A tua infância e a Casa Pia…
Tive uma infância fantástica. Vivia com os meus avós maternos e com a minha mãe. Tenho imensa sorte de ter tido bons amigos na infância, amigos mesmo da rua, que coabitavam comigo no Jardim da Estrela.
E fui aluno lá [na Casa Pia]. É uma instituição brutal que me ajudou também a ser o que sou hoje. Fui muito feliz. Se não tivesse sido feliz, certamente não estaríamos aqui a conversar.
Como foi participar no Jornalinho [um telejornal dirigido às crianças que a RTP emitia nos anos oitenta]?
Já foi há muito tempo, pá. Tinha para aí 12 ou 13 anos quando foram filmar à Casa Pia. Eu era mesmo miúdo… Era um ingénuo do caraças. Foi a primeira vez que cantei para as câmaras. Cantei duas músicas, uma em português e outra em inglês, mas um inglês muito mau.
Mas a música ficou para mais tarde. Acabaste por estudar Artes Gráficas…
Não era o aluno mais aplicado, mas o curso de Artes Gráficas fez com que tivesse a minha primeira "profissão", aquilo que na altura comecei por fazer mas que não teve seguimento.
Em várias entrevistas fazes referência ao escritor David Mourão Ferreira. Teve assim tanta importância para ti?
O primeiro livro que li foi o "Gaivotas em Terra". Tive um professor de português, o professor João Cabrita, que quando estava a acabar umas disciplinas para finalizar o 12º ano, disse-me: 'opá, João, você que anda nisto da música, se não lê não vai a lado nenhum, você tem de ler'. E foi o que fiz. Lembro-me que o primeiro livro que me emprestaram, acho que até foi o meu baixista na altura, foi o "Gaivotas em Terra". A minha maturidade... ou a minha imaturidade na altura não me permitia ainda ter capacidade para ler algumas coisas. Não eram tão percetíveis para mim. Não devia ter começado por aquele livro, mas sempre fica qualquer coisa.
Impossível não falar do Chuva de Estrelas, onde ficaste em segundo lugar. Estávamos em 1995.
Foi um programa televisivo engraçado, mas nunca o levei a sério porque a minha vida foi outra. A minha vida, musical, começa a sério em 1997.
Que memórias tens do bar Happening? Tem algum significado especial para ti?
Foi onde comecei a tocar em Lisboa e do qual tenho imensas saudades. Se esse bar ainda existisse hoje, certamente iria lá uma vez por mês tocar. Recordo-me daquelas noites em que as pessoas iam ouvir música ao vivo com bons instrumentistas, havia pessoas que tocavam imensamente bem e eu ia vê-los e com eles aprendi. Eles influenciaram-me também musicalmente. Tinha um senão, fumava-se naquele bar. E eu não fumava, eu era atleta da seleção. E muito fumo terei inalado não sendo fumador. O meu treinador chateava-se muito comigo.
Sempre praticaste desporto, um em especial: luta greco-romana. Estiveste quase para ir aos Jogos Olímpicos…
Os Jogos Olímpicos aconteceram em 1992, na época em que ainda fazia luta. Fiquei dentro dos mínimos mas não os confirmei. Daí não ter ido a Barcelona. Fiquei em oitavo lugar no campeonato do mundo, em 1989. Antigamente quem ia aos Jogos Olímpicos eram aqueles que ficavam nos dez primeiros e eu tinha ficado em oitavo. Mas ainda bem que eu não persisti na luta. Se tivesse ido aos Jogos Olímpicos de 1992, quereria ir também em 1996, em Atlanta, e a aí a música teria passado ao lado ou as oportunidades musicais ter-se-iam perdido. A luta ensinou-me caráter, saber perder, saber aceitar quando a outra pessoa é melhor do que nós. Saber aceitar a derrota, levantar-me quando caio. Para isso estou bem preparado. Ainda pratico luta greco-romana, faço judo de quando em vez e isso mantém o meu cérebro a funcionar, não estou agarrado só à música. Apesar de me expor publicamente, gosto muito da discrição e de gente discreta. E a luta é a minha zona de conforto.
Ainda és adepto do Belenenses?
Fui adepto. É um clube que gostei imenso. Falando futebolisticamente, desliguei-me do futebol. Desiludi-me. Gosto de ver jogos, gosto de ver bons jogadores, mas desliguei-me. Continuo a acompanhar algumas coisas, mas hoje já não sou adepto. Hoje estou desligado, mas mesmo, mesmo.
O teu primeiro álbum, que agora faz 20 anos desde o seu lançamento, ”Segredos”…
É o álbum das minhas primeiras canções, as minhas canções mais ingénuas e sem maldade. Que me acompanharam e ainda hoje me acompanham.
E para os próximos 20 anos? "Depende da minha criatividade, da minha vontade e de quem me ouve. A minha mãe disse-me um dia: ‘enquanto não te mandarem embora, deixa-te estar’”
E cantar em português?
É difícil interpretar em português. Tenho uma maneira muito própria de interpretar as canções e às vezes posso dificultar-me a mim próprio. Este novo single, o "Faz Tempo", é muito improvisado, a forma como o interpreto. Isso custa. Custa às vezes dizer as palavras, tenho de ter muito cuidado com o que faço.
Que memórias tens da tour em que fizeste a abertura dos concertos do Bryan Adams [2003]?
O Bryan Adams é um cantor de nível mundial que eu muito respeito. Fiz a tour ibérica com ele e hoje sou muito amigo do Keith Scott, o guitarrista do Bryan. Para além de gravar os meus discos, já veio inclusive a Portugal tocar comigo. Em 2003 fomos num tour bus, começámos por Barcelona, depois Alicante e Madrid. Já viste o que é não ser conhecido em Espanha e começar por lá e depois vir para Portugal? Foi muito importante e aí notei que dei um salto qualitativo. Tive a oportunidade de me exibir no Pavilhão Atlântico pela primeira vez, claro que estavam lá 18 mil pessoas para ver o Bryan Adams mas à hora que entrei em palco já a sala estava cheia. Foi brutal.
Qual foi o primeiro álbum que compraste?
Pergunta difícil, não me lembro. Só se olhasse para os CD's que ainda tenho. Venho de uma altura em que ainda se vendiam imensos CD's. Só se olhasse para eles é que podia dizer, 'eish, foi este'.
Tens ídolos?
O Sting, acho-o muito completo. Sem dúvida alguma. Sting, Bruce Springsteen, Mick Jagger... Eles têm outra mentalidade. Eles é que estão certos. Repara, na malta mais velha, que tem setenta e tal anos... setenta e tal anos...Não fazem parte das modas, são talento vivo inato. Onde eles vão pelo mundo, esgota.
Há um público para eles, um público mais jovem mas que foi educado com as canções deles. Isso é brutal. Brutal mesmo. Como influência, deles retiro a postura em palco, a maneira como se comportam e como encaram o público. Eu encaro o público com todo o respeito e acho que eles também me respeitam. O meu público sabe que dentro do meu exibicionismo musical sou discreto, sei para aquilo que vou e eles sabem para aquilo que vêm. Quando estou num palco estou sujeito à exibição, é como uma exposição. Numa exposição estão os quadros, no palco estou eu com canções.
Os Globos de Ouro tiveram algum significado especial?
Ganhar dois Globos de Ouro [em 2001, na categoria de Melhor Intérprete individual e de Melhor Canção, para "Não Há"] significou um reconhecimento pela minha música.
“Lado a Lado” levou-te em digressão com a Mafalda Veiga [2006]. Em "A Palma e Mão" dedicas um tema ao Palma e outro aos Xutos [2008]. Depois de dois em Lisboa e no Porto, "O Coliseu" é o teu primeiro disco gravado ao vivo [2010]. Três discos diferentes, o que contam?
O "Lado a Lado" foi um grande projeto, sem dúvida alguma. Mas falar de mim é mais complicado. Eu sou fã dos outros, por isso é que quando falo dos outros, falo com mais vivacidade e autenticidade do que quando falo de mim. Como projeto, o "Lado a Lado" foi das melhores coisas que se fez. Muito bem tocado, muito bem pensado e muito bem interpretado. A Mafalda esteve muito bem.
O Palma e o Zé Pedro são dois amigos. O Palma, talvez seja o artista português mais.
"O Coliseu", gravado em Lisboa, foi muito importante e, além disso, foi um reconhecimento do público. Marcou também a primeira vez que subi ao palco dos Coliseus [Lisboa e Porto] em nome próprio. Foi como se o público me tivesse dito 'passados estes anos, continuamos aqui a ouvir-te'.
José Luís Peixoto, mais que uma inspiração um amigo...
Grande escritor. Aquele professor que disse que tinha de ler disse-me também: 'oh! João, você tem de ler um rapaz que está aí, que ganhou o Prémio Saramago, e tem um livro dedicado ao pai que se chama "Morreste-me"'. E eu fui à procura do Zé. Li no jornal que ele ia dar um workshop e fui lá. Identifiquei-me, porque ele podia não me conhecer, levei os livros para ele assinar e a partir de aí ficámos com uma ligação. [Anos mais tarde] Li o "Cal", inspirei-me e musiquei um dos poemas. Na altura atuei no Olga Cadaval e convidei o Zé Luís para declamar um excerto do "Cal" no espetáculo.
A paternidade mudou alguma coisa?
A paternidade faz parte. É esse o conceito da vida, o de darmos vida aos outros. Hoje, com 18 anos, é ele que me ensina e dá-me a conhecer música, aquilo que se faz na nova vaga. Ambos Salvadores, deu-me a conhecer a música do Salvador Sobral. O meu filho é um grande músico, o outro também, mas o meu filho como instrumentista de viola é muito, muito bom. Deu-me a conhecer John Mayer e Ed Sheeran. Isso é muito importante para mim. Ele tem um conhecimento que eu não tinha com a idade dele.
Quais foram os momentos mais difíceis da tua carreira ao longo destes 20 anos?
Às vezes há coisas que acontecem e que não estás à espera. Mas para responder a isso há a capacidade de continuar e de lutar, algo que sempre tive. Sou desportista, não sou só cantor das minhas canções. Tenho um passado de luta e o desporto faz com que reaja quando caio... 'Ok, vamos a isto. Perdeste? Bora lá ganhar o próximo round'.
Quais os palcos que te deixam mais memórias e aqueles que ainda sonhas pisar?
O Rock in Rio Lisboa foi muito importante. Pela dimensão, pela estrutura do festival. Atuar ali não é fácil. O público que vai lá vê-nos, mas vai sobretudo para ver os artistas conhecidos mundialmente. Eu só sou minimamente conhecido em Portugal. Aí tenho que tentar estar à altura dos mais conhecidos, não posso defraudar-me nem a quem me vai ouvir. E acho que consegui isso, por isso é que pisei aquele palco três vezes.
São tantos aqueles que ainda sonho pisar. Há festivais que se fazem no norte e no sul aos quais nunca fui. Porque as pessoas [que organizam] têm as suas preferências e tenho que respeitar isso. Nós quando pisamos o palco — nós, porque eu não estou sozinho — as pessoas ficam satisfeitíssimas. Pisei o ano passado o MEO Sudoeste e o organizador [disse-me] 'uau, parabéns'. Jamais defraudaria alguém ao vivo. Se isso acontecesse, a minha obrigação seria a de devolver aquilo que me pagaram a quem me contratou. Os festivais têm a ver com o cartaz onde te inseres e há coisas que não fazem sentido. Onde atuar não vou deixar ficar mal ninguém, porque sei aquilo para que vou e sei adaptar-me.
O novo álbum, "20 anos"...
Os dois originais, produzidos pelo Benjamim, que penso estarem muito bem conseguidos. Demo-nos imensamente bem, ele é um grande músico. Lá está, da nova vaga. Conseguiu perceber a minha linguagem musical, e eu a dele, e deu no que deu. Deu no "Faz Tempo" e no "És do Mundo".
A festa de aniversário, com o novo disco em destaque, está marcada para este sábado, 4 de novembro, com o regresso ao palco do esgotado Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra.
E para os próximos 20 anos? "Depende da minha criatividade, da minha vontade e de quem me ouve. A minha mãe disse-me um dia: ‘enquanto não te mandarem embora, deixa-te estar’”.
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