconde a emoção envolvida nestes episódios: "Para trazer cada um destes instrumentos comigo, quase que chorei com todos. Cada coisa que acontece aos meus instrumentos é, para mim, um prego num dedo. Isto é paixão, é dedicação", frisa.

Ruben faz um paralelismo com o futebol, desporto que não desperta qualquer paixão em si — mas há uma figura a que dá destaque. "Acho que o futebol é uma cultura super básica. No entanto, sou super fã do Cristiano Ronaldo. Quando o vejo chega a trazer-me lágrimas aos olhos. Um gajo que seja apaixonado por aquilo que faz e tenha a pretensão de ser o melhor consegue mesmo fazê-lo. Aquilo é visceral. Se fosse preciso, ele arrancava ali um pé no jogo para marcar um golo. Não tenho a menor dúvida! E esse tipo de luta é a nossa", diz. "Podias falar nos Albaluna como os gajos que até as mãos arrancavam para que a música deles fosse ouvida no mundo inteiro. Isto só tem a ver com o sangue a ferver e a gana", conclui.

Para a "magia acontecer", como refere Dinis, os Albaluna fazem questão de escutar e estudar os instrumentos na origem, abraçando depois o desafio de levar esse som a todo o mundo.

Ruben recorda uma ida a Istambul, na Turquia, em que saiu de casa para procurar um rubab afegão, mas voltou com uma das paixões da sua vida: o baglama turco.

"Fui ao Grande Bazar — que é o mais famoso do mundo e um labirinto —, por indicação do Efrén Lopéz, para ir procurar um senhor afegão, que me ia levar a um sítio. Era quase uma ordem secreta! Não era uma loja de música, era o espaço de uma família afegã que, com a invasão dos talibãs, fugiu para vários lados e abriu lojas de móveis, jóias, antiguidades, tudo o que se possa imaginar. E lá pelo meio tinha instrumentos", começa por contar.

"Eu não conseguia dormir nunca mais na minha vida enquanto não encontrasse o instrumento. Meti-me lá no meio daquilo e pensava 'este gajo tem ar de afegão' e ia perguntar se sabia quem era o não sei quantos. Andei ali horas, para trás e para a frente. Passado montes de tempo há lá um que agarra em mim, um gajo muita grande, e leva-me lá para trás para um armazém daqueles em que parece que me vão arrancar coisas fora. E dá-me um grande abraço e vamos embora, a falar do rubab. [A loja dele] parecia uma cena tipo Ali Babá, cheio de móveis e carpetes e tapetes", recorda.

"Estive horas a falar da minha família, da banda e ele sobre os filhos. E eu a olhar para o instrumento lá ao fundo... mas lá consegui um rubab todo escangalhado. Vinha mesmo só a carcaça. Lembro-me de vir com aquilo embrulhado naquelas bolhinhas de ar, pelo Grande Bazar fora, a correr, com as lágrimas nos olhos. Parecia um maluco, acho que parecia mesmo um tresloucado. ‘Tenho aqui um rubab, deixem-me passar!’", conta Ruben.

Mas a história não fica por aqui. Se parecia que a viagem estava feita, a cidade tinha ainda uma surpresa. Ao visitar o que havia sido Constantinopla, Ruben foi dar à zona da Gálata, uma das mais famosas de Istambul.

"Ai, mãezinha... fomos dar a uma rua em que eram só instrumentos tradicionais. Ai, meu amor! O que é que vai acontecer... Vou morrer aqui! Começámos naquela loucura do entra numa loja, entra na outra e ainda havia esta e outra, e outra. Um gajo dava já cabeçadas nos instrumentos, com o pessoal a olhar. Cordas, caraças! O gajo vende cordas! Eu tinha um baglama muito ranhoso e se partisse uma corda era uma depressão, não havia mais nenhuma. As palhetas... tinha duas, agora temos 300! Eles agarravam nas palhetas e mandavam-nas assim ao ar!", conta a rir, enquanto gesticula.

E foi numa dessas lojas, a Naturel Müzik, que encontrou a sua grande paixão. "É uma loja muito famosa lá, que reunia muitos músicos. Eles começaram a construir os instrumentos em família, é uma história muito bonita. Eu conheci o pai, o Hasmet Aslan, falei com ele sobre música e passou-me um baglama para a mão, toquei uma música e ele disse-me que eu tinha de o levar. E eu disse que não podia, contei que tinha comprado o rubab e outras coisas para a Carla e não dava", refere.

"Mas ele disse-me que não interessava, que eu tinha de o levar. Ainda por cima tinha sido uma fase complicada de dinheiro, mas lá fui ver quanto é que tinha na conta e disse que tinha tanto. E ele respondeu que não tinha problema. 'Dá-me esse dinheiro, o que importa é que leves isto'. E fiz isso e fiquei super enlouquecido. Eu fui por causa do rubab e cheguei a só querer tocar baglama. Comecei mesmo a estudar à séria, a procurar professores e tal. Nunca mais acabou, até hoje. Há esta ligação infinita: sinto que eu é que fui levado para esta cena, isto é que me conquistou. Não fui eu que fui procurar o baglama, isto é que me puxou. E prometi que quando lá voltasse levava um disco com baglama gravado. E foi o que fiz", remata.

Dinis recorda-se bem da viagem que levou este disco com baglama à Turquia: "Não era suposto irmos para Istambul, mas nos anos eles juntaram-se todos e ofereceram-me uma espécie de vale com uma fotografia de um instrumento que eu queria muito comprar, a dizer que iam lá por mim comprá-lo se quisesse", conta entre risos. "Achei generoso, mas não me contive e tive de ir lá eu comprar e trouxe mais uns quantos atrás".

Os "mais uns quantos" foram pelo menos sete, comprados na loja Emin — e com a oportunidade de conhecer quem constrói os instrumentos.

"Estamos a falar de uma loja super conhecida no mundo inteiro, daquele tipo de instrumentos de percussão, e a pessoa que os constrói há 20 anos quis-me conhecer porque eu ia levar um instrumento dele. E fez questão de vir ter comigo, perceber o que eu fazia, tocar comigo, estar connosco. É espectacular", recorda.

Mais uma vez, a generosidade turca, na paixão pela música, manifestou-se. "Havia instrumentos que eu não estava a ter possibilidade de comprar, porque já estava a gastar muito dinheiro, e ele disse-me 'eu fiz-te um desconto, mas vais dizer-me o teu preço, porque eu quero que tu os leves. És músico de verdade, gostas do que estás a fazer’", lembra Dinis.

Raquel partilha também momentos que a aproximaram desta cultura. Para a violinista não foi a descoberta de um novo instrumento, mas sim a aprendizagem da expressão turca, que é "muito específica e muito difícil".

"Perguntei numa loja se conheciam alguém que me pudesse ajudar com o violino e disseram logo que iam falar com um músico, para ver se ele me podia dar aulas. Deram-me o contacto, troquei mensagens pelo WhatsApp e o senhor disse-me logo: ‘vens ter comigo, no dia tal, ao outro lado do rio, que eu moro do outro lado de Istambul’. E eu fui, sozinha. Nem tinha nada comigo, nem tinha instrumento. Eu não conhecia nada, eles estavam todos ocupados e ninguém podia ir comigo. Se calhar se fosse aqui não fazia isso, mas ali é outra postura... nós confiamos, estamos ali para vivenciar", frisa.

"Lá me consegui encontrar com o professor. Fui a casa dele, calcei lá os chinelinhos deles, a senhora tinha-me preparado um bolo e um café. Estive lá horas e ele não me quis aceitar dinheiro, disse que me queria ajudar. Aqui não encontramos isto. Seja o que for, é sempre um negócio", reflete. "Lá, partilhas a paixão pelo mesmo instrumento e é só isso".

Carla tem uma história parecida, em que a partilha está assente na paixão pelo instrumento, pela arte.

"Toco instrumentos de sopro e fui comprar um ney turco na Turquia, embora já tivesse um. Não foi logo amor à primeira vista, não me despertou logo, mas passou a ser uma sonoridade comum cá em casa, uma coisa que se foi entranhando, e comecei a ficar envolvida", começa a contar.

O passo seguinte foi encontrar um professor turco, o Volkan Incüvez. "Eu ia nervosa para ter as aulas, então fiz uma cábula, porque os nomes são diferentes: os nomes das notas, o sistema de organização. Apesar de falarmos em inglês, eu sabia que ele não ia chamar um dó por um dó. Então achei que não ia conseguir encadear isto em inglês e nos nomes turcos e levei uma lista gigante. Ele riu-se imenso de mim por isso", relembra.

"Esta flauta não precisa de ar para tocar, ela precisa de fogo; se não houver fogo ela não toca"

"E eis que o professor me diz o seguinte: 'sabes, Carla, tu não precisas disto para nada. Se começarmos uma relação de aluna e de mestre — e eles lá até têm um nome específico para isso —, tu vais ter de te apaixonar primeiro por isto e isto vai ter de se apaixonar por ti'. Eu não precisava de saber notas, eu não precisava de saber nada. Tinha de tocar, envolver-me com o instrumento e só depois é que ia começar a parte académica, que era para o que eu ia inicialmente preparada", recorda. Resumindo, era exatamente o oposto daquilo que se faz no ocidente, em que a parte teórica vem primeiro.

"Vim para casa e ele mandou-me tocar livremente o que eu quisesse, sem regras e sem nada, sem escalas, para usufruir primeiro do ney. Não é um instrumento muito fácil de se tocar à primeira, aquilo tem um sistema de bisel complicado — não tem bisel. No ano a seguir fui lá, porque ele me disse para voltar com esse calor. E adorei a frase dele quando me ouviu: ‘mandei-te a gatinhar e vieste de pé’. Isto para mim valeu, chorei e tudo", diz.

"Há um ano, o Christian pintou-me, de forma digital, um quadro azul de um sufi a tocar ney e, associado a essa imagem tinha uma frase em inglês, mas que vou traduzir: 'esta flauta não precisa de ar para tocar, ela precisa de fogo; se não houver fogo ela não toca’. Percebi depois o contexto do meu primeiro professor, o Volkan. Achei isto maravilhoso. E ainda estou nesse processo: às vezes estou a estudar — agora tenho três professores —, outras vezes estou só a curtir. Mas eu não fazia isto antes, não tinha essa relação amorosa com o instrumento", conta.

Para Tiago Santos e Christian Marr’s, que tocam instrumentos mais modernos, as histórias pautam-se pela necessidade de adaptação. É fácil encontrar uma bateria ou um baixo, mas nem sempre é fácil fazê-los soar de forma harmoniosa com instrumentos tão diferentes.

Christian explica o processo. "Tanto eu como o Tiago temos este desafio de adaptar uma coisa que não está adaptada ainda", começa por dizer.

"Por exemplo, o meu instrumento é o baixo, é um instrumento convencional em géneros como o funk, o rock, e outros mais comuns. Mas de repente há todo um mundo que se pode aplicar àquele instrumento.  E não há métodos, é um bocadinho navegar por um mar nunca dantes navegado. É desbravar mato e criar qualquer coisa nova", atira.

E essa criatividade também vai beber a outros músicos. "Há muitos bons baixistas na Turquia, principalmente neste baixo fretless. De repente estão a tocar baixo e soa como um alaúde e então vê-se que há maneira de fazer estas adaptações".

"Em Marrocos conhecemos um baixista fenomenal, o Oussama, e lá eles têm um instrumento, o guembri, que é como se fosse o baixo da sua cultura. Durante esta quarentena, mandei-lhe mensagem a dizer que gostava de aprender. Ele não quis que eu pagasse e estamos em contacto, até porque ele também quer saber como é que eu faço algumas coisas com o meu baixo. Por exemplo, lembrava-se de um solo que fiz e que ele achou que tinha uma sonoridade meio árabe. Eu até pensei 'mas está um marroquino a dizer-me que eu tenho uma sonoridade árabe?' [risos]. Eu comecei como músico de rock, mas tive de me adaptar. É entrar num mundo com outra sonoridade — e esta versatilidade da banda é agradável para todos nós", refere.

Tiago, na bateria, não se foca tanto no "ir ver e estudar mesmo a raiz da coisa, estudar as técnicas". "Posso ver como é que é ali, mas quero transportar isso para a minha linguagem, quero tocar isso na bateria", explica.

"O que me interessa é pegar nestes ritmos tão pouco explorados e fazê-los à minha maneira. Ninguém me está a dizer se está bem ou se está mal, se aquilo é assim ou não. Estou a ir pelo que eu ouço, pelo que me parece bem. Na bateria não podes só copiar, porque não vai soar bem, tens de transformar numa outra coisa", defende.

No fundo, é esta capacidade de absorver, adaptar e transformar que está presente na essência dos Albaluna, num processo em que se olha sempre para fora, para o que é diferente, em busca de algo que nos acrescente.

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