Uma das questões com que a disciplina da História se depara desde sempre — e que assim continuará, porque é irresolúvel — é a sua subjetividade. Apesar de lidar com factos reais e de procurar reconstruir aquilo que aconteceu com o máximo de precisão, cada historiador desenvolve uma narrativa consoante a sua interpretação do material que consulta, as suas convicções e preconceitos, mesmo que os tente deixar à porta do escritório, antes de começar a escrever.

É possível dizer que o mesmo dilema se estende às biografias — afinal de contas, a biografia é a história de alguém, contada por si mesmo ou por outros. Acedendo aos mesmos arquivos e às mesmas pessoas para entrevistar, dois biógrafos vão, certamente, proporcionar textos distintos, mais não seja pela forma como encadeiam os acontecimentos. Organizar os factos, geri-los consoante o que a narrativa pede e ler as decisões do biografado à luz do seu contexto de vida são desafios fundamentais do texto biográfico.

Foi isso mesmo o que Bruno Vieira Amaral admitiu em entrevista à Agência Lusa em antecipação ao lançamento de “Integrado Marginal”, a biografia que assina sobre a vida de José Cardoso Pires e que é um dos destaques editoriais deste mês. Parte do ciclo de biografias da Contraponto, a vida de um dos escritores mais marcantes da história nacional é assim narrada por um dos autores contemporâneos que mais se tem evidenciado na última década. Neste livro, procura-se descrever o poço de contradições que o autor de “O Delfim” ou “Balada da Praia dos Cães” foi — no fundo, a condição de que padecem todos os génios —, da sua oposição ao Estado Novo enquanto nutria amizade com um agente da PIDE, às dificuldades em inserir-se no meio literário português ao mesmo tempo que se tornou numa das suas figuras imortais.

E se escrever uma biografia é uma tarefa árdua, o que dizer de uma autobiografia? É “uma missão impossível”, admite Dulce Maria Cardoso. “Deveria escrever um texto rigoroso, só que sou sempre personagem de mim própria, mesmo que narre tudo na primeira pessoa e me apelide Dulce, como se não estivesse a inventar‑me”. Porque, na verdade, as nossas memórias são sempre fabricadas por aquilo de que nos lembramos (ou de que nos queremos lembrar). É, todavia, nesse esforço de exatidão que surge “Autobiografia Não Autorizada”, coleção de crónicas íntimas que a celebrada escritora assinou na revista Visão, editadas este mês pela Tinta-da-China.

De resto, a linha entre realidade e fabulação no que toca a este tipo de obras é de tal forma ténue que há quem tenha feito do seu desabamento um triunfo. Assim o foi com Mário Cláudio, quando assinou “Tiago Veiga” em 2011, “biografia” de um poeta esquecido do século XX que o próprio “conheceu” e que lhe encomendou esse texto. Desse objeto de meta-ficção — ao qual antecederam vários livros de poesia atribuídos a Veiga — surge agora uma continuação: “Embora Eu Seja um Velho Errante”, editado uma vez mais pela Dom Quixote. Nele, o escritor portuense “conclui” a sua relação com o poeta ao revelar dados de “novos documentos” descobertos que dão novas luzes sobre a vida dessa misteriosa figura.

Escrever não sobre o que é (ou foi), mas o que poderia ser (ou ter sido) como se fosse verdade é o que J. Rentes de Carvalho fez emO País do Solidó”. O romancista nunca foi alheio a dar opiniões fortes e controversas (como em “A Ira de Deus sobre a Europa”), nem a relatar o quotidiano (tem dois livros em registo de diário publicados) ou a escalpelizar a realidade (o seu premiado “Mazagran” também foi uma coleção de crónicas), e neste novo livro, editado pela Quetzal, que o acolheu, mantém-se igual a si mesmo. Neste volume de crónicas, o escritor conjetura, a partir da Holanda, retratos descritos como “histórias reais de gente inventada e histórias inventadas de gente real” do nosso Portugal. Ou seja, uma forma de biografar-nos.

Do hipotético para o concreto, junho foi também um mês de edições que celebraram vidas dedicadas a "uma arte superior", biografando os biografados não através da sua vida, mas da sua obra. Em "Uma Vontade de Música. As Cantigas do Zeca", o investigador Octávio Fonseca faz um levantamento exaustivo da obra do eterno cantautor, procurando destacá-lo além da sua dimensão de intervenção política, afirmando-o como um puro talento musical. Nesta edição de capa dura da Tradisom, com ilustrações de Pedro Sousa Pereira, relata-se todo o percurso discográfico de Zeca com rigor científico.

Falando em ciência, não ofende considerar que Aurélio Pereira fez a observação de jovens talentos futebolísticos um saber em si mesmo. Numa conjugação de gigantes, o ex-observador do Sporting juntou-se ao jornalista Rui Miguel Tovar para editar “Ver para Crer”, coletânea publicada pela Contraponto de 50 anos de histórias onde o foco não foi a redondinha, mas quem a chuta. As descobertas de Figo, Futre ou Ronaldo são incontornáveis, mas a dimensão humana de Pereira é o que se destaca, desde a forma como acompanhava os atletas aos tempos livres de que dispensava para ir ver jogos, à procura de descobrir o próximo grande jogador.

A capacidade de sacrifício é uma das qualidades necessárias para se ser grande, seja para caçar talentos, seja para colocar a vida dos outros à frente da nossa. A pandemia ainda não cessou, mas não há dúvidas de que os grandes heróis a relembrar serão os profissionais de saúde e a sua abnegação durante as fases mais negras da nossa história recente. Não podendo colocar-nos na sua posição, vamos descobrindo o que foi trabalhar na vida da frente em relatos como o de Gustavo Carona, médico intensivista no hospital de Matosinhos, em “Diário de um Médico no Combate à Pandemia”, editado pela Caminho. Tendo trabalhado em missões humanitárias em várias zonas de guerra espalhadas pelo globo, foi ao pé de casa que foi levado ao limite, chegando ao ponto do esgotamento, como retrata nesta obra de testemunho, que tenta por em texto o que talvez seja verdadeiramente indiscritível.

Livros para o verão: inscreva-se aqui no encontro de julho do É Desta Que Leio Isto

Em julho, o clube de leitura É Desta Que Leio Isto vai receber a biblioterapeuta Sandra Barão Nobre, que nos vai trazer sugestões de leitura para um verão (ainda) em pandemia. No dia 22 de julho, pelas 21h, participe no encontro e habilite-se ainda a ganhar um exemplar do A Minha Irmã é uma Serial Killer, um "breve, sinistro e cómico thriller" que pode ser uma ótima leitura de verão.

As inscrições (e participações no passatempo) podem ser feitas através deste formulário. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as indicações para se juntar à conversa.

Quem também arriscou a sua vida junto a zonas de conflito foi Paulo Dentinho, no decurso da sua atividade enquanto jornalista ao longo de várias décadas. “Sair da Estrada”, publicado pela Caminho, junta as suas histórias enquanto correspondente e enviado especial — desde a Guerra Civil angolana em 1987 ao rescaldo dos ataques terroristas em Paris em 2015, passando por momentos marcantes como as Guerras dos Balcãs ou da Líbia, as cheias de Moçambique em 2000 ou a independência de Timor-Leste. Em textos depurados pela memória, conta não só a história dos grandes eventos, mas também dos atores secundários que por elas foram afetados.

A escrita de memórias e/ou de autobiografia, no mais, interseta-se profundamente com a de viagens. Quem descreve uma jornada, descreve a sua vida desde o ponto de partida ao de chegada, seja de forma mais detalhada ou mais impressionista. Se a escrita de Dentinho é mais descritiva, a de Andrew Solomon notabilizou-se pela sensibilidade que carrega. Celebrado pelos seus tratados sobre a saúde mental (“O Demónio da Depressão) e a dificuldade em lidar com a diferença (“Longe da Árvore”), o jornalista e ensaísta norte-americano tem em “Lugares Distantes” uma defesa de como a viagem nos muda a nós e aos outros. Fruto da sua carreira, Solomon esteve em Moscovo nos conturbados anos da queda da União Soviética, no Afeganistão depois da queda dos talibã ou nas estepes silenciosas da Mongólia. Nestes e noutros locais procurou a imersão cultural como forma de conhecimento e o resultado está neste livro editado pela Quetzal na coleção Terra Incógnita.

Mas a viagem que nos muda não precisa de ser geográfica, pode ser meramente interior e espoletada por um evento marcante. A jornalista e documentarista britânica Kate Spicer que o diga. Depois de adotar um cão como paliativo para uma vida de excessos sem rumo, o seu novo parceiro de quatro patas desaparece. Em “Wolfy”, o nome do animal e do livro editado pela Porto Editora, Spicer descreve a sua busca frenética pelas ruas de Londres, propalada por uma campanha no Twitter e pela ajuda de bons samaritanos. No processo, acaba por repensar a própria vida, ao redefinir prioridades: não foi o cão que a salvou, foi a sua busca.