Cantor, compositor e produtor, as músicas de José Cid são transversais a várias gerações e trauteadas por pessoas entre os oito e os 80 anos. Curiosamente, foi "Somos Livres", da atriz Ermelinda Duarte, que nos levou até ele (foi instrumentista e fez parte do coro).
Em conversa com o SAPO24, José Cid recorda esse tempo e fala do país em que Portugal se transformou. A realidade, como as memórias, tem um sabor agridoce. "O país está melhor, mas podia estar muito mais longe", acredita. Não concordava com o antigo regime, mas também não se revê nos partidos políticos que existem hoje. E defende o voto obrigatório.
Com 82 anos, o cantor continua a dar espetáculos e a produzir música. "Um privilégio que tenho é dormir, o meu organismo agora pede-me doze horas e durmo as doze horas. Tenho alguns problemas, mas controlo-os. Mas fui estúpido, porque alguém me aconselhou, a mim e à Gabriela [mulher], a não nos vacinarmos no ano passado. No final do ano, apanhei Covid, eu que passei tão bem durante a pandemia, éramos os únicos aqui na rua que não tínhamos tido nada, seguimos todas as regras. E agora tenho falta de energia física, por isso durmo". O próximo álbum, "Há Músicas Alegres e Outras Não Tanto", vai sair lá para setembro/outubro.
Lembro-me de ser proibida de cantar "uma gaivota voava, voava" no colégio. "Somos Livres" é de Ermelinda Duarte, mas teve participação sua...
É tudo da Ermelinda Duarte, eu fui instrumentista produtor e também fiz parte do coro. É uma proposta que chega da Valentim de Carvalho, na altura. E foi uma coisa cantada urbi et orbi [por toda a parte], mais do que o "Somos Livres" só o "Grândola, Vila Morena".
"A Natália [Correia] sim, foi a minha grande musa política"
Na altura, antes do 25 de Abril, teve muitos temas censurados.
Sim, 28 temas. Podia ter feito um duplo álbum só com canções censuradas. Mas não gosto de impingir as minhas ideias às pessoas. Quando canto uma canção ou um poema contra o sistema ou a favor de uma opinião antagónica a sistemas ditatoriais, não faço disso um cavalo de batalha, faço porque sinto e acho que tenho a obrigação de dar a minha opinião e de alertar as pessoas.
Conclusão, não sou considerado um cantor de intervenção, como muitos do 25 de Abril, um grupo onde havia cantores que nunca tinham tido sequer uma canção censurada, mas que pertenciam a uma certa esquerda portuguesa de que eu não era contra, mas também não era a favor, porque rejeitava as ideias políticas ou as cassetes de partidos que não eram o meu género.
"A censura na altura de Marcello Caetano ainda era mais violenta, se possível, do que no tempo de Salazar"
Qual era o seu género?
Eu andava muito com a Natália Correia. Era um livre pensador ao lado da Natália e ela era a minha deusa cultural e a minha inspiração. Tanto é que há três ou quatro anos escrevi um tema que lhe é dedicado, chamado "Saudades do Botequim", em que a Natália declama. A Natália sim, foi a minha grande musa política.
Mas já antes da Natália ser essa minha musa política eu tinha as minhas opiniões muito formadas. O primeiro álbum do [Quarteto] 1111, do qual sou autor de praticamente todos os temas, foi censurado em janeiro de 1970. E esse álbum tinha uma coisa engraçada: como eu era muito amigo do Adriano Correia de Oliveira, tem a primeira versão das "Trovas do Vento que Passa", outra canção incontornável na oposição ao regime. Cantava em coro, muito diferente do Adriano, que tinha uma voz esplendorosa - o próprio Zeca [Afonso] dizia que o Adriano era o melhor de todos nós.
"Eu era um cantor maldito no antigo regime. Só que Salazar mandava prender e perseguia particularmente os cantores inscritos no Partido Comunista"
Como era isso de ter músicas censuradas?
A censura na altura de Marcello Caetano ainda era mais violenta, se possível, do que no tempo de Salazar. E saiu um texto do SNI [Secretariado Nacional de Informação] que proibia as editoras de autorizarem autores que cantassem contra o regime e contra o sistema. E houve duas pessoas, eu, na Valentim de Carvalho, e o Adriano Correia de Oliveira, na Orfeu, que assinaram documentos ilibando as editoras e assumindo toda a responsabilidade sobre aquilo que cantavam.
Eu era um cantor maldito no antigo regime. Só que Salazar mandava prender e perseguia particularmente os cantores inscritos no Partido Comunista. Salazar era um obcecado anti-comunista, daí o Zeca ter sido preso tantas vezes, como o Adriano também.
"Ganhei a Eurovisão em Portugal e nem a minha mãe, nem algumas pessoas da minha família me deram os parabéns"
Chegou a ser preso alguma vez?
Não, mas fui ameaçado. Mas já tinha sido ameaçado também pela minha mãe, que não me deixava cantar, por isso disse logo: "Olha, vieram bater à porta errada" [ri].
Porque é que a sua mãe não queria que cantasse?
Estava proibido de cantar, não gostavam, nem sequer gostavam de me ouvir. Ganhei a Eurovisão em Portugal [1980] e nem a minha mãe, nem algumas pessoas da minha família me deram os parabéns. A não ser a minha irmã mais velha, que me faz muita falta, e que sempre disse: "O menino não obedeça aos pais, porque tem uma voz linda, tem músicas lindas. Não obedeça". Mas o resto...
Sabe, ao longo da minha vida nunca estigmatizei classes sociais ou pessoas, gostei sempre de me dar com pessoas interessantes e criativas, independentemente de serem ou não importantes. Acontece que algumas pessoas importantes vieram ter comigo pela ordem natural das coisas, como Sá Carneiro, os duques de Palmela, a família Guedes, da Aveleda.
Isso fez de mim uma pessoa muito independente e com as ideias muito concretas. Nunca vi o meu país nem da esquerda, nem da direita, sempre vi de cima, para ter uma visão mais panorâmica e poder analisar as opiniões dos partidos, com as quais muitas vezes concordava. Mas isso não quer dizer que fosse um seguidor.
"Gostava que os meus impostos, que são muitos, fossem para as pessoas mais carenciadas num raio de cinco quilómetros de onde em vivo"
Hoje revê-se em algum partido?
Não me revejo nos partidos que existem hoje na Assembleia da República. A grande reserva moral que existe em Portugal ainda são as câmaras. Pode haver exceções, mas é nas câmaras que se encontram as pessoas verdadeiramente nacionalistas, que defendem as suas regiões, as pessoas mais pobres, mais necessitadas.
Podem não ser perfeitas, mas os impostos que se pagam nos municípios não ficam para investir nas populações locais, vai tudo para Lisboa. Gostava que os meus impostos, que são muitos, fossem para as pessoas mais carenciadas num raio de cinco quilómetros de onde em vivo. Mas isso não acontece. Enfim, acho o país mal pensado nalgumas coisas.
Mas há coisas que falta perceber. Um presidente de câmara, por exemplo, lá por ganhar as eleições - parabéns, parabéns! -, não é dono da autarquia, é nomeado para a gerir. E as pessoas não são obrigadas a obedecer-lhe como carneirinhos.
O 25 de Abril não está adiado, mas podia ter sido até agora muito mais concretizado. Os partidos defendem os seus próprios interesses, não defendem os interesses nacionais. Defendem o seu umbigo. São os umbigos partidários que estão a proteger, não o povo. E isso faz com que, como acontece neste momento na Assembleia da República, um partido ganhe, ainda que por uma maioria mínima, e esteja arriscado a sucumbir (e no fim do ano podemos ter de ir outra vez a eleições).
O sistema político de Lisboa, para onde vão muitos políticos que vêm sabe-se lá de onde - do Portugal mais profundo -, vêm muitas vezes para gerir lobbies e para defender interesses que não são os do país.
Defendo que o voto devia ser obrigatório. As pessoas podiam até votar em branco, mas quando não votassem tinham uma multa, por exemplo, de cem euros. Era um tiro nas bolsas de muita gente que se absteve de votar. E era bem feita, evitávamos situações que criamos a nós próprios. As pessoas têm de ser nacionalistas e gostar do seu país.
Outro dia a minha mulher vinha furiosa. Mas, com ela própria, porque é jornalista e tem a noção das coisas. Levou uma multa de 200 dólares australianos, uns 150 euros, porque se esqueceu de votar na Austrália (tem nacionalidade australiana). Pediu às filhas para lhe irem pagar a multa, e as filhas, que têm uma noção de cidadania muito grande, disseram que não, "paga tu porque não estamos de acordo contigo", tipo "bem feita".
"Há uma avalanche de índios que aproveitam o fosso do castelo estar vazio para se lançarem e conquistarem o castelo"
Vamos voltar atrás: onde estava no 25 de Abril?
Estava em Lisboa, na Lapa. Estava em casa, a minha porteira era muito minha amiga, transmontana, veio trazer-nos o pequeno-almoço [ri] e avisar-nos que a revolução tinha destituído Marcello Caetano. "Olha que bom, este regime estava mesmo a cair de podre", foi a primeira coisa que lhe disse. E estava.
Celebrei, mas como figura pública - nessa altura era cantor número em Portugal -, também não me ficava bem sair para a rua, era demasiado popular e podia parecer que me estava a aproveitar da situação. Mas celebrei com os meus amigos, contentes por o 25 de Abril ter chegado e na expectativa de que isto melhorasse muito.
Mas passados pouco anos aparece uma nova ditadura, que é a ditadura da rádio, imposta pelas multinacionais, e a música portuguesa deixa de ser apoiada como devia.
"Estive proibido durante seis anos de entrar em Angola. Não fui preso em Angola, em 1968, por um acaso"
Teve de se criar quotas para a música portuguesa, caso contrário na rádio só passava música estrangeira.
Os portugueses que estão nas rádios têm vergonha de si próprios, quando não deviam. Portugal está cheio de antigos e novos talentos, altamente criativos, e tem uma música popular riquíssima.
Depois há o avançar da música terceiro-mundista, que se vê nas tardes de algumas televisões. Os que vingam são os que vão para as televisões cantar aquelas coisas medonhas em playback com bailarinas. Mas em que país é que estamos? Há um aproveitamento na ida das televisões às vilas e às cidades. E não há o cuidado de preservar a música, há uma avalanche de índios que aproveitam o fosso do castelo estar vazio para se lançarem e conquistarem o castelo.
Por isso estou no meu cantinho, não tenho multinacionais - também não estaria bem -, tenho o meu estúdio analógico, tenho uma boa equipa de promoção dos meus temas, tenho uma boa empresa que fabrica e distribui a minha obra. E estou bem assim.
Não tenho pretensões de mitómano, mas sou um cantor de grande público, faço 20 ou 30 concertos anuais com 20 ou 30 mil pessoas à minha frente e ninguém sai de lá no fim de duas horas e meia. Há dias cantei em Aveiro para dez ou 15 mil pessoas, numa tenda super gigante. Foi extraordinário, quem quiser pode ir ver ao meu Facebook: música ao vivo, grandes músicos, grandes canções, muita dinâmica e o público rendido.
Uma história de antes do 25 de Abril que o tenha marcado?
Estive proibido durante seis anos de entrar em Angola. Não fui preso em Angola, em 1968, por um acaso. Um acaso, porque houve uns jornalistas que me passaram de um avião através de uma porta da imprensa. Fui ameaçado porque disse umas coisas, mas isso não mudava a minha opinião sobre a falta de liberdade que existia em Portugal. Como dizia a canção, "somos livres de voar". E de pensar.
Mas não fui só eu que sofri, conheci pessoas que foram completamente censuradas e perseguidas. O pai da minha mulher, que era algarvio, foi exilado para Timor. Durante cinco anos esteve exilado num degredo, só porque discordava de Salazar. E cortaram-lhe um tendão da perna e um tendão do braço para o diminuir fisicamente. Foi ensinar português, casou com uma senhora timorense, teve doze filhos e adotou mais cinco ou seis, filhos de amigos que também tinham sido exilados, mas que foram mortos pelos japoneses quando Timor foi invadido para ser um ponto de ataque para a Austrália.
Era aqui que imaginava que Portugal iria estar em 2024, cinquenta anos depois?
Pensava que o país podia estar muito mais à frente. Há muito dinheiro mal investido e outro do qual nunca ninguém prestou contas. Muita coisa que não está onde devia estar, mas somos um país de brandos costumes, vamos seguindo com as nossas características. O país podia estar muito mais à frente em termos culturais, em termos económicos. Muito mais à frente.
A última pessoa que pensou bem Portugal, no sistema político central, foi o Marquês de Pombal. Mas já lá vai. E eu sou bisneto de um senhor Távora, não devia estar a dizer isto. Mas ele tinha visão, uma visão estratosférica, necessária para fazer este país mais feliz. Porque há muita gente infeliz em Portugal, custa-me ver isso. Mas como somos o povo do fado, e o fado na maioria é triste, isso acompanha a nossa forma de ser. Mas é uma paz podre, Portugal não merecia isto, há dois ou três milhões de portugueses que mão mereciam isto.
O que é que os governos podiam fazer mais pela cultura, pela música?
Nos primeiros quatro anos de governação de António Costa a cultura foi bastante bem protegida. O Ministério da Cultura apoiou muitos projetos economicamente. Nestes últimos quatro anos, não tanto, foi para mim uma deceção. Demasiada arrogância: não falar com professores, não falar com enfermeiros, não falar com militares, não falar com os soldados da paz. Era fundamental haver imensamente mais diálogo.
Mencionou o Festival Eurovisão da Canção. Há alguma semelhança entre o que acontece hoje e os do início, entre 1964 e os anos 80, digamos?
Nos festivais da canção da minha geração, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, tínhamos orquestra, as coisas eram ao vivo, eram verdadeiramente vivas e dinâmicas. Agora não tanto. No ano em que ganhei em Portugal [1980, "Um grande, grande amor"], era favorito. Num dia antes da Eurovisão, em 400 jornalistas, 376 votavam em Portugal como canção vencedora. Fiquei em sétimo lugar.
Agora a televisão apoia muito os cantores que vão lá fora, mas na minha geração fui muito boicotado pela própria RTP. E pela Espanha, também, que foi muito agradável, no próprio dia do festival a diretora disse-me que me iam dar zero, embora, palavras dela, a canção fosse a melhor que Portugal tinha levado à Eurovisão. Agradeci-lhe muito, era muito simpática, muito educada, e respondi que, dos 12 pontos possíveis, Portugal ia dar à Espanha seis. E Espanha ficou em último lugar, com seis pontos [ri].
A nova geração foi invadida por uma cultura anglo-saxónica, os cantores do 25 de Abril, com textos fabulosos, não fazem parte do imaginário deles. Embora haja uma minoria que os conhece. Nesse aspeto, sinto-me muito beneficiado pelas novas gerações, que vão aos meus espetáculos, que cantam e saltam. Acho piada fazer concertos com miúdos que podiam ser meus netos. Dá-me a sensação que os pais os obrigavam a comer a sopa ou a ouvir José Cid - como não gostam de sopa, tinham de me ouvir [ri]. Pode ser uma hipótese.
Quem eram os seus cantores preferidos na adolescência?
Na minha adolescência havia cantores que para mim eram fulcrais: João Gilberto, Amália - fui sempre fadista amador, produzi um disco a Hermínia Silva, que era muito minha amiga, e sempre que posso faço uma perninha numa adega -, Maria Teresa Loureiro, Alfredo Marceneiro, que tive pena de não conhecer mais de perto, José Afonso, John Lee Hooker, Tom Jobim.
Ao longo da nossa conversa fala do passado com alguma tristeza. Sente-se de alguma maneira injustiçado?
Há uma esquerda portuguesa que tem uma certa relutância em me aceitar como um deles, coisa que não faço questão. Porque fui muito popular e, para eles, ser muito popular é estar vendido à mainstream. E não estou, nunca estive. Mas também há uma grande parte de cantores de intervenção de esquerda que gosta muito de mim; o Vitorino pediu-me para eu produzir o seu último disco, o Janita também, o Mário Mata trabalha muito comigo, o Paulo de Carvalho, que ganhou o Festival RTP da Canção em 1974, com "E Depois do Adeus", acaba de reconhecer que a canção de que mais gostava era a minha, "No Dia em que o Rei Fez Anos". Porque a minha canção contava verdadeiramente a história do 25 de Abril, que aconteceu dois meses depois: "Vieram as tribos ciganas", "E o povo saiu à rua"... Essa era a verdadeira canção do 25 de Abril. Nem a senha fui, mas essa era a senha do 25 de Abril.
Teve pena que não tivesse sido?
Muitas pessoas reconheceram na canção o 25 de Abril, mas oficialmente a esquerda afastou essa ideia. Como disse, a esquerda portuguesa nunca me reconheceu pelo simples facto de eu ser demasiado popular.
Não tinha nada a ver com as suas origens?
Pelo amor de Deus, fui sempre a ovelha ranhosa da família, lutei sempre contra a minha família. Nunca me dei com as pessoas pelo estatuto social, sempre me dei por aquilo que as pessoas eram. Tendo nascido num núcleo social mais elevado, nunca usei essa vantagem em nenhuma circunstância.
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