I
O exílio de César
Costa da Cilícia, Mare Internum*
75 a.C.
O navio mercante tinha carregado mais mercadoria em Atenas e navegava agora pela costa da Cilícia, com o objetivo de fazer escala noutro porto, Éfeso ou Mileto, antes de deixar César e Labieno em Rodes e prosseguir rumo a Alexandria.
Estava a correr tudo bem.
Demasiado bem.
César sentia no rosto a brisa do mar enquanto revia mentalmente o que acontecera em Roma antes de ter partido: Pompeu fora para a Hispânia pouco depois do fim do julgamento de Dolabela, e essa ausência tinha-o encorajado a ousar assumir um novo caso como advogado. Tratava-se do caso contra Caio António, conhecido por todos como Hybrida – meio homem, meio animal feroz –, pela sua brutalidade. António Híbrida tinha sido outro dos oficiais mais leais do ditador Sula, tal como Dolabela, e César acusou-o, dessa vez em nome do povo da Grécia que sofrera às suas mãos, sendo ele governador.
Basílica Semprónia, Roma
Alguns meses antes, 76 a.C.
– Mutilações – disse César. Sem levantar a voz, sem espalha- fatos, sem uma expressão facial afetada de terror que sublinhasse a palavra. Não era preciso sublinhar as aberrações de que estava a falar. – Caio António mandou cortar braços e pernas e pessoas aos pedaços pelo simples facto de se oporem à sua brutalidade. E, como se não bastasse, acrescentou a esses crimes a pilhagem constante de templos e lugares sagrados, sem sequer se refugiar na angariação de fundos em nome do Estado romano para a campanha contra Mitrídates, inimigo acérrimo de Roma no Oriente. Era puro desejo do reus Caio António... Híbrida (divertiu-se ao pronunciar o apelido do acusado) acumular uma imensa fortuna, pouco lhe importando se esse património era construído de maneira ilegal, à custa do sofrimento de outros ou cometendo crimes.
Híbrida olhou para César como Dolabela tinha olhado para ele um ano antes, naquela mesma sala. Com o mesmo ódio.
Marco Terêncio Varrão Lúculo era o presidente de um tribunal controlado, mais uma vez, por optimates que não tencionavam permitir que nenhum simpatizante da causa popular, viesse de onde viesse, prendesse um dos seus. Muito menos um jovem advogado que já devia estar a caminho de um exílio combinado com Pompeu, em vez de se envolver como acusador num novo julgamento. Não importavam os crimes, não importavam as atrocidades. Se as tivessem cometido eles, os optimates, havia sempre uma justificação. De facto, os advogados de Híbrida tinham argumentado que a sua violência era inevitável para controlar uma Grécia instável, numa retaguarda, a de Sula contra Mitrídates, que precisava de impor a lei e a ordem para não enfraquecer a campanha de Roma contra o rei do Ponto.
– Mas até onde é preciso exercer a violência para controlar um território? – contra-argumentou César na sua alegação final. – Será que não há limites para a crueldade?
Estava prestes a continuar com as suas ideias em defesa dos cidadãos gregos mutilados, assassinados e roubados por Caio António Híbrida, quando viu os tribunos da plebe entrarem na basílica e atravessarem depressa o enorme salão até chegarem ao presidente do tribunal.
César olhou para Labieno, que encolheu os ombros num gesto evidente de surpresa. Segundos depois, Marco Terêncio Varrão Lúculo levantou-se da sua cathedra e dirigiu-se à sala:
– O acusado – o presidente evitava deliberadamente o termo reus para se lhe referir – apelou aos tribunos da plebe, e estes, aqui presentes, aceitam a apelação e contestam esta sentença.
César olhou de novo para Labieno, fazendo-lhe a pergunta que o amigo percebeu sem necessidade de palavras: «Mas Sula, o dita- dor e líder dos optimates, não tinha eliminado o direito de veto dos tribunos da plebe?»
Assim fora. Sula tinha eliminado o direito de veto de alguns tribunos da plebe de uma assembleia popular controlada pelo povo, mas, após anos de verdadeira limpeza «étnica» política, a Assembleia também era agora controlada com mão de ferro pelo bando optimas, com tribunos afetos à causa da ala mais conservadora, esquecendo que, originalmente, a Assembleia tinha como objetivo representar os interesses do povo de Roma. Foram esses tribunos da plebe, liderados pelos próprios optimates, que impugnaram o julgamento.
– Esta manhã, enquanto estávamos na basílica – explicou o presidente do tribunal, apercebendo-se da confusão do advogado de acusação e de todos os cidadãos que assistiam ao julgamento –, o Senado levantou o bloqueio ao direito de veto dos tribunos da plebe; não totalmente, pois não podem vetar uma lei senatorial, mas podem impugnar um julgamento... como este. E, como o impugnam e o Senado reconhece essa capacidade a partir de hoje, este julgamento fica, por conseguinte, suspenso.
Caio António Híbrida levantou-se como que impulsionado por uma mola invisível e riu-se enquanto os membros do tribunal, todos eles senadores optimates, o rodeavam para o felicitar efusivamente.
César sentou-se no seu solium, devagar, ao lado de Labieno.
– Nem sequer te deixam acabar a alegação final – disse-lhe o amigo. – É uma mensagem muito clara: não te vão deixar intervir em tribunal contra nenhum deles. Não há justiça nesta república. Agora, pelo menos.
César assentiu.
– Tenho de partir – admitiu. – Não tenho alternativa. Amanhã, quando amanhecer, vou fretar um navio e deixo Roma.
Costa do Sul da Cilícia, Mare Internum
75 a.C.
De repente, algo no horizonte trouxe César de volta ao presente e ao mar que os rodeava, e ele esqueceu-se daquele último julgamento na Basílica Semprónia.
Apareceram mesmo ao largo da pequena ilha de Farmacusa**, ao romper da aurora.
Labieno ainda estava no porão do navio, a descansar.
César viu o capitão do barco a perscrutar o mar com um gesto inquieto e, ao seguir a direção do seu olhar, vislumbrou no horizonte da ilha o contorno de vários navios de calado mínimo, talvez liburnas, ou outro tipo de embarcação ligeira, e compreendeu de imediato porque é que o capitão e a tripulação estavam tão nervo- sos, a andar de um lado para o outro.
– O que se passa?
Era Labieno; aquele corrupio dos marinheiros tinha-o acordado e ele subira ao convés.
César respondeu sem rodeios. Tudo se resumia a uma palavra:
– Piratas.
II
O avanço de Pompeu
Emporiae, costa nororiental da Hispânia Citerior
76 a.C.
Pompeu chegara por fim a Emporiae***, no Nordeste da Hispânia.
Tinha partido com o seu exército à procura de Sertório pouco depois do julgamento de Dolabela, mas precisara de mais tempo do que o previsto pelo Senado. Mais uma vez, a Gália atacava Roma e atravessar aquele território hostil fora muito dispendioso: para começar, teve de construir uma estrada nova para passar os Alpes e, assim, surpreender os sálios pela retaguarda e massacrá-los. Os sálios, povo celta de uma região próxima de Massália, eram a mais recente tribo gaulesa a revoltar-se e a lutar contra Roma.
– Este território – comentou Pompeu enquanto caminhava sobre os cadáveres dos guerreiros gauleses após a batalha – nunca será conquistado.
– O procônsul refere-se à Gália? – perguntara Gemínio, um amigo íntimo de Pompeu, de origem obscura e ainda mais obscura habilidade para a espionagem e, quando necessário, para o assassínio. De facto, pelas ruas de Roma corria o boato de que fora ele quem matara o tribuno da plebe Júnio Bruto nos momentos mais duros da luta entre optimates e populares, por ordem do próprio Pompeu.
– Sim, refiro-me à Gália – confirmou o procônsul. – É demasiado grande, demasiado hostil e demasiado rebelde. Caio Mário, a quem, apesar das veleidades populares e do ódio que tem ao Senado, reconheço capacidade militar, mal conseguiu conter as invasões vindas do Norte. Depois foram os teutões, os cimbros e os ambrões. Agora são os sálios. Amanhã pode ser qualquer outra tribo guerreira: os helvécios ou os boios, ou outra. Controlar este território é uma loucura. Quem o tentar fazer, bem pode contar com a derrota.
Gemínio assentiu.
– Os tulingos também parecem muito hostis – referiu.
– Também – concordou Pompeu. – Foi uma sorte sair assim que pudemos daquela ratoeira da Gália. Se se fica lá muito tempo, acaba-se cercado e massacrado por todas aquelas tribos inimigas de Roma. Acontecerá a algum idiota, vais ver – concluiu, premonitório.
O exército de Pompeu tinha avançado até alcançar a Hispânia e chegar a Emporiae, longe das tribos hostis da Gália. Naquela antiga colónia grega, já muito romanizada, o procônsul com imperium – com comando militar – para pôr fim à rebelião de Sertório aguardava notícias de Roma e informações sobre o colega no comando militar na região, Metelo Pio, e, claro, também sobre as tropas rebeldes.
E Gemínio, seu espião pessoal, trazia informações sobre todos eles.
Pompeu recebeu-o sentado num terraço da mansão que tinha tomado a um nobre local de Emporiae. O lugar era agradável; o dia, ensolarado; o vinho, bom.
– Por onde começo, procônsul? – perguntou o recém-chegado, enquanto bebia um copo de vinho oferecido por um escravo que se retirou de imediato para respeitar a absoluta privacidade da conversa.
– Por Metelo.
Pompeu estava ansioso para saber do líder dos optimates que, depois de vários anos de guerra contra Sertório, tinha sido incapaz de subjugar aquele que fora apenas um segundo no comando do lendário Caio Mário. Nem Pompeu, nem o Senado, nem ninguém em Roma percebia como é que o popular rebelde Sertório conseguia resistir tanto tempo encurralado na remota Hispânia, sem recursos financeiros ou humanos vindos de Roma para o ajudar a manter viva a causa popular naquele recanto do mundo.
– Metelo está no Sul, na Hispânia Ulterior, embora, na verdade, só controle uma parte da Bética – explicou Gemínio. – O resto da Hispânia Ulterior, especialmente a Lusitânia, está sob o controlo direto de Hirtuleio, um dos subordinados de Sertório.
Pompeu abanou a cabeça afirmativamente. Era por isso que ele estava ali, para recuperar o controlo de toda a Hispânia.
– E que notícias temos de Sertório? – perguntou o procônsul.
– Está no centro da Celtibéria, não se sabe a localização exata. Parece evitar confrontos diretos de grande envergadura e promove um combate de guerrilhas que desorienta as tropas de Metelo e mina a capacidade de controlarem eficazmente o resto do território.
– Pois, estou a ver... – reconheceu Pompeu, mas só em parte. – Ainda assim, não percebo como é que ele consegue resistir tão bem aos vários exércitos que Roma enviou. Para além do mais, embora não pareça um génio militar, Metelo não é incompetente, de todo. Algo nos está a escapar, por Júpiter. E quero mais informações, Gemínio, não saber só o que já sabia quando deixámos a Itália.
O interpelado baixou a cabeça em sinal de submissão.
Gemínio e Pompeu mantinham uma longa amizade, forjada quando conspiraram para recorrer à violência contra os populares, e quando Pompeu cedeu Flora a Gemínio. Flora era uma das mais belas cortesãs de Roma de que havia memória. Tinha uma relação intensa com Pompeu, mas obviamente ele nunca esteve apaixonado por ela, pois, quando soube que Gemínio desejava possuí-la, não hesitou em ceder-lha, como quem oferece um cavalo de corrida de quadrigas, na certeza de que a paixão do seu sinistro amigo pela mulher geraria nele uma lealdade difícil de obter apenas com dinheiro. E assim foi. Desde então, ele sempre fora muito útil a Pompeu, mesmo que às vezes tivesse de ser um pouco açulado, como os animais.
– Vou indagar e descobrir mais sobre como Sertório conseguiu resistir aos ataques de Metelo e das legiões durante tanto tempo – respondeu Gemínio.
– E o que é que sabemos de Roma? – perguntou Pompeu.
O Senado tinha solicitado a sua intervenção como último recurso. Já fora recompensado com um triunfo após ter derrotado os populares na Sicília e em África, durante a recente guerra civil que opusera Mário e Sula. Na Sicília, matou o fugitivo Cneu Papírio e, em África, acabou com a vida de Domício Enobarbo. Aí escapou a Marco Perpena, outro dos rebeldes populares que ainda estavam a atacar, que primeiro desembarcou na Sardenha e por fim, tal como Hirtuleio, acabou na Hispânia sob o comando de Sertório. Só quando se tornou patente que Metelo era incapaz de os entregar a todos é que o Senado, a contragosto, voltou a alterar as leis para lhe dar o imperium e um exército com o qual Pompeu pudesse pôr cobro à rebelião de Sertório. Mas Pompeu tinha-se apercebido de que as suas habilidades na repressão, a sua eficiência em derrubar exércitos populares, começavam a levantar suspeitas aos olhos do próprio Senado: suspeitas de que ele queria concentrar todo o poder em si próprio, contornando a autoridade senatorial ou subjugando-a por completo, tal como Sula fizera. Por enquanto, Pompeu aceitou o comando militar e dirigiu-se para a Hispânia, atenuando assim as suas crescentes divergências com o Senado. Cada coisa a seu tempo. Mas era fundamental ter notícias atualizadas de Roma.
– Roma continua como a deixámos, procônsul – respondeu Gemínio. – Estão atentos ao que possa acontecer aqui na Hispânia. No Oriente, pelos vistos, Mitrídates do Ponto está calmo, pelo menos por enquanto. Ah, e Escribónio Cúrio, o cônsul deste ano, parece que quer governar a província da Macedónia para o ano que vem. Os meus espiões dizem-me que ele planeia lançar uma campanha contra os mésios e os dardânios a norte. Quer atravessar a Trácia e expandir o domínio romano em direção ao Danúbio.
– Em direção ao Danúbio? – Isto chamou a atenção de Pompeu. – Parece uma ideia inteligente, uma região por onde ampliar o domínio de Roma mais facilmente do que contra Mitrídates ou os gauleses. Pode ser que as coisas corram bem a Escribónio.
Houve um breve silêncio.
– E de César, sabemos alguma coisa? – perguntou Pompeu. – Prometeu-me que se ia embora de Roma.
– Bem...
– Bem, o quê?
– O que ele fez, de facto, foi voltar aos tribunais. Tem um caso contra Caio António Híbrida.
As notícias de Roma demoravam algumas semanas a chegar, por isso Gemínio ainda não estava ao corrente de que o julgamento fora suspenso e de que César estava por fim a preparar a partida. Ou melhor, o exílio.
Pompeu inclinou a cabeça para um lado antes de comentar.
– Híbrida é tão violento como Dolabela. César continua a abusar da sorte. Mas, seja como for, prometeu-me que ia partir e vai ter de cumprir o que me disse naquela noite nas ruas de Suburra. Se não tiver saído de Roma quando voltarmos, vou ter de lhe recordar a promessa e... não vai ser só com palavras.
Disse-o muito sério, sem aparentar qualquer indício de ódio ou raiva, mas com uma frieza e uma serenidade que pareceram a Gemínio tão terríveis quanto inapeláveis.
– No Senado todos acham que o problema é Sertório – continuou o procônsul, em voz baixa, a olhar para o chão –, mas às vezes pergunto-me se Sula não terá razão e o verdadeiro problema não é Sertório, mas César.
– É muito jovem, quase não tem experiência militar, não tem exército... O que tem à sua disposição? Alguma popularidade num dos bairros mais pobres de Roma. É tudo o que tem. É o mesmo que não ter nada.
– Sim, sim... – murmurou Pompeu, ainda a olhar para baixo, pensativo, aceitando com aquelas palavras o que a sua intuição não aceitava com tanta facilidade.
Nesse momento, apareceu um legionário no terraço.
– Deve ser um dos meus informadores – explicou Gemínio e, dando Pompeu licença, virou-se para o legionário. – Diz-lhe que se aproxime.
O mensageiro entrou e entregou um papiro dobrado a Gemínio, que o mandou embora com um gesto antes de o ler. Esboçou de imediato um sorriso.
– O julgamento contra Híbrida foi vetado e César deixou Roma, tornando efetivo o seu exílio – anunciou Gemínio. – Navega para oriente.
Pompeu reclinou-se no assento:
– Com um pouco de sorte, talvez se afogue.
* Costa sul da atual República da Turquia, mar Mediterrâneo.
** Atual ilha grega de Farmakonisi, na região do Dodecaneso.
*** Ampúrias.
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