
Ao longe da colina sem fim à vista, estendiam‑se estreitas e alongadas casas beges em perfeito alinhamento. Neste bairro imaculadamente simétrico, tudo parecia uniforme. Rika sentia que estava há algum tempo a andar em círculos pelo mesmíssimo sítio. Os dedos frios da mão direita até se lhe haviam revirado para cima. Era a primeira vez que saía numa estação da linha de comboios Den‑en‑Toshi.
Esta zona, enaltecida por ser um bairro modelo para criar os filhos, fora desenhada precisamente para famílias com crianças. Talvez por isso as suas ruas fossem tão desmedidamente largas. Usando o mapa no telemóvel como guia, Rika Machida calcorreou a área em redor da estação, que, por aquela altura, estava repleta de donas de casa que saíam para comprar ingredientes para fazer o jantar. Rika ainda tinha dificuldade em aceitar que Reiko se tivesse mudado para ali de armas e bagagens.
Por aquelas bandas, só viu lojas de eletrodomésticos, restaurantes familiares e grandes cadeias de videoclubes. Por outro lado, não avistou nenhuma livraria ou outro tipo de comércio local com sinais de antiguidade. Isto é, não se via ali um pingo de história ou cultura.
Na semana anterior, Rika viajara até Kyūshū para investigar as vítimas de um crime que envolvia um jovem. Voltou para casa no próprio dia. Deslocara‑se a uma localidade residencial sem nada que desse nas vistas, tirando um supermercado regional cujo nome nunca ouvira antes ou o letreiro de um ATL entre as casas densamente arregimentadas. Pelo caminho, cruzou‑se com umas alunas da escola secundária, cujas saias tinham um comprimento que nunca havia visto em Tóquio. Caminhando sozinha por esta localidade, aonde certamente não teria ido se não tivesse este seu emprego, sentiu‑se cada vez mais apartada do dia a dia habitual,
como se ela e até mesmo a sua vida estivessem em processo de extinção. O céu tingiu‑se de tons creme indolentes. Era como a sequência de sonhos incolor que lhe residia na memória.
Pelo menos ali estavam prontos a recebe‑la, pensou Rika, tentando recuperar a consciência. Por fim, entrou na loja. Decidira que esta seria a última. O cheiro único dos supermercados, de maçãs frescas e caixas de cartão molhadas, envolveu‑a gentilmente.
Numa banca no piso do supermercado, uma mulher de meia‑idade cozinhava carne na chapa, cortando‑a em pedaços pequenos, enquanto apregoava aos clientes numa voz aguda, convidando‑os a vir provar. Rika pegou numa das embalagens de carne de porco expostas. Há quanto tempo não olhava assim de perto para um alimento? A deliciosa carne cor‑de‑rosa e a gordura branca brilhante disputavam um lugar, frescas e humedecidas.
Rika estivera a trocar mensagens com Reiko no LINE1 desde que passara pela estação de Futako‑Tamagawa. Reiko ofereceu‑se para ir buscá‑la à estação, mas Rika disse que não havia necessidade, perguntando à amiga se precisava que lhe comprasse alguma coisa de caminho. Nessa manhã, Rika regressara a casa de madrugada e caíra estatelada em cima da cama, dormindo até depois da hora de almoço. Após um duche, trabalhou no seu esboço.
Em seguida, foi até Shibuya para se reunir com um colunista do semanário. Quando reparou que horas eram, deu um salto e apressou‑se a terminar a reunião, correndo o mais rapidamente possível até ao comboio. Nem tivera tempo para ir às compras. Reiko podia ser uma das suas melhores amigas, mas a familiaridade entre as duas não atenuava a culpa que Rika sentia por ir de mãos vazias visitar a sua nova casa, para a qual se mudara após o casamento.
A resposta de Reiko veio de imediato, acompanhada por um sticker de um coelhinho na aplicação de mensagens. O seu lado mais brincalhão parecia ter voltado ao normal após se demitir do emprego no ano passado.
«Já que perguntas, podes trazer‑me um pouco de manteiga, se houver? Este inverno, tem havido rotura nos stocks de manteiga e não consigo arranjá‑la em lado nenhum. Se não conseguires, também não faz mal! O que eu mais quero é que chegues cá rápido.»
A secção de laticínios era um mar de luz amarela. Na prateleira de baixo, havia umas cinco filas vazias e com a seguinte mensagem afixada: produto esgotado. manteiga: um artigo por cliente.
Rika passou por três supermercados, mas a situação era a mesma em todos. Aceitando a inevitabilidade dos factos, pegou na margarina com o aspeto mais denso e semelhante a manteiga genuína e dirigiu‑se em passos rápidos à caixa.
A nova casa de Reiko ficava a uns cinco minutos a pé da estação, ao longo de uma pequena ladeira. Era uma casa indistinguível de todas as outras na vizinhança, com três pisos e cem metros quadrados de área, rentabilizando ao máximo o terreno em que fora construída. O Toyota no lugar de estacionamento parecia caber ali na perfeição, como se o espaço tivesse sido desenhado à sua medida. Entre o portão exterior e a porta da entrada, havia vários canteiros com margaridas, amores‑perfeitos e outras flores. Da porta, pendia uma coroa de azevinho. O perfume a Reiko que pairava no ar tranquilizou Rika. Com um suspiro, levou o dedo à campainha.
– Bem‑vinda! Rika, nem acredito! Há quanto tempo!
Mal a porta da entrada se abriu, Reiko apareceu de supetão, trajada de avental de cozinha. Deu um abraço a Rika, que retribuiu com toda a naturalidade, envolvendo os finos ombros de Reiko com os braços. Rika tinha um metro e sessenta e seis e era mais alta do que a baixinha e frágil Reiko. Com um abraço, Rika poderia cingi‑la por inteiro. Uma das características de Reiko era a fragrância de violetas que lhe emanava do cabelo. Os olhos de Rika entraram em ebulição. Quiçá ela estivesse esfomeada por expressões de afeto diretas, como esta, ou, simplesmente, pelo calor humano de outra pessoa.
Aquela receção calorosa não era apenas para manter as aparências.
Nos tempos de faculdade, as duas passavam quase todos os dias juntas. Agora, fazia seis meses desde a última vez que se haviam encontrado. Mesmo após Reiko se ter demitido do seu emprego, a vida de Rika continuava num corrupio, pelo que era difícil conciliarem as agendas. Rika tinha folgas às terças e quartas‑feiras, mas dentre ela e os colegas, só o mais jovem, Kitamura, conseguia desfrutar de um calmo dia de descanso.
Hoje, era quarta‑feira, suposta folga, e tinha tido uma reunião de trabalho. Mais tarde, iria ao escritório fazer mais trabalho de pesquisa.
Por entre o cheiro a madeira, característico das casas recém‑construídas, Rika detetou os aromas aprazíveis de um dashi (caldo rico em umami, feito com alga kombu e katsuobushi, que pode ser considerado uma das bases fundamentais da culinária japonesa) e de queijo a derreter. Calçou as pantufas quentinhas que Reiko lhe deu e, em troca, deixou com ela o seu casaco.
Começou a andar pelo chão de madeira, que não apresentava nem uma única marca de desgaste, até chegar a uma sala plena de uma luz alaranjada. Era uma sala e kitchenette com cerca de dezoito metros quadrados e um ar perfeitamente normal. Por outro lado, os tecidos Liberty nas cortinas e no sofá, o armário de cozinha e as estante de um tom torrado escuro, quase com estilo de antiguidade, e as colagens na parede de um artista que Rika desconhecia, criavam o ambiente de um sótão acolhedor, semelhante ao do antigo apartamento em Oyamadai onde Reiko vivera sozinha.
A fragrância de violeta intensificou‑se. Aquele ambiente relaxado, mas sem uma única fotografia de casamento ou da lua de mel, era muito característico de Reiko. Aliás, desde sempre odiara tirar fotografias de si mesma. Rika bochechou e lavou as mãos no lavatório, secando‑as com uma de muitas toalhas fofas que estavam num cesto, como as que se costumam ver nos toucadores dos hotéis. O aroma delicado do amaciador sublimou‑se.
Normalmente, Rika não ligava a estas coisas. Desta vez, porém, teve vontade de perguntar de que marca era.
– Desculpa. Vim atrasada e só consegui encontrar esta coisa sem jeito nenhum. «Margarina concentrada com 50% de manteiga» – leu em voz alta, tirando o produto do saco de plástico e mostrando‑o a Reiko.
– Uau! Que bom! Muito obrigado – agradeceu a amiga, com um sorriso, enquanto punha a margarina no frigorífico.
Na verdade, Riko era incapaz de distinguir o sabor ou outras características da manteiga pura e da margarina.
– Fui a todos os supermercados da zona, mas só encontrei margarina…
– A sério? Desculpa. Um trajeto tão demorado que termina em manteiga… faz‑me lembrar a história do Pequeno Sambo Negro (O livro infantil The Story of Little Black Sambo, de Helen Bannerman (1899), narra um episódio em que tigres se transformam em manteiga clarificada ghee!) Reiko riu‑se e veio até onde Rika estava, na sala, e tirou um livro vermelho da estante. Era um álbum ilustrado: The Story of Little Black Sambo. Se bem se lembrava, Rika lera‑o no infantário.
Não se recordava bem dos pormenores da história, mas reconhecia as suas cores vívidas e os seus traços soltos.
– Quando vejo um livro infantil que ache bom para quando o bebé nascer, compro‑o logo! Acho que este livro vai desaparecer rapidamente. O Story of Little Black Sambo praticamente já nem está em circulação por causa das suas representações dos negros.
Pessoalmente, não acho que seja muito racista, mas pronto…
Pela forma como Reiko falava, até parecia que o bebé já existia neste mundo ou que estava prestes a aparecer ali na sala.
O obstetra indicou‑lhe que ainda não tinha conseguido engravidar após dois anos de casamento devido ao seu ambiente de trabalho agitado e stressante. Com isso em mente, no verão passado, Reiko não hesitou: demitiu‑se prontamente desse emprego, que não lhe permitia sequer ir a consultas periódicas no hospital.
Rika olhou secretamente para a amiga, que folheava alegremente o álbum ilustrado.
Não havia sinais de que estivesse grávida. Contudo, Reiko já emanava a placidez típica de uma mãe. Comparando com os tempos em que trabalhava, a sua pele ao natural e o seu cabelo tinham um ar mais luzidio; as suas pupilas castanhas e húmidas resplandeciam, os seus lábios carnudos eram pétalas. Reiko tinha um aspeto descontraído, refeito. Trazia umas leggings azul‑marinhas justas coladas às pernas esguias, espraiando‑se da ponta de uma saia com padrões florais. Por fim, tinha perneiras de lã, provavelmente para manter o corpo quente. Anteriormente, trabalhara para o departamento de relações públicas de uma grande produtora de cinema. Nessa época, o seu vestuário era sempre imaculado. Agora, tinha um ar mais casual, mas nem por isso menos adorável e com um je ne sais quoi parisiense. O seu ar pueril não parecia condizer com os seus trinta e três anos, os mesmos de Rika. Quando a hábil Reiko se demitiu do seu emprego, Rika achou que tinha sido um desperdício. Pior ainda, sentiu uma indescritível revolta e solidão, como se tivesse sido abandonada no deserto. Mal conseguia dormir. Aliás, como resultado, tiveram várias discussões acesas ao telefone.
Rika olhou por cima dos esguios ombros de Reiko, examinando o livro ilustrado. Recordou os tempos de faculdade, em que partilhavam o mesmo manual na sala de aula. Em The Story of Little Black Sambo, um rapaz negro cruza‑se com tigres na selva, que lhe roubam as roupas e os seus pertences. Porém, enquanto se gabam de ser os melhores, os tigres começam a comer as caudas uns dos outros, andando às voltas de uma árvore até que todos se transformam num líquido amarelo: manteiga. Acidentalmente, o pai de Sambo encontra essa manteiga, leva‑a para casa e, com ela, faz panquecas. No fim, os tigres acabam nos estômagos da família de Sambo. É uma história profundamente cruel, mas narrada com a maior naturalidade.
– A família do Sambo era mesmo má – disse a Reiko. – Até me deu pena dos tigres…
– O que é que estás para aí a dizer? A culpa foi deles! Não foram os tigres que tentaram comer o Sambo primeiro? A sua vaidade fê‑los concentrarem‑se excessivamente na competição a ponto de se autodestruírem. Creio que a moral da história seja não seguir esse mau exemplo.
Estavam as duas a conversar quando se ouviu a porta a abrir.
– Viva, Rika. Já cá estavas. Faz tanto tempo que não nos víamos!
Ryōsuke voltara para casa mais cedo do que Rika imaginara.
Trabalhava para o departamento de vendas de uma empresa de médias dimensões que atuava no fabrico de doces. Nos tempos de faculdade, era quarterback do clube de futebol americano, o que lhe garantia um físico impressionante e invejável. As suas principais características eram os olhos finos, e com um ar sempre sorridente, e as suas faces rosadas, como as de um menino.
À primeira vista, não parecia ter nada em comum com Reiko, muito menos tema de conversa para falar com ela.
Os dois conheceram‑se durante uma campanha de publicidade para um filme. A empresa de Ryōsuke ia vender tartes inspiradas na heroína do filme em cinemas selecionados. Por esse motivo, tinham tido várias reuniões de trabalho. Foi Reiko quem reparou nele primeiro. Quando o viu pela primeira vez, decidira que só ele podia ser o seu escolhido. Inicialmente, Ryōsuke resistiu à investida fustigante de Reiko. Aos seus olhos, parecia‑lhe inalcançável. Contudo, quando conheceu o seu lado mais reservado e puro, abriu as portas do seu coração. Ryōsuke dava‑se muito bem com os seus pais, que tinham um izakaya (típicos bares japoneses, bastante informais, que servem petiscos para compartilhar e acompanhar bebidas em Saitama).
Tinha crescido com dois irmãos num lar muito animado.
A sua aura pacífica foi suficiente para atrair Reiko. No passado, Rika chegara a sentir alguma inveja de Reiko pelo seu namorado.
Mas, agora, esses sentimentos já se tinham evaporado. De qualquer modo, não podia negar que se sentira desapossada de uma parte de si ao ver Reiko vestida de noiva pela primeira vez.
Reiko trouxe para a mesa vários pratos com designs e modelos diferentes, dando início ao jantar. Serviu Bagna càuda com diversos vegetais de inverno cozidos a vapor e com um molho de anchovas espesso; fatias finas de porco salgado; um gratinado de alho‑frances em leite de soja; arroz cozinhado numa panela de barro com legumes e ostras picadas, e sopa miso. Os pratos tinham um sabor robusto, graças ao uso exclusivo de ingredientes da estação. Embora os temperos fossem comedidos, todos os seus sabores gabavam uma densidade prazerosa. «As ostras não estimulam a fertilidade?», questionou Rika mentalmente, lançando um olhar a Reiko enquanto levava à boca um bocado de arroz embebido em molho de soja; cheirava a mar. Rika deu‑se conta de que estava com mais apetite do que nos últimos dias. Isso explicava‑se, em parte, por a comida estar deliciosa, mas também pela forma prazerosa como Ryōsuke comia.
– Posso servir‑me outra vez? A carne de porco está mesmo tenrinha. Sinceramente, até podias servir isto num restaurante — exclamou Ryōsuke. Com os olhos semicerrados, quais fios, estendeu o prato vazio. Ao ver Reiko a servir‑lhe a comida com um ar tão vaidoso, Rika compreendeu novamente porque é que Reiko o elegera.
De repente, Rika sentiu‑se envergonhada por considerar aquela zona desprovida de cultura. Provavelmente, os dois tinham escolhido este bairro em casal, planeando o seu futuro com base nos rendimentos de Ryōsuke, dando prioridade à segurança e ao conforto. Pelo visto, Reiko não mantinha contacto com os seus próprios pais. Ou seja, não fazia tenções de lhes pedir ajuda financeira.
– Eu sei que isto vai soar lamechas, mas, assim, até eu gostava de ter uma mulher! Deves estar feliz da vida, Ryōsuke.
Rika não estava apenas a bajula‑lo: sentia genuína inveja de Ryōsuke, que permanecia sentado à sua frente com um sorriso relaxado. A pele de Ryōsuke brilhava. A sua expressão demonstrava que estava em paz consigo mesmo.
No local de trabalho, Rika reparou que os homens casados da geração mais velha conseguiam estar mais relaxados. Apesar de eles mesmos andarem sempre numa azáfama, a maioria das suas esposas eram donas de casa. Rika nunca tinha considerado esse tipo de vida para si própria, mas conseguia compreender a força que essas mulheres davam às suas famílias. Todas as noites, elas limpavam as impurezas que os parceiros haviam acumulado ao longo do dia. Se fossem deixadas a seu bel‑prazer durante muito tempo, essas impurezas poderiam corroer‑lhes o corpo. O seu colega mais velho, que morrera inesperadamente em casa no mês passado, era solteiro e vivia sozinho. Na mente de Rika, surgiu a imagem do seu próprio apartamento frio e que não limpava há algum tempo. A casa desse colega não devia ser muito diferente.
Esse apartamento também se assemelhava muito ao que o pai de Rika habitara sozinho após se divorciar.
– Da próxima vez, devias trazer o teu namorado. Ainda não conheci o Makoto.
«Ah, pois é, eu tenho um namorado», recordou‑se Rika, sentindo uma súbita vontade de rir.
Makoto Fujimura trabalhava no departamento literário da empresa de Rika. Talvez porque eram originalmente amigos, a sua relação era tudo menos amorosa. Durante a semana, só se viam quando se cruzavam nos corredores do escritório. Ou seja, fora do trabalho, só se encontravam talvez uma vez por mês quando passavam a noite na casa um do outro. Não obstante, Makoto continuava a ser uma presença inestimável na sua vida, pois podia partilhar com eles as suas agonias. Na verdade, até se sentia grata pela distância que mantinham na sua relação.
– Rika, o que é que tens andado a comer? Andas a cuidar bem de ti? Parece que emagreceste outra vez. No outro dia, li que o consumo médio de calorias das mulheres japonesas hoje em dia é inferior aos níveis registados logo a seguir à Segunda Guerra Mundial – comentou Reiko.
– Não me surpreende. Para dizer a verdade, não tenho tempo para cozinhar. Nem sequer tenho uma máquina de cozer arroz. Para quê? Nunca a usaria… Na maioria das vezes, passo as noites a entreter burocratas ou a jantar com alguém que estou a entrevistar para uma reportagem.
– Entreter burocratas? Aposto que comes pratos deliciosos que nem nos passam pela cabeça! – comentou Ryōsuke.
Rika recordou uma ida a um restaurante em Ginza, onde tinha sido tratada como uma empregada de um bar de alterne.
A maioria dos burocratas inventava mal‑entendidos convenientes para aquela situação. Decidia, por exemplo, que uma jornalista que se aproximava deles não o fazia porque precisasse de material para escrever, mas porque se sentia sexualmente atraída por eles.
O alho‑francês do gratinado, com a sua textura macia e derretida, deixou‑lhe subitamente um sabor amargo na boca. Rika mudou o tema de conversa.
– Não percebo nada de sabores! Tenho o palato de uma criança. Eu cá fico feliz com as refeições prontas das lojas de conveniência ou com o caril que servem nos restaurantes familiares.
Desde cedo que Rika não se interessava por comida e por moda, as duas áreas em que as mulheres costumam mostrar mais interesse. Todavia, com a sua estatura, parecia atarracada, pelo que tinha o cuidado de nunca ultrapassar os cinquenta quilos. Talvez isso fosse influência da sua mãe, que era muito ciosa da estética.
Rika esforçava‑se por não comer à noite após determinadas horas.
Quando acompanhava clientes e eles mandavam vir comida para a mesa, fazia questão de só tocar em vegetais e sopas. Na loja de conveniência à porta do escritório, aonde ia duas vezes por dia, comprava produtos saudáveis, como iogurtes, saladas e massa Harusame. Não tinha tempo para ir ao ginásio, mas tentava caminhar sempre que possível. O seu físico magro garantia‑lhe que, embora não fosse exatamente uma beldade, receberia sempre elogios e os artigos de moda rápida que escolhia aleatoriamente nunca deixariam de se lhe ajustar à figura. Rika trabalhava numa indústria em que o cuidado com a aparência era recompensado com sucesso profissional. Quando andava na escola para meninas, tinha recebido muitas cartas de colegas mais novas graças aos seus olhos alongados e rosto delgado, semelhante ao dos rapazes.
– Não acho que te falte bom gosto, Rika. A Misaki dizia sempre que não tinha investido na culinária, mas sempre fez de tudo para dar o melhor à filha. Ela, a criar a filha sozinha, fez mais do que os meus dois pais juntos. É impressionante!
Devido à intimidade entre as duas, Reiko chamava a mãe de Rika pelo nome próprio: Misaki.
Os pais de Rika divorciaram‑se imediatamente depois de ela entrar para o décimo ano de escolaridade. A mãe aproveitou a separação para se tornar coproprietária de uma butique que uma amiga tinha aberto. Não tendo recebido uma indemnização pelo divórcio e não contando com pensão de sobrevivência do ex‑marido, a sua mãe focou‑se afincadamente no trabalho, do qual raramente descansava. Nunca havia sido uma cozinheira particularmente talentosa, mas, enquanto estava casada com o pai de Rika, tentava decorar a mesa com uma variedade de pratos.
Porém, quando começou a trabalhar, pediu à filha:
– Desculpa, mas importas‑te de me dar uma ajuda a partir de agora?
Rika fez de tudo para ajudar. Certificava‑se de que a casa estava limpa e a roupa lavada antes de a mãe voltar a casa do trabalho. Punha o arroz a cozer na máquina e fazia a sopa miso.
Quando a mãe chegava, já depois das oito da noite, trazia petiscos que comprara no supermercado Seijō‑Ishii ou no Peacock e que serviriam de jantar tardio. Por um lado, não comiam pratos elaborados. Por outro, já não havia o ambiente tenso de quando o pai estivera presente. Além disso, era frequente irem jantar a restaurantes familiares. De certa forma, este estilo de vida fazia‑a sentir‑se como se estivesse numa colónia de verão; era uma extensão da brincadeira. A sensação de que confiavam nela ajudou‑a a desenvolver a autoestima.
Este ritmo de vida perdurou até Rika sair de casa aos vinte e dois anos. Quando a butique se começou a afirmar, a mãe de Rika passou a ir mais vezes ao estrangeiro para procurar novos produtos e, em alguns meses, Rika passava mais tempo com os avós em Okusawa. Mesmo assim, até hoje, ela e a mãe são próximas.
Rika nunca passou por uma fase de rebeldia; tomou sozinha todas as decisões sobre os seus estudos universitários e a sua carreira.
A sua mãe trabalhadora, que já tinha passado dos sessenta anos, ainda trabalhava na segunda localização da butique, que ficava na zona de Jiyūgaoka. Embora nunca o tenha dito diretamente, constava que tinha uma relação com alguém.
Quando andavam na faculdade, Reiko ia muitas vezes cozinhar ao apartamento em Hatanodai onde Rika vivia com a mãe.
Tanto Rika como a mãe ficaram surpreendidas ao descobrir que Reiko era uma hábil cozinheira. Mesmo quando preparava refeições simples, como ochazuke, sopa de arroz cozido com chá verde e dashi, ou massa italiana, as suas pequenas adições de casca de yuzu ou limão com sal exibiam o seu bom gosto e inventividade, dando aos seus pratos um sabor que dava vontade de saborear com calma. Reiko era filha única dos proprietários de um hotel com história em Kanazawa. Tinha um sentido estético obstinadamente fixo e um espírito rebelde que nunca ninguém anteciparia vendo a sua aparência refinada. Desde a infância que os seus pais estavam separados de facto, mas continuavam a viver na mesma casa, cada um na sua divisão. Ambos tinham parceiros com o consentimento do outro e nenhum dos dois dedicava muita atenção à filha. Para Reiko, que passara grande parte da infância com a empregada doméstica, cujos dotes culinários eram invejáveis, «o sabor da comida caseira» encontrava‑se numa mesa repleta de requintadas terrinas decorativas e pequeninos pratos cujo conteúdo calórico havia sido calculado ao grama.
– Se alguma vez tiver um filho ou uma filha, quero que eles cresçam a comer pratos e doces feitos por mim – costumava dizer Reiko. – Estou a aprender para que, quando chegar a altura, eu seja capaz de fazer comida saudável, mas que também os motive a comer muito.
O ambiente em que as duas cresceram era muito diferente.
Porém, ambas partilhavam, desde cedo, o desconforto com a família perfeita idealizada pela sociedade. Talvez tenha sido por isso que, quando os seus olhares se cruzaram na cerimónia de início do ano escolar, Rika ganhou coragem para falar com Reiko.
Reiko ergueu o rosto; as suas pupilas prenhes de curiosidade.
– Fala‑me do teu trabalho. Da última vez que falámos, estavas a tentar obter autorização para entrevistar a Manako Kajii. O que é que aconteceu com esse projeto?
Manako Kajii (alcunha: Kajimana) era a suspeita condenada num caso que envolvia várias mortes suspeitas em Tóquio e que, desde há anos, vinha causando grande agitação nos meios de comunicação social. Utilizando um site de encontros para pessoas que se queriam casar, tinha extorquido dinheiro a vários homens, tendo sido acusada de assassinar três deles. O seu blogue, no qual escreveu até à véspera da sua captura e que veio a tornar‑se tema de conversa, continha descrições de comidas extravagantes e de outros luxos. Manako ocupava‑se a comprar comida de rua e a comer produtos por encomenda. Também se orgulhava dos seus próprios pratos. Os meios de comunicação social não pareciam cansar‑se do seu caso, cuja presença na Internet lhe conferia um pendor mais atual. De momento, Kajii estava no Centro de Detenção de Tóquio a aguardar julgamento.
O caso intrigara Rika desde o momento da detenção. Na altura, Rika fazia parte de uma equipa de reportagem diferente, o que não lhe permitiu envolver‑se diretamente. No entanto, o caso continuava a fascina‑la e agora aproximava‑se da idade que Kajii tinha quando foi capturada pelas autoridades. As eleições em que Rika tinha estado envolvida até agora estavam a chegar ao fim. Finalmente teria tempo para investigar histórias a seu bel‑prazer.
– Aposto que a Kajimana come imenso! É por isso que ela é tão gorda. Nem sei como é que uma pessoa tão balofa conseguiu enganar tanta gente a querer casar com ela! Os pratos dela eram assim tão bons? – perguntou Ryōsuke.
Rika sentiu um arrepio. Reparou na testa de Reiko franzir‑se por instantes. Reiko sempre fora ainda mais sensível à misoginia do que a própria Rika. Ryōsuke não era particularmente insensível.
As palavras que acabara de proferir enquadravam‑se na reação típica de um homem comum. A razão pela qual o caso tinha atraído tanta atenção era esta mulher, que tinha manipulado vários homens e se tinha comportado como uma rainha no tribunal, não ser nem jovem nem bonita. Pelo que Rika pôde ver pelas fotografias, o seu peso excedia claramente os setenta quilos.
– Mais do que encontrar nova pistas sobre o caso dela, o que me interessa é o contexto social subjacente. Sinto que o caso está manchado por uma fervente misoginia. Toda a gente envolvida, desde a própria Kajimana às suas vítimas, e até outros homens implicados, me parece odiar as mulheres. Não sei se conseguirei transmitir eficazmente essa faceta da história numa revista para público masculino como a nossa, mas quero tentar. Contudo, já escrevi várias vezes à própria, mas não obtive resposta. Até estive pessoalmente no Centro de Detenção de Tóquio duas vezes, mas parece que ela não me quer ver.
«Estou sozinho há muito tempo. Preciso de uma mulher que cuide de mim quando for velho, quero lá saber se ela é feia ou não.»
«Não ligo à aparência, desde que seja fada do lar e cozinhe para mim.»
«Sim, ela é gorda, mas age como uma princesinha. É algo ingénua, intocada.»
Ainda em vida, as três vítimas mortais tinham feito declarações destas às pessoas que lhes eram próximas. Sentia‑se que tinham claramente uma forte carência de Kajii e sabia‑se que lhe tinham oferecido somas significativas de dinheiro. Todavia, na presença de terceiros, tinham feito repetidamente afirmações humilhantes a seu respeito. No tribunal, a acusação tinha desconsiderado álibis e provas materiais, escolhendo, em alternativa, questionar a castidade de Kajii. A sua linha de argumentação desviou‑se de tal forma que o julgamento emperrou. Uma das testemunhas, uma cuidadora de idosos, foi interrogada de uma forma que muitos consideraram roçar o assédio sexual.
O debate em torno do caso dividiu‑se entre homens e mulheres.
As declarações de um crítico preeminente do sexo masculino foram consideradas misóginas. No fim, viu‑se obrigado a pedir desculpa.
– A última vítima… como é que ele se chamava? Sabem, o tipo que era famoso na Internet por ser um nerd? Antes de ser atropelado pelo comboio, tinha comido um guisado de carne de vaca que a Manako Kajii fez para ele. Será que ela aprendeu a cozinhar esse prato na escola de culinária francesa… no…no… ah, sim! No Salon de Miyuko.
Reiko parecia andar a ler avidamente sobre o caso nas revistas semanais e na Internet. Desde sempre que gostava de estar a par das últimas novidades e tendências. Deixava‑se levar, mas no bom sentido. Era diligente e apaixonada pela investigação.
Na faculdade, era sempre a melhor da turma, tendo hesitado até ao último momento em prosseguir estudos de mestrado ou não.
O Salon de Miyuko era uma exclusiva escola de culinária só para mulheres criada por Miyuko Sasazuka, mulher do Chef Sasazuka, o chef e proprietário do famoso restaurante francês Balzac, no bairro de Nishi‑Azabu.
Nos dias de fecho do Balzac, Miyuko Sasazuka, que trabalhava no restaurante com o marido, tomava conta das instalações para gerir a escola de culinária, cujos atrativos eram os alunos não só terem acesso total à cozinha do Balzac, incluindo os fornos de uso profissional e os equipamentos de cozinha utilizados pelos seus chefs, mas poderem cozinhar com os ingredientes de mais alta qualidade à disposição do restaurante.
As aulas ocorriam três vezes por mês e tinham o custo de quinze mil ienes. Nesse sentido, as propinas anuais eram tudo menos baratas, podendo ultrapassar os quinhentos mil ienes. Ademais, a conclusão do curso não conferia aos alunos qualquer tipo de certificação ou aptidão para se tornarem profissionais. As aulas eram mais como um passatempo extremamente luxuoso e apenas ao alcance de donas de casa ricas e mulheres com rendimentos elevados. Até dois meses antes de ser detida, Manako Kajii frequentara zelosamente a escola, fazendo com que uma das vítimas assumisse a despesa das propinas. Uma rápida pesquisa na Internet revelava fotografias de grupo da sala de aula com Kajii e outras alunas presentes. Dentre aquele grupo de mulheres chiques e impecavelmente trajadas, Kajii destacava‑se na negativa pelo seu vestido justo que lhe acentuava a figura voluptuosa e teria sido mais adequado para um encontro do que para uma aula de culinária.
Consta que, após o ataque mediático, a escola de culinária suspendera as aulas.
– Parece que, pouco antes de morrer, uma das vítimas enviou uma mensagem à sua mãe. Dizia: «a minha namorada fez‑me guisado de carne de vaca! Estava uma delícia!». Lembram‑se do argumento do advogado de Kajii em tribunal? Ele rebateu que uma mulher que passava o tempo todo a cozinhar um bom guisado de carne para o seu amado nunca empurraria esse mesmo homem para a frente de um comboio. Olha, Rika, da próxima vez que lhe escreveres, porque é que não lhe perguntas se ela pode partilhar a receita contigo? Aposto que aí ela aceitará encontrar‑se contigo…
Rika pestanejou. A ideia nunca lhe tinha ocorrido. Quando trabalhava na agência de publicidade, Reiko usara muitas vezes a sua atenção, humor e talento para criar prendas surpreendentes para conquistar realizadores de cinema, diretores de agências de talentos e patrocinadores com personalidades difíceis, de modo que partilhassem a visão das coisas.
– As mulheres que gostam de cozinhar ficam tão embevecidas quando alguém lhes pede uma receita, que acabam por falar até de coisas que não lhes foram pedidas. Tenho a certeza de que há uma lei que explica este comportamento. Eu sou tal qual.
– Pois és! Recentemente, um dos meus colegas da empresa veio cá com a mulher e os filhos e ficou muito impressionado com os shūmai5 que a Reiko fez. Então, a Reiko começou a contar‑lhe em pormenor como se faz, o tipo de utensílios necessários para cozer a vapor e mais não sei o quê. Nem ele imaginava que ela ficasse tão entusiasmada – comentou Ryōsuke, rindo.
– Ryō, um dia eu também gostava de ir ao Salon de Miyuko.
– Com o meu salário, não me parece possível.
A sobremesa ia ser castanhas cristalizadas caseiras, bolo chiffon cozido com saquê doce e farinha de arroz, e chávenas de chai com gengibre. Ao trincar um pedaço de bolo, Rika descobriu que não só era incrivelmente fofo, como tinha uma agradável elasticidade e textura. Todavia, quando arregalou os olhos e elogiou Reiko, ela franziu o sobrolho com um ar de amargura.
– O Natal está à porta, e eu queria fazer um Bûche de Noël com um creme de manteiga espesso, mas é claro que, sem manteiga, está fora de questão. Olha, Ryō, a Rika também foi ver, mas parece que não há mesmo manteiga na zona. A continuar assim, não vou poder fazer pound cake ou Génoises. Acho que só me resta o bolo chiffon, porque é a única coisa que posso fazer com óleo de colza.
– Este bolo é tão molinho! É ótimo. Seja como for, creio que a escassez de manteiga se vai prolongar. Dizem que, por causa do calor extremo do verão passado, muitas vacas leiteiras apanharam mastite, e que é essa a causa. Mas não se percebe, porque, quando previram a rotura na produção e no stock, tinham feito uma importação em grande escala como medida de emergência.
— Esses produtos importados desapareceram, foi?
Hoje em dia, há cada vez menos produtores de leite no Japão. Eventualmente, importaremos todos os nossos produtos lácteos do estrangeiro. Para uma pequena empresa como a nossa, este é um golpe duríssimo.
Enquanto anuía às palavras de Ryōsuke, Rika lembrou‑se subitamente de que Manako Kajii adorava manteiga. O interesse de Rika por comida era tão superficial, que ela só lera o blogue de Kajii por alto. No entanto, lembrava‑se de que Kajii escrevera em pormenor sobre marcas de manteiga premium, facto que achou marcante.
Pensando bem, tinha havido uma discussão em tribunal sobre como Kajii tinha usado, sem permissão o cartão de crédito de uma das vítimas para comprar variados pacotes de manteiga que custavam quase dois mil ienes cada um. Kajii crescera em Niigata, numa família que tinha e se ocupava de quintas leiteiras. Talvez isso explicasse os seus exigentes critérios em relação aos laticínios. Essa sua fixação foi ridicularizada na Internet, com comentários como:
«Deve ter engordado tanto, porque come demasiada manteiga» ou «Aposto que usa a manteiga para fazer coisas porcas».
Pouco depois das nove, Rika despediu‑se, recusando educadamente os pedidos do casal para que ficasse mais tempo e dormisse ali se tivesse de acordar cedo de manhã. Levando num saco um onigiri, bola de arroz envolvida em alga, com ostras e legumes e uma fatia de bolo chiffon embrulhado em película aderente que Reiko lhe deu, Rika foi até ao escritório da empresa.
«Só quero passar o meu tempo com pessoas que sabem o que é verdadeiro. Há cada vez menos gente verdadeira.»
Este era o tipo de frases que Manako Kajii gostava de escrever no seu blogue.
Alguém que conhece a realidade quando a presencia. Parecia ser uma descrição perfeita de Reiko.
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