Não é assim tão cedo, mas o nevoeiro mete a manhã sempre mais perto da madrugada. O presidente da Câmara já está em reunião. Chegou há pouco uma comitiva de praticantes de parapente, a quem o município dá honras de receção no edifício da autarquia.

Cá fora, a ilha está ao serviço. É segunda-feira: passa o correio, estuda-se na escola. O Corvo já não é o que era. Os subsídios e a função pública levaram os agricultores e deixaram um monte decorado a vacas a quem já pouco vale tirar o leite — feitas as contas, vale mais conservar o vitelo e vendê-lo para o continente.

José Silva, presidente da Câmara Municipal do Corvo, assiste de mãos atadas a uma população que viveu demasiado tempo isolada do mundo para agora não recuperar o tempo perdido. Já não se arrisca no cultivo, aproveita os serviços da Câmara e a taxa de desemprego bem redonda: zero por cento.

“Por muito que me custe dizer isto, o desenvolvimento a vários níveis começa a ter consequências naquilo que é a genuinidade da ilha”, diz José ao SAPO24.

Mas o autarca não se quer deixar vencer pelos facilitismos nem pelo desapego das novas gerações pelas tradições — “a questão é esta: a malta nova não consegue sequer pensar que pode fazer um futuro espetacular na agricultura em vez de ser um funcionário com um ordenado mínimo a vida inteira” — e assume uma palavra para o seu plano: sustentabilidade, no ambiente e no turismo.

Este é o Corvo pela voz do homem que guia os destinos da ilha, de uma vila à espera do rebate dos sinos.

créditos: PEDRO MARQUES / MADREMEDIA

Às vezes é difícil afastarmo-nos das realidades que são nossas, que nos são próximas. Por isso, começo esta conversa por perguntar, enquanto presidente da Câmara Municipal do Corvo, tem noção de que tem uma comunidade muito especial, que não se encontra em qualquer lado?

Tenho — mas também digo, com muito à vontade, que isso tem tanto de bom como pode ter de mau. É mais fácil trabalhar se as coisas funcionarem normalmente. Se não funcionarem, gerir conflitos, atritos... Não estou a dizer com isto que é normal e que acontece muitas vezes, mas é fácil porque as pessoas veem-se todos os dias mais do que uma vez. Quando está tudo bem é ótimo, mas quando alguma coisa de diferente acontece pode ser complicado. Gerir isto não é fácil, mas por norma posso dizer que as coisas correm bem.

Há trinta anos o sentimento de comunidade era muito maior do que é hoje.

Ainda assim, vir ao Corvo e ver esta comunidade... é algo que já se vê muito pouco. E permita-me dar aqui um passo a mais em relação aos meus colegas, porque digo-o vivendo também numa pequena aldeia.

Há trinta anos o sentimento de comunidade era muito maior do que é hoje. Não quero dizer com isso que a culpa é das pessoas. Se calhar é do desenvolvimento que foi acontecendo.

A ilha abriu-se?

Sair daqui era muito complicado. A comunicação com outras realidades era impossível. Estas coisas todas, quer se queira, quer não, vão interferindo no dia-a-dia; e o pessoal mais novo tem apetências completamente diferentes daquilo que nós tínhamos. Se aos 15 anos me dissessem: ‘vais ajudar a partir a carne das vacas para a festa’, eu ficava feliz, porque aquilo não era para todos. Os garotos tinham a sua função depois nas procissões, os homens tratavam da carne, as mulheres tratavam das massas. O sentido de comunidade era muito maior. Agora, as pessoas são diferentes, é se calhar o evoluir dos tempos. Há mais influências de pessoas que vêm cá com noções de vida completamente diferentes. As coisas vão-se alterando, mas uma coisa posso dizer, se em condições normais pode-se ter perdido um bocado esse sentido comunidade, numa situação anormal, de emergência, de necessidade, basta tocar os sinos da igreja que num instante estamos cá uns para os outros. Lembro-me daquele acidente de viação que houve há quatro anos.

Com a carrinha turística?

Exato. Toda a gente se juntou e fez aquilo que podia. Os corvinos foram psicólogos, amigos, médicos... o espírito está lá, continua bem vincado. Mas as coisas vão mudando e a gente diz que a culpa é dos miúdos, mas os pais é que os deixam ser diferentes. Também faço mea culpa, também sou pai e não vou estar aqui a dizer que sou diferente dos outros. Tento incutir-lhes aquilo que me foi incutido, mas pronto, quando eles estão comigo são de uma forma, mas, provavelmente, se estiverem juntos com os outros fazem o que os outros fazem. Perdeu-se um bocado disto. Este não é um exemplo muito agradável, mas nesse acontecimento...

Uma pessoa que se isole aqui não tem muitas hipóteses de ser mentalmente saudável.

A ilha não tinha um acidente de viação há muitos anos...

E nunca tinha havido nenhum fatal.

Morreu uma pessoa e seis ficaram feridos. Foi na estrada para o caldeirão, não foi?

Sim, mais ou menos a meio. É uma daquelas coisas que acontecem. Eu não estava cá: o Óscar, o meu vice-presidente e que na altura era ainda o comandante dos bombeiros, é que levou por tabela, por ser comandante e por ter ficado no meu lugar. Mas o que ele me contou foi que a população foi espetacular. Mas ainda hoje acontece alguém ir parar ao centro de saúde porque se sente mal e tem de ficar ali em observação, e as pessoas juntam-se ali fora, tudo à espera. O espírito está lá, temos de o trazer mais para a superfície, até porque quem não souber praticar este sentido de comunidade não consegue viver no Corvo. Uma pessoa que se isole aqui não tem muitas hipóteses de ser mentalmente saudável, entre aspas. Um ambiente destes, de 400 pessoas, em que obrigatoriamente vais ver as mesmas caras mais do que uma vez por dia... ou fechas-te em casa — mas fechares-te em casa, quer dizer... quem se isolar garantidamente que não tem vida e não é feliz.

Mas como é que se pode trabalhar isso?

Estas festas do Espírito Santo que vivemos agora em junho e julho ajudam, apelam exatamente a isso.

Também com o regresso dos emigrantes, imagino.

Essa festa [em julho] foi criada exatamente para que os emigrantes que vêm cá também tivessem a possibilidade de participar nas festividades. Celebra-se o Espírito Santo e nesse domingo, no Império [ou Irmandades do Divino Espírito Santo, nome dado às casas de devoção ao Espírito Santo, nos Açores], há o Bodo de leite.

Bolo de leite?

Bodo! Bodo de leite. É servido massa sovada, queijo, leite e agora também já se introduziu vinho e sumos. Mas antigamente era só aquilo que as pessoas tinham. Ora, leite não faltava, até se traziam as vacas e o leite era mungido na altura para uns jarretes. Agora a vaca já não vem, mas vem o leite. E é mesmo leite, não é cá de pacote! Os lavradores oferecem uma, duas latas, aquilo que se acha que é preciso. Há 40/50 anos era uma alegria que nem imaginam.

A ilha nesse aspeto também mudou, não é? Já não há produção de leite contínua.

Há pouca produção para a produção de queijo na queijaria, mas ainda há vários lavradores que têm uma ou duas vacas que ordenham para consumo próprio. Fazem os queijos, criam os porcos… Lembro-me perfeitamente do tempo em que todos os lavradores tinham uma vaca, faziam o queijo, leite, engordavam os porcos — e se os porcos aqui eram bem tratados!

Porque é que isso se perdeu?

Na altura, se chegassem a um sítio qualquer de comércio não havia leite nas prateleiras. As pessoas de fora que vinham cá, se queriam leite, tinham de ir falar com alguém para tentar comprar um ou dois litros por dia. Continua a haver as mesmas possibilidades para todas as pessoas terem vacas, porque os terrenos não desapareceram, as vacas não desapareceram, as pessoas não deixaram de ter as vacas, deixaram foi de produzir leite.

Comodismo dos tempos modernos da ilha?

Começou a aparecer no supermercado e dá menos trabalho ir à prateleira. E a vaca em vez de ser ordenhada e dar o trabalho que dava, passa a ser criada para ser vendida enquanto vitelo. No final do ano, a venda do animal cobre todo o leite que a pessoa compra, gasta, e muito mais ainda. É o facilitismo das coisas, a facilidade que as pessoas têm agora em relação aquilo que não tinham noutra altura. Toda a gente fazia queijo em casa e normalmente faziam-no para o consumo durante o ano inteiro, porque a produção de queijo aqui é mais ou menos sazonal. De outubro a março, mais ou menos, não há produção de leite porque as pastagens não são tão boas, mas as pessoas produziam queijo que desse até voltarem a produzir outra vez.

Já nos disseram que isso não foi só com o leite, mas um bocadinho com tudo.

Para aqui não vinha um quilo de batata. As batatas que vinham para o Corvo eram aquelas que iam servir de semente para as que se produziam cá e se guardavam para o ano inteiro com o risco de, eventualmente, uma praga qualquer dar cabo delas ou de estas começarem a apodrecer. Agora as pessoas perguntam-se, ‘mas eu vou plantar batatas para quê? Podem estragar-se ou apodrecer e depois vou ter de comprá-las’. Mas há 20, 30 anos para cá não havia essa possibilidade. O pessoal ou trabalhava a batata ou não tinha a batata.

Isso não será um problema para a próxima geração? Perde-se o saber e as atividades da ilha que são genuínas e que os turistas vêm de fora à procura.

E isso, já o disse várias vezes, preocupa-me. Preocupa-me o futuro desta ilha daqui a 70 anos. Se se começa a perder muita coisa e se não tivermos nada de diferente e que nos identifique verdadeiramente, as pessoas vêm aqui fazer o quê? Ver 300 ou 400 pessoas numa vila como esta? A vila, se não tiver as pessoas envolvidas, de nada vale. As coisas valem no seu conjunto. Isso é uma preocupação para o presidente daqui a vinte anos exatamente porque esta geração que nós temos hoje, que tem muita informação e sabe muita coisa, está completamente alheada do que são as tradições, as vivências, as necessidades. Essa malta não sabe o que é ter a necessidade de ter de ir todos os dias, de manhã e à noite, estivesse sol ou chuva, tirar o leite às vacas para ter em casa. E tinha de ser todos os dias porque durante muito tempo não houve frigoríficos. O leite era o leite do dia com todas as vantagens que isso tem em matérias de saúde. Mas os miúdos não fazem a mínima ideia do que é isso porque sempre se habituaram a abrir o frigorífico e a estar lá o pacote do leite. Isso custa-me e assusta-me.

Mas não devia haver aqui um esforço para haver uma industrialização, mesmo que mais rudimentar, para não se tornar numa industrialização pura, desses saberes?

Uma coisa que se irá manter, com toda a certeza, é a criação de gado, para carne, muito por culpa da subsidiarização. Temos uma queijaria que paga o leite a 30 dias e a 30 cêntimos o litro. Não raramente ouvimos os produtores das outras ilhas aflitos porque o leite é pago a 23 cêntimos, e estamos a falar em quantidades enormes. Se não houvesse o facilitismo que há, nem o subsidiarismo que há, as pessoas teriam capacidade. Em 2012, a cooperativa produziu 67 mil litros de leite, o ano passado 12 mil. A ilha não perdeu a capacidade, mas se eu tiver uma vaca leitante que pare um vitelo, eu ganho cerca de 500 euros porque a vaca pariu e mais de 300 para aguentar o vitelo até aos seis meses. Depois exporto o vitelo e faço mais 400 ou 500 euros. Para fazer em leite aquilo que tiro desta conjugação, tenho que ir muitas vezes e muitas horas ordenhar as vacas. O leite é uma parte do “sistema”. É como disse, por exemplo, em relação à produção de batata. Toda a gente aqui era autossuficiente, mas sem dúvida nenhuma, até com excedentes. A ilha sempre foi autossuficiente em tudo.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Mas isto também é por modas, não é?

É. Agora é a vaca. Costumo dizer, literalmente falando, a vaca entrou e foi empurrando as ovelhas para as falésias. A vaca foi alargando, alargando o terreno e as ovelhas caíram e ficaram nas falésias. Agora já se aventuram um bocado e às vezes vêm cá fora, mas começou a perceber-se que a vaca é mais rentável do que a ovelha.

Mas é mais rentável se considerarmos os subsídios. A ovelha é um animal com menor impacto no ambiente, é mais barato, é mais pequeno, reproduz-se mais, dá lã que é uma das coisas da ilha, e fazer leite de cabra e leite de ovelha, provavelmente vai fazer um queijo que pode ser uma marca da ilha.

O nosso queijo, se houvesse produção suficiente, era uma marca de cá também. Cá, a ovelha nunca foi usada para a produção de leite. Ovelha era lã e carne, alguma carne, mas era essencialmente a lã. O nosso queijo sempre foi feito com leite de vaca. Toda a gente fazia em casa. Obviamente que isso condiciona a qualidade do queijo, obviamente que não havia propriamente um padrão, mas toda a gente fazia. Por necessidade tinha-se a vaca, dela tirava-se o leite e, como é óbvio, uma família não consome por dia o leite de uma ou duas vacas, portanto fazia-se o queijo. Enquanto não havia possibilidades ou as limitações eram muito maiores em termos de compra, as pessoas produziam e acho que, sinceramente, eram muito mais felizes do que são hoje.

O desenvolvimento a vários níveis começa a ter consequências naquilo que é a genuinidade da ilha.

Uma das coisas que mais ouvi dizer aqui foi que os terrenos estão progressivamente a deixar de ser trabalhados. Como é que isso pode ser combatido?

Não sei, sinceramente...

Os terrenos são maioritariamente privados, certo?

Sim. Temos cerca de 60 explorações agrícolas.

A Câmara tem algum terreno?

Não.

Mas se calhar a via comunitária era uma solução.

Nós já tivemos...

Seria possível mecanizar...

Nós não temos, mas os lavradores, quer através da Cooperação Agrícola, quer através do Serviço de Desenvolvimento Agrário, têm acesso a maquinarias, coisas que antigamente não havia ou que se faziam com o auxílio de bois e de cavalos. Agora já é quase tudo mecanizado, embora não seja com máquinas grandes. Já ninguém trabalha os terrenos com os arados e com os animais. Essa disponibilidade existe, não é a Câmara porque existem outras entidades que cumprem mais essa função. A questão é esta: a malta nova não consegue sequer pensar que pode fazer um futuro espetacular na agricultura em vez de ser um funcionário com um ordenado mínimo a vida inteira. São coisas diferentes, mas também a instrução. Na minha altura não havia muita gente que saía para estudar, eu saí daqui com 11 anos.

Saiu da ilha do Corvo?

Saí com 11 anos para as Flores, estudei lá três anos, fiz o sétimo, o oitavo e o nono, e depois fui para São Miguel fazer o ensino secundário. Mas havia muitas crianças de 11/12 anos que não saíam de cá. Nessa altura não havia grandes hipóteses, não havia serviços, a população não tinha habilitações para isso, portanto esses pegavam na agricultura. Esses ainda são os agricultores que temos hoje, o pessoal da minha geração.

Mas que os filhos já não querem?

Os filhos já não querem. Mas esses ainda progrediram bastante, há seis agricultores que há sete anos fizeram investimentos com fundos comunitários, fizeram estábulos, não propriamente para ter o gado preso, mas para terem infraestruturas de apoio, digamos assim. Adquiriram tratores, ferramentas, máquinas... e esses deram o salto, mas não é essa meia dúzia que consegue depois tomar conta daqueles terrenos que entretanto as pessoas mais velhas vão deixando.

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Grande parte da população da Corvo trabalha na função pública. É outra grande dependência da ilha para além dos subsídios?

A partir do momento em que começa a haver um nono ano cá, em que começa a ser lecionada a escolaridade obrigatória e que, em termos de emprego público, as habilitações exigidas são a escolaridade mínima... quem tinha o nono ano podia concorrer a esses empregos. Quando a escolaridade obrigatória passou para o 12.º, esse ano passou a ser lecionado aqui, portanto, agora se aparece um concurso público, as habilitações literárias exigidas são essas. As pessoas estão cá e têm o 12.º porque o tiraram cá. Por muito que me custe dizer isto, o desenvolvimento a vários níveis começa a ter consequências naquilo que é a genuinidade da ilha. Na altura era complicado pegar no filho e mandá-lo para outra ilha estudar. Havia pessoas que tinham possibilidades financeiras, mas havia outras que não. Por isso é que não eram muitos a sair e aqueles que ficavam tinham de se agarrar àquilo que havia, não havia a disponibilidade das coisas que há hoje.

O desenvolvimento é bom, mas dispersa as pessoas daquilo que sempre foi o essencial e o principal da ilha: a agropecuária.

Por onde passa o futuro da ilha do Corvo?

Pelo turismo sustentável. Digo-o porque tem de ser visto desta forma, deverá ser uma solução. A agricultura seria outra, sem dúvida nenhuma, mas como é que se consegue chamar pessoal para pegar nisto, eu não sei. Nós somos poucos, mas somos um concelho e por isso temos um determinado conjunto de serviços obrigatórios por lei. Há oferta por parte dos serviços, começa a haver também alguma iniciativa privada, que se justifica tendo em conta o turismo que começa a absorver também algumas pessoas, por isso eu não sei como se consegue fazer isso. Mas pode passar por essa genuinidade, temos possibilidades de ter um queijo único, feito com leite cru, produzido por vacas que não comem rações, que não comem fertilizantes com aditivos, não comem nada para além de pasto puro.

E a pesca?

A pesca também tem potencial. Atualmente temos cinco pescadores a tempo inteiro, mas lá está, não vejo nenhum em que pelo menos a família esteja a seguir. E eu dou o exemplo de um senhor que já há muito tempo tenta que o filho pegue na pesca. Até recorreu ao apoio à mudança de frota, abateu o barco que tinha, um bote aberto de madeira, e comprou um barco em condições para poder trabalhar a sério. Ele sempre quis que o filho fosse pescador. O rapaz tem hoje 30 anos e é um assistente operacional da Câmara. Era só pegar e explorar, era só dar ao cabedal. Mas a agricultura está igual, os que estão no ativo têm perfeitas condições para passar o negócio ao filho, um genro ou um neto.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

A ilha esteve demasiado tempo isolada? Demasiado privada do que havia lá fora e, de alguma maneira, ao largar estas atividades tradicionais está a querer recuperar o tempo perdido?

Acho que sim, é consequência do desenvolvimento de coisas que fazem sentido, obviamente. A construção do aeroporto, do porto, que permitem ter condições de transporte de pessoas e mercadorias completamente diferentes daquilo que havia. Normalmente diz-se que o desenvolvimento só tem coisas boas, neste caso, e pegando neste contexto, o desenvolvimento trouxe algumas coisas más. Ou em relação aquilo que poderá ser o futuro também. O desenvolvimento é bom, mas dispersa as pessoas daquilo que sempre foi o essencial e o principal da ilha: a agropecuária.

Como é que a Câmara lutou contra isso?

A título de exemplo, a Câmara, aqui há uns vinte anos, construiu uma estufa comunitária e as coisas estavam a ir bem, se calhar porque era novidade. Mas depois, a partir de certa altura, todos os invernos a estufa era destruída. Até que chegou uma altura em que o pessoal disse ‘não vale a pena’. Acredito que hoje haja outros materiais e que se consiga fazer, por exemplo, uma estufa que as pessoas tenham todo o ano coisas que não se conseguem ter nos terrenos abertos. Mas será uma boa aposta?

Quem não conhece olha para isto como o fim do mundo.

Como é que o resto do país ainda olha para o Corvo?

Quem não conhece olha para isto como o fim do mundo. Ponto. Literalmente. E há muitas pessoas com quem falo que me dizem exatamente isso. Quando falei, e nem foi numa comunidade muito alargada, que ia para o Corvo toda a gente me disse logo, 'Tu vais para Corvo? Olha que aquilo fica lá isolado, são uns coitadinhos...'. Ainda há muito essa visão, o que por um lado é bom porque não desperta a curiosidade a multidões, porque a gente não tem capacidade para isso, para absorver massas, as pessoas não iam ficar bem, seria o que eu posso chamar uma bagunça. Por outro lado também é bom porque aqueles que vêm, e que ouviram aqueles comentários, chegam cá e a reação é positiva.

E os corvinos ainda acham que estão atrasados em relação ao resto?

Acho que não, sinceramente.

Mas não existe essa ideia sequer?

Tudo tem exceção. Pode haver quem possa achar isso, mas se virmos aquilo que são as infraestruturas necessárias, os serviços mínimos, chamemos-lhes assim, obviamente, todas essas existem. Para além de tudo isso, há iniciativa privada. Temos de ter noção do que 400 pessoas consomem e da sua capacidade financeira para consumir. É óbvio que se formos ali às Flores já são três mil e tal pessoas, as coisas são diferentes. Aqui não, a maior parte do ano vivem aqui 400 pessoas. As pessoas acabam por ter hoje aquilo que não tinham possibilidade antigamente, não tendo acesso físico cá, têm acesso a tudo e mais alguma coisa pela internet. As pessoas até podem escolher se querem receber a encomenda em casa ou não. Se bem que entregar em casa ou ir aos correios é quase a mesma coisa [risos]. As pessoas acabam por ter acesso a tudo, não imediato, nem fisicamente, mas as pessoas acabam por conseguir comprar o que é necessário.

... e o que é desnecessário.

Também, porque é como nós irmos ao centro comercial. Se calhar vamos lá comprar um par de sapatos, mas saímos de lá sem os sapatos e com uma t-shirt e umas calças e não sei quê. Agora, estar num sofá, confortável, a ver tudo aquilo... se calhar também nos esquecemos dos sapatos.

Se há sítio em que se justifica ter carros elétricos é aqui.

Por falar em coisas desnecessárias. Não era desnecessário haver tantos carros na ilha?

Completamente. Sou apologista, tendo em conta daquilo que se pretende para o ambiente, tendo em conta a realidade do Corvo e da nossa vida, que todos os carros que não sejam comerciais ou de agricultores sejam elétricos. Já adjudicámos um posto de carregamento elétrico duplo, e se não conseguirmos este ano comprar uma viatura elétrica, vamos fazê-lo para o ano. E aqui a inveja poderá ser muito boa. Nós vamos comprar um para quê? Para que as pessoas vejam, para tentarmos junto do governo criar um incentivo a que as pessoas abatam os carros a combustíveis fósseis e que tenham a compensação para comprar elétricos.

Foi uma das coisas que mais nos impressionou na chegada à ilha, o número de carros tendo em conta as distâncias e o número de habitantes.

Eu faço uma média de 500/600 quilómetros por mês, mas há pessoas que fazem muito menos do que isso. Os carros [elétricos], hoje em dia, já têm 400 quilómetros de autonomia. Estamos a falar de, eventualmente, carregar o carro duas ou três vezes por mês. Se há sítio em que se justifica ter carros elétricos é aqui. Se há um sítio que podia ser um exemplo para os outros é aqui.

Não seria o primeiro grande passo sustentável que a ilha dava, pois não?

Temos o exemplo dos painéis solares e dos sistemas de aquecimento de água que todas as casas têm. Ao princípio é uma novidade, as pessoas ficam um bocado desconfiadas. ‘Epá, deixa ver, deixem que alguém seja o bode expiatório’. E dou este exemplo, porque penso que isso possa acontecer em relação aos carros. A instalação de painéis solares e bombas de calor foi um processo de duas fases, a primeira na parte nova da ilha em que os espaços à volta da casa são diferentes e permitem a instalação dos painéis solares com outras facilidades. E a segunda fase foi no casco velho, na zona antiga, em que as soluções tinham de ser pensadas quase caso a caso, consoante o espaço que tínhamos, o tipo de casa, o tipo de equipamento. Inicialmente estavam previstos cerca de 100 equipamentos e no fim da obra acabámos por montar mais de 120. Porquê? Porque as pessoas começaram a ouvir o vizinho dizer 'epá, isto é espetacular, não gasto gás'. A inveja também pode ser boa.

Esses painéis térmicos, há uns anos duravam mais tempo e eram mais baratos, mas agora a tendência será para os elétricos que também aquecem água, dão eletricidade...

Nesta altura, como ainda temos só energia produzida através de combustíveis fósseis, faz algum sentido ter esta alternativa. Vamos ter agora o primeiro parque fotovoltaico em que se prevê que 40% da energia consumida pela ilha seja já aproveitada desta forma. E há ainda a possibilidade de fazer mais alguns parques. Se calhar daqui por uns anos já não faz sentido [ter painéis térmicos]. Na altura o grande intuito era reduzir drasticamente o consumo de gás e foi conseguido porque no fim das duas empreitadas o consumo de gás na ilha caiu em 70%. Esse objetivo foi conseguido, se calhar daqui por uns anos já não é o ideal, mas a última empreitada acabou há cinco anos, a primeira tinha sido há 10 anos.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Voltando aos carros, ainda. Numa terra em que as pessoas deixam o carro aberto com a chave na ignição, não se podia criar um sistema de carros partilhados?

Há três anos o secretário-regional, que era o secretário-regional dos transportes na altura, teve uma reunião comigo e disse que nós devíamos criar uma parceria aqui, entre a Câmara e o Governo para trazer exatamente um sistema desses. Acho que ainda não temos uma mentalidade suficientemente aberta para isso, as pessoas são muito possessivas. 'Eu quero ter o meu carro. O carro é meu, até te posso emprestar, mas é meu'. E isso vê-se nas casas antigas, muitas delas estão quase em ruínas, mas não se toca porque é minha. Se fazia todo o sentido? Fazia, 10/15 carros bastava para toda a gente ficar servida. Mas acho que ainda não temos mentalidade para isso. Ainda.

Isso são vocês que vivem em Lisboa que me vêm dizer isso a mim. Se vocês estiverem aqui um ano ou dois a morar vão ver que isso é muito bonito, mas é na teoria.

Era fácil, proibia o estacionamento no centro da vila a todos os carros que não fossem elétricos.

Mas isso são vocês que vivem em Lisboa que me vêm dizer isso a mim. Se vocês estiverem aqui um ano ou dois a morar vão ver que isso é muito bonito, mas é na teoria. Na prática é complicado. As pessoas estiveram muitos anos privados de muita coisa, até há trinta anos não havia carros. Havia um Citroen Mehari que era do médico, durante muito tempo esse era o único carro no Corvo. Depois veio uma ambulância para cá, passou a haver o carro do médico e a ambulância. E depois as pessoas, de repente, começaram a comprar. As pessoas estiveram privadas muito tempo desse luxo. E a maior parte dos carros que aí estão podem ser considerados isso mesmo, um luxo porque não servem para mais nada do que para as pessoas não andarem a pé. Agora, tirar-lhes isso? Ainda não é a altura para isso. Já foi discutido aqui, em reunião de Câmara, proibir o estacionamento na zona antiga. E isso não está fora de questão, está sempre presente na agenda. É uma possibilidade e cada vez se tem mais a noção de que é uma possibilidade mais real e que terá de acontecer. Não faz sentido nenhum... de uma ponta da zona antiga à outra são para aí 300 metros. Mas eu tenho noção de que isso é daquelas coisas que são complicadas porque as pessoas não querem.

Tem o sonho de fazer esta uma ilha 100% amiga do ambiente?

Eu acho que isso será apenas um sonho, nunca teremos capacidade para isso. Primeiro, porque o aproveitamento de energia eólica é complicado, já há muitos anos que são feitos estudos e nós temos aquilo que eu costumo dizer que é vento a mais. Não temos vento muitos dias e muitos dias do ano em que temos vento, são ventos muito superiores aquilo que é permitido para a produção de energia. E depois, em termos de torres, temos a limitação da estrada. As torres normais vêm montadas de forma que temos muitos sítios onde elas não conseguiriam passar.

Há que começar já a pensar em alternativas para quando a água não for suficiente.

Não podiam pô-las do lado da ilha inabitado?

Não, porque os ventos predominantes são sudoeste e noroeste. Em pelo menos 70% dos dias do ano os ventos estão neste quadrante. E muitos desses dias são rajadas fortíssimas e à medida que vamos subindo isso nota-se mais. Ao nível de recursos hídricos, não temos recursos como as Flores que já tem duas centrais hídricas e mais uma em vias de construção. Eles têm uma capacidade de produção de água o ano inteiro. Toda a nossa água é dependente da chuva. Temos nascentes, mas não conseguem fornecer a população ao ponto de termos de ter construído duas bacias de retenção, duas lagoas artificiais para reter as águas da chuva. O Corvo depende da água de chuva.

O que é perigoso.

Pode ser perigoso. Isto não é solução para muitos anos. Há que começar já a pensar em alternativas para quando a água não for suficiente que pelo menos as alternativas estejam estudadas e percebermos que é por aqui que temos de ir.

E a eletricidade na ilha?

Atualmente é 100% diesel. O primeiro parque fotovoltaico vai ser montado este verão, na parte oeste, junto ao centro de processamento de resíduos, as oficinas da Câmara e numa zona que, apesar de ser mais alta, é mais abrigada e que em termos visuais não tem impacto. Não podia ser longe, porque quanto mais afastada mais custos de produção e menos benefícios teria.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

E a gestão dos resíduos, como é feita?

Vão todos para as Flores. O centro de processamento de resíduos foi instalado, mas dois ou três meses depois o vento deu cabo da cobertura e até à reparação as máquinas que lá estavam ficaram completamente destruídas. Agora a separação é toda feita cá, a única coisa que ficam são os orgânicos e mesmo assim não são aproveitados.

Não se faz biomassa?

Não há produção suficiente, produzem-se muitos resíduos, mas os orgânicos não são suficientes para isso. O menos mal da história é que não fica nada cá.

São enterrados?

Não, o aterro foi selado. Aquilo já não era um aterro, era uma lixeira a céu aberto. Temos um terreno onde se produzem cinco a dez quilos por dia, são quantidades irrisórias, porque há muita gente que aproveita os orgânicos para os animais, os restos da comida vão para o balde do porco. Portanto a produção de orgânicos é muito muito residual. Óbvio que se passar a ser diferente temos de pensar noutra solução, na compostagem. Chegaram a estar previstos uns contentores. Isso é perfeitamente possível, mas nesta altura enquanto, a produção for esta não vale a pena. O resto vai tudo para as Flores. Nós temos uma produção de cerca de 10 toneladas por mês.

E o esgoto?

Temos um ETAR perfeitamente normal, certificada, inspecionada. Não consigo dizer em termos de percentagem exata, mas cerca de 30% das casas ainda não estão ligadas ao sistema de saneamento. Antigamente todas as habitações tinham de construir as suas fossas. Quando a fossa deixar de funcionar então sim, faz-se a ligação ao sistema. Mas pronto, por comodismo, digamos assim, as pessoas deixam estar até ser necessário. É tudo encaminhado ali para debaixo do cemitério, o ano passado foi remodelada, porque foi a primeira ETAR e sistema público de saneamento dos Açores. O tipo de equipamento que lá estava não dava resposta porque inicialmente, quando se fez, fez-se para determinada quantidade e agora era necessário modernizar. Nunca deixou de funcionar, mas foi alvo de uma intervenção grande. As análises são feitas e enviadas para a direção regional do ambiente com os resultados e até hoje está tudo bem.

Para se justificar aqui um polo universitário tínhamos de meter 400 ou 500 alunos. Afundavam a ilha!

Desculpe esta passagem de tema, mas há avisos por toda a ilha com uma convocatória obrigatória de toda a população para a eleição do embaixador da ilha. O que é isso?

Bem, o ano passado esteve cá um professor do Instituto Politécnico de Leiria, numa visita. Ele ficou em contacto com a Bárbara [do Centro de Interpretação das Aves Selvagens] e ficou a perspetiva de se pensar num estudo de turismo sustentável para cá. Foi celebrado um protocolo com a Câmara e com o instituto. Esta história do embaixador não é só para fazer de conta, mas é para quebrar o engodo, para começar a trazer as pessoas. Depois de estarem, de perceberem, o pessoal vem. Este é o primeiro encontro e a primeira ideia: criar o embaixador do Corvo, alguém que seja capaz. Isto é o princípio de um futuro estudo para pensar o que será o futuro da ilha, o mais sustentável possível. A Câmara comparticipa nas deslocações e estadias e eles ficam também com algum produto que poderá ser alvo de publicações, dá-nos algum prestígio essencialmente a nível académico.

Gostava de ter aqui um polo universitário?

Não! Deixem-nos estar. Para se justificar aqui um pólo tínhamos de meter 400 ou 500 alunos. Afundavam a ilha! [risos] Isto é brincadeira, mas não só não é viável como eu também não gostava. Mudava completamente a dinâmica da ilha.

Qualquer rumo que esta conversa levasse viria sempre parar aqui, não era? À dinâmica da ilha. Por muito que os tempos tenham mudado continua a ser a qualidade mais única do corvo.

Não vou dizer todas as pessoas, mas quase todos os corvinos têm orgulho em ser corvinos. E há outra coisa que eu vejo, apesar destas incertezas do futuro, as pessoas que vivem cá, os corvinos, e as pessoas que vieram para cá e passaram a ser corvinos também, são felizes. O futuro pode não ser tão risonho, mas olho para as pessoas que cá estão e estão cá porque gostam e se sentem bem. Portanto, se a gente gosta e se sente bem é capaz de ser o suficiente para sermos felizes.