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Veneza

3 de setembro de 1957

– Muito me alegro que tenhas deixado para trás o frio e a humidade de Edimburgo para vir à minha modesta festa – disse Elsa, ao cumprimentar a sua amiga Maria Callas estreitando‐a junto ao seu peito exuberante. A coroa ducal, dourada e coberta de pérolas, com toda a probabilidade uma peça original do século xvi ou mesmo anterior, escorregou‐lhe da cabeça. – Esta noite és a minha protagonista.

«A modesta festa» era o baile de outono que Elsa Maxwell organizava no aristocrático Hotel Danieli, o ponto culminante do Festival de Cinema de Veneza, frequentado em peso pela alta sociedade. Maria não precisava de olhar em redor para saber que o salão renascentista se encontrava repleto de personalidades de Hollywood, milionários e princesas e príncipes de verdadeiro sangue azul. Em todo o caso, não restavam dúvidas de que ela era a mais famosa: a diva assoluta. Uma soprano cujo nome conheciam inclusive aqueles que não apreciavam a ópera. A mulher mais conhecida do mundo, trinta e quatro anos, atraente, rica e provavelmente no auge da sua carreira, embora o horizonte ainda fosse bastante amplo.

A sua amiga Elsa, uma mulher anafada de setenta e quatro anos, era jornalista, publicava as notícias da sociedade do panorama internacional e decidia nas suas colunas a ascensão e a queda dos grandes do show business e da high society. Sentia‐se em casa tanto na Europa como nos Estados Unidos, organizava desde corridas de cavalos até excursões de veleiro e festas, forjava alianças românticas e de negócios, e ninguém que tivesse interesse em fazer carreira recusava os seus convites. Não obstante, nessa noite Maria Callas não tinha ido apenas marcar presença com o seu brilho, estava também deveras agradecida por ter tido um pretexto para fugir da miudinha e persistente chuva escocesa.

O verão havia sido desgastante. A fadiga das atuações, a par de uma série de obrigações sociais, tinham‐na conduzido à beira do colapso há algumas semanas. Apesar de o médico a ter desaconselhado, viajou com a companhia do La Scala de Milão até ao prestigiado Festival de Edimburgo. Triunfou na Escócia, mas a cada dia que passava encontrava‐se pior. Resistiu quatro noites e sentiu um enorme alívio ao ver que não tinha problemas com a voz. No entanto, quando lhe acrescentaram de surpresa uma quinta atuação, cancelou‐a. Não só porque começou de repente a sentir calafrios e a sofrer de fortes dores de cabeça, além de hipotensão, como também porque a nova data coincidia com o baile de outono de Elsa. Maria tinha a certeza de que não possuiria forças para outra atuação e regressou de avião a Milão a fim de recuperar no aconchego do seu refúgio no lago de Garda antes de comparecer à festa.

Fortalecida por uns quantos dias de sossego e rodeada pelos convidados da sua amiga íntima, subiu com ligeireza a centenária escadaria de pedra, coberta por um tapete vermelho, de modo a dirigir‐se para os salões onde seria servido um requintado jantar. Tinha subido e descido do palco tantas vezes que quase não precisava de prestar atenção aos pés para se deslocar com uma elegância impressionante. Sem óculos não via muito bem onde pisava, mas não tinha necessidade de olhar. A roupa que havia escolhido para o serão, bastante simples porém muito favorecedora, fazia‐a sentir‐se em harmonia consigo mesma tal como quando cantava uma ária: um bustier branco e justo ao corpo e uma saia ampla e rodada, de cetim branco e pintas pretas, além de um cinto largo e branco e umas luvas pretas de cerimónia compridas. Renunciara a pôr um chapéu espetacular, a sua única deferência para com o lema da festa eram umas esmeraldas, que brilhavam à luz das centenas de velas que ali havia, e os diamantes que lhe haviam entrelaçado no cabelo apanhado. Sentia‐se às mil maravilhas, sobretudo porque quando se olhara ao espelho reparara que nessa noite se assemelhava muito ao seu ídolo: Maria admirava profundamente a atriz Audrey Hepburn. Sabia que nunca seria capaz de obter a sua fragilidade de corça, mas quatro anos antes conseguira emagrecer quase quarenta quilos em doze meses graças a uma disciplina férrea, e desde então mantinha a linha. Noutros tempos, com uma estatura de um metro e setenta e três centímetros, tinha chegado a pesar cento e vinte quilos. Um médico suíço ajudara‐a a fazer dieta com comprimidos hormonais, medicamentos para a tiroide e pílulas diuréticas, um regime mais útil do que comer apenas com os olhos. Para não deitar a perder os resultados dos seus esforços, encomendara um retrato em que parecia irmã de Audrey Hepburn. Quando via as fotografias, tinha uma sensação de felicidade que nunca havia conhecido até então: pela primeira vez na vida sentia‐se confortável na sua pele. A sua única amargura era o facto de a dieta não ter mudado a robustez das suas pernas, mas escondia‐as com saias rodadas compridas tal como a que exibia essa noite.

Luísa Sobral vem ao É Desta Que Leio Isto. Quer ler "Apenas Miúdos", de Patti Smith? Junte-se à conversa

Luísa Sobral junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 14 de setembro, pelas 21h.

Habituada a recomendar leituras nas suas redes sociais, traz um livro para o clube É Desta Que Leio Isto — e não deixa a música de fora: "Apenas Miúdos", de Patti Smith.

"Apenas Miúdos", de Patti Smith

Este é o primeiro livro de Patti Smith em prosa. É um livro de memórias — que começa no Verão em que Coltrane morreu, do Verão do amor livre e de todos os motins, do Verão em que conheceu a figura central deste livro — o lendário fotógrafo americano Robert Mapplethorpe. Mas é também um retrato de época — dos dias do Chelsea Hotel e de Nova Iorque no fim dos anos 1960 — e uma comovente história de juventude e amizade.

Just Kids é uma fábula em que encontramos poesia, rock’n’roll, sexo e arte que começa numa história de amor e acaba numa elegia.

Sobre Luísa Sobral:

Luísa Sobral é considerada uma das cantoras-compositoras mais importantes da nova geração de músicos portugueses. Estreou-se em 2011 com ‘The Cherry on My Cake’. Seguem-se ‘There’s A Flower In My Bedroom’ (2013), com convidados como Jamie Cullum, António Zambujo e Mário Laginha, ‘Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa’ (2014), destinado ao público infantil, e ‘Luísa’ (2016), gravado em Los Angeles. ‘Rosa’, o quinto álbum de originais, chegou em 2018.

"A sua faceta de compositora vai-se destacando ao longo dos anos, chegando a compor para artistas como Ana Moura, António Zambujo, Gisela João, Sara Correia, Mayra Andrade, entre muitos outros. Em 2017, assina ‘Amar Pelos Dois’, que entrega ao irmão, Salvador Sobral, para interpretar. A parceria fraterna revela-se um estrondoso sucesso: Portugal conquista a sua primeira vitória de sempre na Eurovisão", pode ler-se na sua biografia.

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Maria inclinava a cabeça com imponência, cumprimentava, sorria. Os convidados aglomeravam‐se ao seu redor, lutavam para que lhes prestasse atenção. A diva entrava em cena.

O homem que se encontrava ao seu lado tirou uma taça de champanhe da bandeja de um empregado e ofereceu‐lha.

– Estou certo de que desejas o apoio de uma taça – disse‐lhe Giovanni Battista Meneghini com carinho.

Sabia melhor do que ninguém que ela disfarçava dessa maneira a sua profunda timidez, uma vez que nunca bebia. Meneghini era seu agente há dez anos e seu marido há oito. Era trinta anos mais velho do que ela, bastante mais baixo, calvo, rechonchudo e muito rico. Empreiteiro e grande amante da ópera, ganhara muito dinheiro com o fabrico de tijolos, mas a sua verdadeira vocação era ser casado com Callas. No entanto, Maria pensava às vezes com temor que a sua condição de mulher estava a perder‐se nessa relação. Nos últimos tempos tinha, cada vez mais, a sensação de que as atenções do seu marido a asfixiavam. Encarregava‐se de tudo o que era necessário para que ela pudesse atuar com a perfeição habitual, mas, quando a soprano estudava os papéis e mergulhava nos sentimentos tempestuosos de felicidade e nas obscuras paixões das personagens protagonistas, às vezes perguntava‐se onde se encontrava a paixão na sua própria vida.

– Estás a ver aquele homem ali ao fundo? – Elsa surgira ao seu lado. Pelos vistos, havia terminado de fazer as honras aos seus convidados. Maria sentiu no braço o toque suave e sedoso da estola de visom que a amiga usava sobre o vestido de noite de renda. – Trata‐se de Aristóteles Onassis, o homem mais rico do mundo. Os amigos chamam‐lhe Ari.

Uma mulher como ela, que acompanhava a imprensa cor‐de‐rosa e que além do mais se movimentava nos meandros da alta sociedade, sabia quem era o convidado de Elsa. Já tinha visto fotografias suas, mas nunca se havia cruzado com ele. Ao vê‐lo ao longe, rodeado de homens e mulheres que o queriam conhecer, constatou que as fotos não lhe faziam justiça. O homem de negócios da Ásia Menor, excecionalmente bem‐sucedido, era mais baixo, mas muito mais atraente do que havia imaginado. Além de que envergava o smoking com a elegância do próprio Cary Grant em pessoa. Possuía algo que o fazia brilhar como uma estrela no meio da escuridão.

– Pelo menos não parece recém‐chegado da Anatólia – deixou escapar.

– E porque é que haveria de parecer? – perguntou Elsa, surpreendida. – É grego. Tal como tu.

Maria abanou a cabeça.

– Li que nasceu na Turquia. Dantes havia lá uma grande colónia grega, mas essa gente não é como os gregos do Peloponeso ou de terra firme. Chamamos‐lhes tourkosporos, e garanto‐te que não se trata de um piropo. Sabes bem que os Otomanos ocuparam a Grécia durante séculos e por isso não somos lá muito amigos dos Turcos.

– Caramba! – A amiga fitou‐a com os olhos muito abertos e um sorriso nos lábios. – Queres dizer que me enganei quando o escolhi para te acompanhar à mesa? Julgava que a grega e o grego mais famosos do mundo se entenderiam às mil maravilhas... Oh, ali está a marquesa de Cadaval! Olha só o maravilhoso toucado que usa.

Era verdade, a marquesa passeava‐se por ali com a reprodução de um campanário veneziano na cabeça.

Maria aceitou de bom grado a mudança de assunto. Era evidente que ninguém se atrevia a desarranjar a ordem nas mesas que Elsa Maxwell havia determinado, nem sequer uma prima donna. Sentar‐se‐ia ao lado do armador multimilionário; a dada altura o jantar acabaria e já não precisaria de ficar no lugar que lhe haviam atribuído. Lamentou‐o sobretudo porque Battista não estaria ao seu lado. Ou, melhor dizendo, ela não estaria com ele. O marido só falava italiano e tinha dificuldade em integrar‐se no seu círculo de amigos internacionais. Não conseguira acompanhar a conversa que a mulher acabava de manter com Elsa.

Giovanni sorriu‐lhe e interrogou‐a com o olhar.

– A Elsa estava a dizer‐me onde devo sentar‐me – explicou‐lhe em italiano. E, dito isto, ergueu a taça. – A um maravilhoso serão.

Meneghini brindou com ela, e Maria permitiu‐se tomar um pequeno gole do requintado champanhe borbulhante. Dirigiu o olhar de forma dissimulada para o homem que Elsa acabava de lhe indicar.

A cadeira situada ao lado dela rangeu quando Aristóteles Onassis se sentou com demasiado vigor.

– Lamento muito, mas a arte não é o meu forte – confessou‐lhe depois de se apresentar. Falava depressa e, ao contrário dos demais convidados de Elsa, que na sua maioria falavam inglês ou francês, fê‐lo num grego sem sotaque. – Os negócios roubam‐me muito tempo e passo a maior parte desse tempo a navegar, mantendo conversas agra‐ dáveis, com boa comida e um excelente charuto. E isso é incompatível com a ópera, visto que nos seus santuários não se pode fumar – disse e dirigiu‐lhe um sorriso radioso, como se acabasse de lhe dedicar um grande elogio.

– O senhor não fala como um verdadeiro tourkosporos – respondeu‐lhe ela no mesmo idioma.

A língua materna de Maria era o inglês; só aprendera grego quando se mudara para Atenas em criança, mas dominava‐o na perfeição e conseguia replicar a Onassis sem problemas, e também era capaz de praguejar como uma peixeira do Pireu se fosse preciso. O palavrão para se referir aos Gregos da Ásia Menor que fugiram para a Grécia em massa depois dos massacres dos Turcos no início dos anos vinte incluía‐ ‐se na categoria de fala menos distinta. Não havia contado a Elsa que o termo depreciativo significava qualquer coisa como «descendente do esperma de um turco» e que podia ser interpretado com toda a clareza como uma ofensa. Ou como a resposta ao comentário do seu interlocutor sobre a ópera, à qual evitava ir por motivos do mais profano que havia. Grandessíssimo ignorante.

Como era óbvio, Onassis conhecia a expressão. Olhou‐a fixamente, mas ela não foi capaz de interpretar o seu olhar. A luz do lustre refletia‐se nos seus olhos brilhantes.

– Sim, nasci em Esmirna, mas também é verdade que muitos gregos célebres nasceram na Ásia Menor: Aquiles, Homero, Heródoto...

Era evidente que, embora a sua formação escolar fosse bastante mais modesta, Maria conhecia os nomes que o seu acompanhante acabava de mencionar. Abandonara a escola aos treze anos; as aulas de canto em Atenas haviam sido sempre prioritárias. Estudara sobretudo os papéis femininos mais importantes para o registo da sua voz, e as aulas de História tinham‐se limitado à história da ópera e a noções básicas sobre a Grécia. Por conseguinte, desde jovem que só havia ampliado a sua cultura geral lendo coisas que lhe pareciam necessárias e dignas de atenção. Os conhecimentos de Onassis sobre a cultura clássica não a impressionaram, mas sim a paixão com que defendia o seu local de nascimento.

– Não o pretendia ofender – interrompeu‐o. – Surpreende‐me que seja tão autêntico. Um grego de verdade.

– Pois claro! – exclamou Onassis, soltando uma gargalhada tão sonora que os convivas mais próximos viraram a cabeça por um instante.

Livro: "Maria Callas – A Voz da Paixão"

Autor: Michelle Marly

Editora: Planeta

Data de Lançamento: 12 de setembro de 2023

Preço: € 16,50

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Maria captou o olhar inquiridor do marido, que estava sentado à sua frente, ao lado de Tina Onassis, a mulher de Ari. Saltava à vista que Meneghini se esforçava por apanhar excertos da conversa que a cantora mantinha com o armador, embora não tivesse percebido uma única palavra. O barulho de fundo, o tinido dos talheres, o tilintar dos copos e o burburinho dos convidados eram tão fortes que também lhe teria custado acompanhar a conversa se tivessem falado em italiano. Coitado. De certeza que se aborrecia de morte. Dava a impressão de que a sua companheira de mesa renunciara a conversar com ele, uma vez que a jovem Tina, bela como uma boneca, mas algo insolente, inclinava a cabeça loura, coroada por um toucado com longas penas de garça branca de dois metros e meio de comprimento, na direção do homem que se sentava à sua direita.

– Consegue imaginar‐me a comportar‐me como um aristocrata britânico? – prosseguiu de bom humor o milionário grego.

Maria voltou a prestar‐lhe toda a sua atenção.

E ele recompensou‐a com um pequeno desempenho estelar. Virou a cabeça com grande teatralidade, inchou o peito e franziu os lábios. – Será um prazer falar consigo sobre as suas últimas atuações no Covent Garden, madame – disse numa voz um tudo‐nada nasalada e num perfeito inglês da classe alta. – Se bem que, infelizmente, não faço a mínima ideia do que estaremos a falar, visto que me limito a fingir que me interesso por outras coisas além do hipismo. Maria soltou uma sonora gargalhada. Aquele homem era deveras divertido.

– Prefiro que continue a ser grego – pediu‐lhe na sua língua.

– Embora não seja um grande conhecedor das belas‐artes?

– Se me apetecesse conversar com algum desses, teria ficado no Festival de Edimburgo e poderia ter discutido com o diretor do La Scala. No entanto estou aqui, ao seu lado.

– Oh, li qualquer coisa a esse respeito. Estive em Londres há uns dias e li umas parangonas impressionantes sobre «a Callas», e que se haviam sentido tratados com injustiça. A imprensa britânica elevou à categoria de escândalo a sua recusa em atuar. – Onassis abanou a cabeça sorrindo, divertido. – Quando tomei conhecimento dessa afronta aos Britânicos, ainda não sabia que iríamos encontrar‐nos esta noite. – Fez uma pausa e em seguida prosseguiu: – Dou graças por se ter decidido por Veneza.

Ela também. Sobretudo, por causa daquele agradável e divertido companheiro de mesa. Enquanto ela o fez rir contando‐lhe curiosidades sobre o mundo da ópera, ele deixou‐a pensativa ao contar‐lhe a sua história. Onassis falou‐lhe de Esmirna, a sua cidade natal, que foi destruída quase por completo no início dos anos vinte na guerra greco‐ ‐turca. Nos seus relatos, aquela metrópole única caída em desgraça era uma cidade viva onde conviviam cristãos e muçulmanos com as raízes mais diversas. Filho de um empresário de origem grega, teve uma infância privilegiada e frequentou a escola evangélica até que o seu mundo ardeu, de maneira literal. Foi forçado a abandonar o seu local de nasci‐ mento aos dezasseis anos. Depois, com apenas sessenta dólares no bolso, embarcou rumo a Buenos Aires a fim de tentar a sorte na Argentina e fundou os alicerces do seu património negociando com tabaco turco.

– Agora já compreende – disse a sorrir e brincando com o charuto que segurava entre os dedos e que havia acendido depois do segundo prato – porque é que gosto tanto de tabaco: ajudou‐me a começar do nada.

– Dizem que os melhores charutos são os cubanos – replicou Maria. Ele sorriu.

– Tem razão. Nada supera um bom habano como este Montecristo – deu uma passa aprazível antes de prosseguir. – E existe outro pequeno pormenor: o que me ajudou foram os cigarros. Ou, melhor dizendo, contribuí para educar o gosto dos Argentinos. Até então, na América do Sul só conheciam o tabaco americano e o cubano, que não são tão suaves como o da Trácia ou da Macedónia. Por conseguinte, dediquei‐me à sua importação e também a exportar carne de gado bovino para a Europa. Um dia decidi comprar o meu próprio barco. Agora possuo novecentos.

– Espantoso – replicou Maria.

Fitou‐o e deu‐se conta de que sentia um misto de simpatia e de res‐ peito por aquele homem. O que a fascinava e a atraía não era o que ele havia alcançado na vida, mas sim a semelhança dos caminhos que ambos haviam percorrido.

Pensou na infinidade de concertos privados que a mãe a havia obrigado a dar quando não passava de uma criança e, por fim, na sua primeira atuação com público a bordo do barco que a afastou de Nova Iorque e do pai, e que a transportou até à Grécia na companhia da irmã e da mãe. Depois, a música preencheu a sua vida. Quase não tinha amigos porque a mãe a havia impedido de os ter em ambos os lados do Atlântico, e também não tinha passatempos. Na realidade, além do canto, não tinha nada. Sobretudo, porque desde pequena havia compreendido que o único momento em que as pessoas não reparavam no seu físico, não muito gracioso naquela época, era quando cantava. Com a mesma idade com que Aristóteles Onassis fundava em Buenos Aires os alicerces do seu império, ela atuava pela primeira vez na ópera de Atenas, e cinco anos mais tarde brilhava pela primeira vez interpretando Tosca. Esse foi o começo da sua carreira.

– Nós dois começámos do zero e alcançámos o topo – disse, pensando em voz alta –, e tudo graças à nossa força de vontade e ao nosso talento. É provável que se deva às nossas raízes gregas... Somos obstinados.

– Sendo grega, de certeza que ama o mar; nem poderia ser de outra maneira. – A sua voz soou algo mais vital do que quando falara de Esmirna. – Sou um grande admirador de Ulisses e tenho verdadeira paixão por navegar. O que é que acharia de fazer um cruzeiro no meu iate? Gostaria de convidá‐los, a si e ao seu marido.

– Um dia, quem sabe... – murmurou com ar vago.

A ideia de navegar pelo Mediterrâneo no barco dele era maravilhosa. Mas também um sonho longínquo. A sua agenda não lhe permitia gozar umas férias longas; além disso, Meneghini não aguentava muito bem o movimento da ondulação.

Por um momento, Onassis pareceu desconcertado. Maria percebeu‐o pelo brilho dos seus olhos. Pelos vistos, não estava acostumado a que lhe recusassem os convites.

Um silêncio pesado interpôs‐se entre os dois ao mesmo tempo que as conversas prosseguiam ao seu redor. Onassis levou o charuto à boca, deu uma passa e virou a cabeça de modo a que o fumo não lhe atingisse a cara. Ao fundo da sala, a orquestra mudou: a hora da música ambiente havia terminado e os instrumentos de corda desocuparam o palco para dar lugar à orquestra de baile.

Ao cabo de alguns instantes, Onassis voltou a fitá‐la.

– Aceite pelo menos a minha lancha para se deslocar em Veneza, por favor – propôs‐lhe num tom de voz calmo e pausado, e com o bom humor que o havia caracterizado durante o serão. A sua renovada desenvoltura atestava a sua convicção de que no final das contas ninguém podia negar‐lhe o que quer que fosse. – Gostaria de pôr o Riva à sua disposição durante a sua estada.

É claro que Onassis não podia deixar de possuir o Rolls-Royce das lanchas. Maria não pôde evitar esboçar um sorriso. «É uma companhia interessante e agradável», pensou. Sendo assim, porque não haveria de aceitar a sua oferta durante a semana que ia passar em Veneza e que, além disso, de certeza que lhe permitiria passar algum tempo com ele e com a mulher?

– De acordo – disse, assentindo com a cabeça.

– E se tal não for possível nos próximos meses, no ano que vem faremos todos um cruzeiro pelas ilhas gregas – decidiu Onassis, radiante. – A nossa amiga Elsa pode acompanhar‐nos se quiser.

«Dás‐lhe a mão e toma‐te o braço inteiro», pensou Maria. Contudo, não lhe levou a mal, a tenacidade dele divertia‐a. Voltou a assentir para não o desiludir, embora soubesse de cor e salteado que nunca fariam essa viagem juntos.

Passou quase todo o serão ao lado de Aristóteles Onassis, que mais tarde lhe apresentou a sua bela e jovem esposa.

– A Tina não entende uma palavra de grego – contou‐lhe quando ninguém estava a ouvir. – O pai, o armador Livanos, preferiu educá‐la como uma princesa americana. Ela diz sempre que aprendeu a falar em Inglaterra, a pensar em Nova Iorque e a vestir‐se em Paris. A Grécia não lhe interessa muito. Assim é a Tina – disse a sorrir com o orgulho de quem fala de uma propriedade, embora o olhar dele tivesse escurecido logo depois, como se algo o incomodasse.

A festa foi um êxito e durou a noite inteira. Um grupo de emprega‐ dos de mesa atentos e solícitos substituía as velas que se apagavam nos candelabros das mesas, abria garrafas de champanhe sem cessar e vol‐ tava a encher as taças. O número de convivas diminuiu um pouco no final da noite, mas, quando Elsa Maxwell se sentou ao piano e deixou voar os dedos sobre as teclas ao ritmo vertiginoso de um swing, os convidados aglomeraram‐se diante da anfitriã e dos músicos que estavam vestidos com uns fatos brancos reluzentes. Maria e o marido, assim como Onassis e a mulher, também escutaram o famoso solo desde a pista de dança. Elsa tocou canções rápidas e melancólicas dos anos trinta e do tempo da guerra, cuja eclosão viveu enquanto trabalhava como repórter em Hollywood. A dada altura fez um sinal aos músicos para que a acompanhassem com os instrumentos. Em seguida, fez um sinal a Maria para que se aproximasse.

Um solo de trompete, uns acordes de piano e a melodia da canção Stormy Weather encheu a sala. Elsa tocou com maior suavidade, fez um gesto à amiga, e a soprano mais famosa do mundo entoou a canção sobre um amor frustrado. Interpretou‐a com o dramatismo típico nela, porém uma oitava mais grave do que se fosse uma ária. De repente, fez‐se tamanho silêncio ao seu redor que o mínimo tilintar dos copos soava como os sinos de São Marcos a tocar o Ângelus.

Ela aproximou‐se do estrado onde se encontrava o grupo e entregou‐se ao jazz com entusiasmo. Não se importava de atuar de uma maneira assim tão espontânea, abarcava todo o público com o olhar e não havia críticos musicais atentos à espera apenas de que não fosse capaz de sustentar as notas mais agudas. Não tinha medo de que lhe falhasse a voz, visto que cantava no mesmo registo grave que Lena Horne, a intérprete da canção.

A sensação de cantar pelo simples prazer musical era maravilhosa. Passeou o olhar pelo seu público exclusivo, tão entusiasmado como os fãs da ópera nos grandes teatros. Deteve os olhos por um momento em Onassis, que rodeava a mulher com o braço e parecia enfeitiçado pelo canto de Maria.

Enquanto cantava o verso «There’s no sun up in the sky», o céu de Veneza cobriu‐se de estrias em tons pastel do outro lado das grandes janelas, e uns raios cor de alperce e violeta anunciaram o nascer do sol.