Margarida Gil falava com a Lusa, durante o encontro de homenagem a João César Monteiro, na Figueira da Foz, cidade onde o cineasta nasceu há exatamente 81 anos, em 02 de fevereiro de 1939, e que morreu em Lisboa há 17 anos, em 03 de fevereiro de 2003.
“Ele não gostava muito dos atores, tinha dificuldade em lidar com a representação, porque a pessoa já não era ela própria, estava a ser outra. Gostava de pessoas mais do que de atores”, disse Margarida Gil, que também foi assistente de realização e atriz em filmes de João César Monteiro.
Questionada pela Lusa sobre o relacionamento do realizador com os atores nos seus filmes, Margarida Gil explicou que o cineasta “não os dirigia”: “Dirigia-se à essência da pessoa e encontrava nela uma confiança total. Era mais uma relação de cumplicidade do que dirigir o ator. E era muito tímido, não se sentia à vontade com equipas grandes”, recordou.
Margarida Gil, a realizadora de “Mar” e “A Luz Incerta”, afiança que nunca se sentiu atriz nos filmes de César Monteiro, em que participou, a ‘longa’ “Veredas” (1978) e a ‘curta’ “O Amor das Três Romãs” (1979): “Não me lembro nada de ter sido dirigida, era o nosso instinto”. E o contrário, dirigir João César Monteiro em dois dos seus filmes — “Relação Fiel e Verdadeira” (1989) e “Rosa Negra” (1992) –, onde o antigo companheiro participou como ator, também não sucedeu.
“Eu seria absolutamente incapaz de o dirigir. Sabia com quem me estava a meter. Só se fosse parva”, declarou Margarida Gil à Lusa.
E se a realizadora assume que as rodagens dos filmes “eram complicadas”, já na escrita, João César Monteiro “era o Deus, o omnipotente, podia tudo”.
“Era de um rigor absoluto na escrita. Trabalhou com Maria Velho da Costa [escritora, uma das referências da literatura portuguesa, Prémio Camões em 2002], com quem tinha muitas afinidades”, revelou a cineasta, sobre o autor de “Morituri Te Salutant” (1974) e de “Uma Semana noutra Cidade: Diário Parisiense” (1999), de quem a editora Letra Livre tem em curso a edição da “Obra Escrita”, a aguardar os últimos volumes, dos cinco previstos.
César Monteiro foi homenageado no sábado, pelo município da Figueira da Foz, no distrito de Coimbra. Não figurava na toponímia da cidade onde nasceu, e que agora atribuiu o seu nome a um auditório do Centro de Artes e Espetáculos.
Na cerimónia, Margarida Gil agradeceu a homenagem, ao presidente da Câmara, Carlos Monteiro, e manifestou a “certeza” que, para João César Monteiro, “seria mais importante” ter o nome no auditório da Figueira da Foz, “do que ter uma sala no CCB [Centro Cultural de Belém] ou na Gulbenkian”, em Lisboa, cidade onde viveu durante quase meio século.
“Para o João, a relação com a Figueira era muito importante, mas muito escondida. Mas quando cá vinha era sempre com um grande sorriso. E é a primeira vez que existe no país uma sala só com o nome de João César Monteiro, que, garanto-vos, é o maior cineasta português. Portugal é sempre muito ingrato para com os seus, mas, neste caso, tem um presidente de Câmara que não o esquece “, enfatizou.
No colóquio que se seguiu sobre a vida e obra do realizador português, a conversa centrou-se mais na personalidade, vivências e também na infância e adolescência de João César Monteiro, passadas na Figueira da Foz, do que propriamente nos seus trabalhos cinematográficos.
Margarida Gil recordou-lhe a intransigência mas também a grande sensibilidade, argumentando que César Monteiro “era um poeta, sobretudo”, que tinha como maior qualidade “a capacidade de resistir à adversidade”.
“Nunca se vendeu, era de um rigor ético exemplar, também acompanhado de um mau humor muito grande”, assinalou.
E se “era muito difícil ter uma conversa banal” com o cineasta, “porque rapidamente se instalaria o silêncio”, já junto das “pessoas simples”, de quem gostava e com quem lidava na padaria ou no mercado, “o ‘senhor João’ era uma espécie de aristocracia da pobreza”, lembrou Margarida Gil.
De Lisboa, na adolescência, sobram histórias, “algumas mirabolantes e as que são verdadeiras são de cair para trás a rir”, da passagem pelo Colégio Moderno, de onde acabou expulso e onde foi aluno de Mário Soares.
Mais tarde, num reencontro com o antigo Presidente da República, Soares terá afirmado: “Dizem que é um génio, mas de si só me lembro do mau génio”.
“Era as duas coisas. Tudo nele foi muito complexo, muito verdadeiro, mas muito complicado”, afiançou Margarida Gil.
Dos intelectuais que lidaram com o cineasta, a realizadora destacou o escritor Carlos de Oliveira, o autor de “Finisterra” e de “Uma Abelha na Chuva”, que morreu em 1981, com quase 60 anos, e que tinha “uma infinita compreensão sobre a personalidade do João”.
“Era a coisa mais próxima para ele de ser pai. Tinha uma admiração pelo Carlos de Oliveira como não teve por mais ninguém, uma proximidade de almas”, recordou a ex-mulher do realizador de “Recordações da Casa Amarela”.
Na sessão, Henrique Muga, autor de uma tese de doutoramento sobre o cineasta, advogou que a obra cinematográfica de César Monteiro, “é simultaneamente catártica, porque nos faz rir, e ao mesmo tempo reflexiva, porque nos faz pensar”.
Margarida Gil acrescentou que João César Monteiro tinha na ideia fazer um filme sobre a infância passada na Figueira da Foz, que já não conseguiu concretizar.
A realizadora pensa agora gravar na cidade testemunhos de contemporâneos do ex-marido, como o escritor e artista plástico António Menano – companheiro de estudos no já extinto colégio Academia Figueirense -, que lembrou um episódio caricato: César Monteiro a barricar-se na cave de sua casa, “levando as galinhas e uma espingarda do pai”, com o argumento de que “enquanto houvesse galinhas, havia ovos”.
“Era irreverente, malcriado, incómodo, iconoclasta, mas também delicado, amigo, poeta. Para alguns, um doido, na melhor das hipóteses, um excêntrico”, asseverou António Menano.
Já Carlos Cachulo, militar na reserva, que conheceu César Monteiro na “segunda classe da escola primária, e lhe acompanhou os passos até à Academia Figueirense”, recordou ter ficado “pasmado” com a biblioteca do amigo, quando eram companheiros de liceu: “Eu lia os livros do Emílio Salgari [autor das aventuras de Sandokan] e do Júlio Verne, ele já não lia nada disso”, frisou, defendendo que apesar da “homenagem singela” da Câmara Municipal, João César Monteiro “merecia mais”, incluindo uma evocação da sua passagem pela escola do Castelo, em Buarcos.
“A Câmara tem de repensar melhor uma homenagem ao César”, argumentou.
Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, na década de 1960, formado na London Film School, João César Monteiro estreou-se na realização em 1969, com o documentário “Sophia de Mello Breyner Andresen”, que concluiu antes da sua primeira longa-metragem, “Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço” (1970).
Até “Vai e Vem”, o derradeiro filme, estreado postumamente em maio de 2003, fora da competição do Festival de Cannes (onde a crítica o considerou “a obra-prima de um dos maiores cineastas mundiais”), César Monteiro dirigiu 22 curtas e longas-metragens, como “Branca de Neve” (2000), “À Flor do Mar” (1986), “Silvestre” (1981), “Que Farei eu com Esta Espada?” (1975), “Fragmentos de um Filme-Esmola: A Sagrada Família” (1972), tendo recebido prémios dos principais festivais e da crítica internacional.
Por duas vezes, foi distinguido no festival de Veneza, a primeira, em 1989, com o Leão de Prata de melhor realizador, por “Recordações da Casa Amarela” – filme inaugural da trilogia João de Deus, poeta e louco interpretado pelo próprio cineasta e seu alter-ego – e, em 1995, com o Grande Prémio do Júri, por “A Comédia de Deus”, que deu continuidade a este ciclo, fechado com “As Bodas de Deus”, em 1999.
*Por José Luís Sousa, da agência Lusa
Comentários