Pela primeira vez no seu percurso — seis gravações de estúdio, três registos ao vivo e uma coleção de êxitos — Mariza assina a letra de uma das suas canções (“Oração”). Um poema que foi entre papéis e acabou musicado por Tiago Machado, sem saber ser da sua autoria, e ficou.

O compositor, que entre outros temas assinou "Ó gente da Minha Terra”, é um dos “velhos cúmplices” neste disco. Que conta ainda com Jorge Fernando (“Trigueirinha” e “Quebranto”), Hélder Moutinho (“Fado Refúgio”), entre os repetentes; Matias Damásio (“Quem me dera”), Carolina Deslandes (“Por tanto te amar”) e Héber Marques (“Amor Perfeito”), dos HMB, entre os “novos amigos”; e Maria da Fé (“Fado Errado) e Jaques Morelenbaum (“Semente viva”), entre os “convidados de luxo”.

A intérprete, que prefere não ser tratada por fadista, sobe hoje ao palco do Coliseu do Porto, no segundo de quatro concertos de apresentação do mais recente trabalho (1 e 2 de junho em Lisboa) antes de rumar a Espanha e aos EUA.

Ao SAPO24, Mariza falou sobre o novo disco, da escrita, das raízes africanas, do poder que os temas têm para quem os ouve, mas também de sonhos. De lado fica a sua vida privada, essa não é para andar nos jornais. “Para andar nos jornais são os prémios, os discos, os palcos que piso. Isso é que é importante, o resto são fofocas”.

O que as pessoas deviam querer saber da minha vida são as vitórias que trago para Portugal, como levo [lá para fora] a cultura deste país ou como canto a língua da minha gente

Ao sétimo álbum, um homónimo. Porquê agora?

Não foi pensado. Agora é que vai ser, no sétimo [álbum]. O disco começou por ter muitos nomes. O primeiro de todos, quando estava a fazer a recolha de temas e poemas, foi "Amor". Resultou de uma avaliação que andei a fazer, de como é que era a minha vida, ou não era, e a vida dos que me rodeiam. É incrível porque não conseguimos fazer nada sem amor. [O amor] está presente em todos os atos da nossa vida. Às vezes mais profundo, outras vezes menos. Mas está sempre. Conforme fui fazendo a recolha disse: “Epa, as pessoas vão achar que eu penso que tenho a verdade absoluta. Quem sou eu para falar de amor, ainda é muito cedo para falar de sentimentos tão profundos, se calhar ninguém vai entender o porquê”. Então, como danço muito em palco, surgiu a ideia de ser "Fado Bailado". Tudo me remetia para esse ambiente. Há muitas músicas ali [no álbum] que têm balanço. De repente, quando o disco estava feito, percebi que não era nada disso. Nenhum daqueles nomes se enquadrava. Sendo assim, como é meu e é a minha verdade, foi só com o meu nome. Na realidade ele não se chama Mariza, é Mariza.

Essa primeira hipótese, de o título ser “Amor", estaria muito na linha da temática que o disco aborda.

É um álbum muito romântico. No final [quando pronto] e agora, quando o tive fisicamente na mão e o ouvi em casa, disse para mim: ”Caramba, isto tem aqui com cada balada"...

De amor e também de desamor.

Sim. Ninguém pode falar de amor sem falar do reverso da moeda. Era impensável só se falar de amor. Está presente nas nossas vidas têm fases boas e menos boas, fases maravilhosas e românticas. Como tenho só um coração, o amor é só um. Mas existem várias fórmulas para amar. Neste disco isso está muito presente. Também porque acho que há um crescimento... No meu primeiro disco era impensável cantar tanto sobre amor, acho que nem sequer tinha bagagem para isso. Chegando a este sétimo álbum já cresci, vou a caminho dos 45…

Já experienciou as várias formas de amor…

O doloroso, o tenebroso, o desconcertante, o maravilhoso... depois tenho pessoas que me rodeiam, que vivem intensamente e que me mostram a vida de uma forma intensa. Fico surpreendida por perceber como é que elas vivem. E sem querer acabam por me influenciar... os meus sentimentos, a forma de olhar a vida e de estar. Tudo isso aparece aqui [neste álbum].

E este álbum conta, pela primeira vez, com poemas seus.

Só tem um, graças a Deus. Só tem um! [risos]

No meu primeiro disco era impensável cantar tanto sobre amor, acho que nem sequer tinha bagagem para isso. Chegando a este sétimo álbum já cresci

Porquê essa reação?

Eu gosto muito de ler poesia… Tenho amigos que se sentassem aqui, começavam a declamar Fernando Pessoa, e os seus heterónimos, de trás para a frente e de frente para trás. Assim de uma maneira inacreditável. Mas eu conheço a poesia, leio e há poemas que me tocam profundamente e já os cantei, mas não sou aquela conhecedora nata que chega aqui, fala e diz. Mas tenho um respeito gigante por tudo aquilo que leio e que me é mostrado. Então, cada vez que escrevia e lia [os meus poemas], pensava 'isto até faz sentido'. Mas não conseguia sentir que estivesse à altura de ser mostrado e de as pessoas poderem ler. 

Essa é uma questão já abordada em entrevistas anteriores. Do momento em que, finalmente, ouviríamos poemas seus...

Não há momento. A "Oração" aparece por um equivoco muito grande...

Há uma história por trás do tema, não há?

Gosto de escrevinhar os poemas [dos outros]… serve muito para os perceber melhor, vou lendo e vou interiorizando. Escrevo à mão e até chego a meter umas notas de lado. Esses papéis foram parar às mãos do Tiago Machado, e no meio lá ia a "Oração". Passou imenso tempo e já pensava: 'Mas o Tiago nunca demorou tanto tempo, será que não gostou de nenhum poema que lhe enviei?'. Telefono-lhe e pergunto: “Então, Tiago?”. Ele responde-me que já tinha feito e já me o tinha enviado. “Não enviaste nada", disse-lhe. “Como? Até estou aqui ao pé do piano, vou-te mostrar”, diz, e começa a cantar as palavras...  Só lhe digo: "Tiago, isso não era para musicar”. "Não? Mas isso é muito bonito... espera aí, não me digas, foste tu que escreveste”... E ficou. Contra tudo e contra todos. Acho que nunca deveria ter ficado, mas ficou...

Mas esteve para se chamar “Só”, verdade?

Sim, porque no princípio diz “triste e só". Depois, no refrão, diz que busco a perdida oração que a minha mãe me ensinou. Ficou muito mais bonito, até parece uma canção de embalar. Como se fosse mesmo uma oração, para mim e para o meu coração.

E em que momentos é que escreve?

Nos mais tristes da vida. Naqueles momentos mais pesarosos é quando me dá para escrever.

"Em poema porque a prosa é mais dura", dizia numa entrevista recente…

A prosa é muito dura. Eu sou muito exigente, comigo e com os outros. Se escrevesse prosa, acho que as pessoas iriam assustar-se. Sou muito dura quando tenho de o ser.

Se escreve nos momentos mais tristes, espero então que nesta fase a caneta esteja repousada.

Muito. O caderno e a caneta não deixam de estar ao lado da mesinha de cabeceira, mas para já não estão a ser utilizados. 

Podemos, no futuro, ler estes poemas? Quem sabe, até, num contexto não musical?

A coragem começa a ser maior. No outro dia, mostrei a uns amigos e até ao meu próprio manager. “Isto era bonito para fazer um pequeno livro de bolso…", disseram-me. E a princípio até achei a ideia muito gira. Depois pensei: “não sei se me apetece partilhar tanto”. Pode acontecer, não digo que não. Mas vai ser muito doloroso, porque é muito íntimo e pessoal.

Em palco, canto as palavras das outras pessoas, enquanto veículo das minhas emoções. Quando chega a vez de cantar palavras minhas é uma nudez completa

E o porquê de "Oração" não ter sido single?

Não. Nunca. Never. Não, não, não. Nem eu deixaria. Parece um bocadinho aproveitamento. “Epa, ela escreve... vamos lá...". Tem temas tão lindos, este disco. Muitos poderiam ter sido singles e não foram. Aconteceu ser o tema do Matias Damásio, que eu adoro. Adoro a forma como ele escreve. Uma forma mais livre em que parece que as palavras não têm aquele peso que têm quando cantamos Fernando Pessoa ou alguém que escreve em português de Portugal — que eu, aliás, adoro. Ele aqui é livre, fala dos outdoors da cidade ["Te procuro nos outdoors da cidade, nas luzes dos faróis"]. Eu nunca me imaginei a cantá-los ou pensar que o amor é tão forte como um embondeiro ["O meu amor é puro é tão grande e resistente como embondeiro / Por ti eu vou onde nunca iria"]. Por acaso, nos terrenos do meu avô temos embondeiros. Mas nunca me passou pela cabeça uma coisa dessas. Portanto acho muito interessante o single ser uma coisa mais solta, apesar de também falar de amor. Dá para as pessoas imaginarem a história de amor que lhes apetecer.

Como é que vai ser ao vivo?

Já experimentei. É doloroso. Fecha-se os olhos e ele sai. Mas se tiver de olhar para as pessoas, há uma vergonha gigante. Em palco, canto as palavras das outras pessoas, enquanto veículo das minhas emoções. Quando chega a vez de cantar palavras minhas é uma nudez completa.

Fica desarmada?

Não há nenhum sítio para me esconder.

Podemos ouvir, um dia, outro fadista ou músico a interpretar os seus poemas? Ou o que escreve é tão pessoal que o sentimento só passa na sua voz?

Como nunca me imaginei nesse lado de poder escrever para alguém... nem para mim pensei. Nunca coloquei essa questão e nem faço ideia se conseguiria fazê-lo. Quando escrevo... o ato de escrever serve muito como uma catarse. Colocar em palavras escritas o que muitas vezes não consigo dizer em palavras reais. Então não sei se seria capaz de o fazer. É um desafio. Talvez pensar em alguém... não sei, não sei. Nunca pensei.

créditos: João Portugal

Neste tema como em outros, há várias referências à sua mãe. Mãe que também podemos ouvir em "Verde Limão”, em bitonga. O que é que essas frases significam, porquê inclui-las e como foi ter a sua mãe em estúdio?

A minha mãe é a mulher da minha vida. Não existe ninguém, nunca ou algum dia... O lado da família da minha mãe é africano, são muito tradicionais e muito unidos. A minha mãe sempre me passou essas raízes... é a mulher que me ensinou tudo o que eu sou e o que sei. Lembro-me que com cinco anos já sabia ler, e quem me ensinou foi a minha mãe. Lia para mim Pepetela ou Hans Christian Andersen... Ouvíamos música juntas... Eu era muito a companhia da minha mãe e ela a minha. Ela sempre puxou muito por mim. Entretanto a vida passa e eu tornei-me mãe e começo a ver as coisas também por uma outra perspetiva.

A minha mãe deu-me uma grande lição de vida: o amor dela pela família é tão grande que se anulou completamente para me ajudar a tomar conta do meu filho. Vive vinte e quatro horas focada no meu filho para eu poder trabalhar e ter uma vida. Ela é a guardiã da casa. O anjo… tem umas asas gigantes e toma conta de tudo. Enquanto ela aqui estiver fisicamente, eu sei que tudo é possível. Então não existe para mim figura mais importante na minha vida do que a minha mãe. Acho que nunca lhe sei dizer isso por palavras, às vezes sou bruta e seca. Ela é muito carinhosa, mas eu não sei lidar com os meus sentimentos. Então imortalizei a minha mãe neste disco, cantando-a [na "Oração"], mas também colocando-a a falar a língua da nossa tema. Diz: "As mulheres têm a sabedoria da terra, a força dos ventos, a leveza das águas e a energia do fogo". E isto tudo representa a minha mãe. 

Como foi o convite?

Ai, isso foi muito difícil. Caramba. Primeiro que conseguisse convencê-la. Uiii. Depois telefonou para a minha avó, em Moçambique, que é quem fala bem bitonga. "A tua neta quer que eu faça não sei o quê”. Ainda falei com a minha tia, a minha mãe tem dezasseis irmãos, que é muito próxima e disse: "Oh tia, convença lá a mãe". E assim convenci-a e levei-a para o estúdio. Ela lá olhava, desconfiada de tudo. Mas ficou. Agora espero levá-lo em disco e que ela goste.

Ainda não ouviu?

De ouvir assim bem-bem, não. Só no estúdio. Mas acho que ela também não está muito preocupada, já está feito.

Foi a primeira vez que a sua mãe entrou consigo num estúdio?

Foi, foi. Nunca tinha ido. Nem assistir a gravações, nada. 

Voltando ao "Quem Me Dera", já que falávamos de estar em estúdio, como foi trabalhar e partilhar toda esta experiência com o Matias Damásio?

O Matias é um músico muito generoso, como músico e como pessoa. Nós trabalhamos com o mesmo manager e quando lhe fizemos o convite ouvi-o dizer: "Isso não é possível, quem é que quer uma música minha? Isso não é possível". Eu pensava: “Bolas, porque é que ele diz uma coisa destas". Mais tarde, quando a música já estava feita, fizemos um jantar. "No primeiro telefonema, que eu ouvi, tu dizias 'não pode ser, não pode ser", contei-lhe. "Porque sempre fui teu fã e sempre achei que seria impossível um dia chegar ao pé de ti", respondeu-me. Mas eu também era fã dele e também nunca pensei que um dia nos pudéssemos cruzar.

Essa admiração mútua aproximou-vos?

Perguntei-lhe se quando escreveu este tema estava a pensar em alguém especial ou se era para alguém. Para também entender o que ia cantar. E ele disse-me: “Que engraçado, é que já escrevi esta música há muito tempo e ela estava guardada. Sabia que podia ser especial, mas não quando e para quem”. Então quando lhe telefonei, lembrou-se logo dela: "é esta". O tema é muito bonito e fico muito feliz de o poder cantar desta forma, porque eu própria estou fascinada com ele.

E com um videoclipe também belíssimo...

Que deu muitooo trabalho. O vídeo é passado na água e o vestido foi construído no momento. Foram muitas horas em pé, deu imenso trabalho, mas adorei. Não fazia a ideia de como aquilo ia resultar, um quarto e água. De repente quando vejo as imagens 'uauuu'. Gostei imenso.

Mais do que nos trabalhos anteriores, neste sinto que a lusofonia está muito presente. A africanidade, mas também os ritmos brasileiros. Foi propositado?

Não foi. Com a idade, tenho-me aproximado mais das minhas raízes africanas. Vou todos os anos a Moçambique com o meu filho. Para estar com a minha avó, com a família, passo no mínimo quinze dias. Vou visitar terrenos, vou à terra onde a minha mãe nasceu, vou ver familiares que não me conhecem porque vim para Portugal muito cedo. Como é que posso explicar... porque é complicado e não quero que ninguém pense que quero renegar Portugal. Há uma vontade cada vez maior de sentir o outro lado das raízes para me sentir completa. Por exemplo, o meu grande sonho... sei que nunca vai acontecer e por isso é um sonho e é bom sonhar... é poder comprar um pequenino-pequenino terreno em Moçambique e fazer uma casinha e ficar lá junto da família. Incrivelmente, até o meu filho quando vai para África é um miúdo diferente. Sinto que pertenço ali como pertenço aqui. Vou sentir sempre saudades de Portugal, da minha Mouraria, de descer até ao rio e de tomar um café. Lá não há isso, há outras coisas.

Tenho quarenta primos direitos e ninguém olha para mim como "ela é a Mariza". Quando estou lá estou de chinelos, a ajudar assar frangos e ajudar a lavar a louça. A família é isso....

É um conforto?

É. Sei que ali me querem genuinamente. Independentemente do que quer que seja.

Sinto-me em casa quando o meu filho olha para mim com o maior amor do mundo e me diz: "Oh mãe, tu és tão linda"

"A Mariza"?

Isso é a última coisa que quero que eles vejam. A minha avó, por exemplo, quando estou com ela, a maior parte das vezes fala em bitonga e eu não percebo nada... e eu fico a olhar para ela... Mas quando foi ver um concerto, acabou e ela olhava para mim de forma diferente e não sabia falar comigo. Só no dia seguinte é que voltou a saber falar com a neta. 

Quando é que isso foi?

Isso foi há dois anos. Por isso o que eu quero é continuar a ser a neta dela. Não quem ela vê no palco ou na televisão, porque vê-me de outra maneira. E é isso que não gosto. 

Talvez até já o tenha respondido em parte, mas da Mouraria para o Mundo, onde é que se sente em casa?

Sinto-me em casa quando o meu filho olha para mim com o maior amor do mundo e me diz: "Oh mãe, tu és tão linda". Sinto-me em casa quando chego de uma grande digressão e a minha mãe teve a preocupação de fazer o meu prato favorito. Sinto-me em casa quando estou e Moçambique e ando descalça a correr atrás do meu filho. Sinto-me em casa quando a minha mãe olha para mim e diz: "Tu és a luz dos meus olhos, tens de ter força".

Antes referia o prazer de andar pelas ruas da Mouraria ou tomar um café junto ao rio, ainda o consegue fazer?

Agora é mais difícil... mas as pessoas em Portugal são muito simpáticas e generosas. Eu compreendo que às vezes é difícil quebrar aquela linha do: “Ai, gostava tanto de tirar uma fotografia consigo". Porque eu tenho assim, de vez em quando, um ar de má. Não sou nada, mas as pessoas dizem. E eu sei que é difícil, mas ainda consigo fazê-lo. Meto assim aquela cara trinta e três, uns óculos de sol e desbravo caminho. Mas rápido, não posso andar devagarinho a ver umas montras. Ainda dá.

Voltando ao disco. Achei engraçado o termo utilizado para nomear antigos colaboradores: "velhos cúmplices". São eles Mário Pacheco, Tiago Machado ou Jorge Fernando. Mas há aqui novos nomes da música portuguesa, como a Carolina Deslandes. Uma jovem mulher com uma personalidade forte e carismática e uma mãe babada. Apesar das disparidades musicais, há aqui semelhanças entre vocês. Como foi trabalhar com a Carolina?

Já há muito tempo que sigo a Carolina, primeiro como mãe. Ela é uma super-mãe, sempre muito presente. Fascina-me o facto de num curto espaço de tempo ter tido dois filhos, lembro-me de pensar: “Esta mulher é completamente louca e maravilhosa. Se pudesse tinha feito igual”. Depois como cantautora; a forma como ela escreve é muito genuína. Entrei em contacto com a Carolina e disse-lhe: "Nós nunca falámos, mas eu gostava... não sei se vais aceitar... mas gostava de te fazer um convite. Escreveres um tema para mim". Disse-me logo que não sabia se conseguia. Ao que lhe respondi que não sabia porquê.

Há aqui semelhanças com a resposta do Matias...

O Matias era mais tipo ‘não pode ser'. Ele chama-me "A Rainha" e escrever para mim era impensável. A Carolina foi mais 'não sei se consigo escrever para alguém', porque na altura não tinha ainda aberto essa porta. A colaboração surgiu com este tema "Por Tanto te Amar", só não vou poder contar a história, que ela revelou-me, porque é muito pessoal. Eu pergunto sempre o que é que está por trás das palavras para eu saber o que é que vou cantar — e a história é muito bonita. O tema tem uma inocência que é muito a Carolina, ela tem uma inocência-segura.

Outro tema, "Trigueirinha", tem no disco duas versões, uma delas extra, com vários convidados (Carolina Deslandes, Jorge Palma, Mafalda Veiga, Marisa Liz, Ricardo Ribeiro e Tim) e cujas receitas reverterão a favor da Casa do Artista. A que se deve esta iniciativa e porquê estes convidados? 

São pessoas que admiro muito. Como artistas, como cantores, pelo percurso que têm feito, pelas pessoas em si — porque os conheço a todos. O convite surge na sequência de um desejo de poder fazer algo pela Casa do Artista, que é das poucas instituições em Portugal, que eu conheça porque posso estar errada, que abraça em todos os quadrantes as pessoas que estão ligadas ao espetáculo. E isso para mim é extremamente importante. Nós temos todos uma memória muito curta, eu própria tenho uma memória muito curta, e ao nível do espetáculo esquecemo-nos muito dos cabeleireiros, do senhor que sobe a escada e põe as luzes e leva o som e carrega as caixas. Esquecemo-nos todos muito rápido, apaga a luz e já foi. A Casa do Artista tem as portas abertas para todas estas pessoas, mesmo passando por muitas dificuldades para poder ajudar. Eu em tudo o que posso, ajudo. 

Quando me comparam a Amália, sinto que é desleal para com a sua memória e por todo o respeito que lhe tenho

Antes ia cometendo o erro em falar de carreira, sei que não gosta e prefere que se diga 'percurso'. Também não gosta que a identifiquem como ‘fadista’ e rejeita as comparações a Amália. O que mais não gosta?

Não gosto de tanta coisa, mas são mínimas ao pé das que gosto. Não gosto que me deem palmadinhas nas cara. Há pessoas que veem e "ai que eu gosto tanto e si" e 'tau tau tau'. Não me façam isso. Agora a falar a sério: quando as pessoas falam e surgem as comparações à Amália, não é que eu não goste porque quando estão a fazer essa comparação estão a comparar ao que de melhor existe no fado, o que acontece é que eu sou uma fã gigante da Amália e tenho um respeito gigante por todo o seu legado e por toda a sua memória. Quando me comparam, sinto que é desleal para com a sua memória e por todo o respeito que lhe tenho. Porque eu ainda tenho muito que andar, graças a Deus. Amália fez a história do Fado, até podemos dizer que há um antes e depois dela.

Mas certamente há um antes da Mariza e um depois…

[Risos]. Não me diga uma coisa dessas.

É inegável o seu contributo para a importância que o Fado tem nos dias de hoje.

Hoje começo a acreditar, a olhar um bocadinho para trás e... se calhar até tenho. Mas deixem lá passar mais um bocadinho para o perceber.

créditos: João Portugal

Outra coisa que sei que também não gosta é de ver a sua vida escrutinada...

... odeio. Mas acho que ninguém gosta.

O palco é o único sítio onde se expõe na totalidade?

Tirando em casa e com os meus amigos, sim. Tenho uma vida normalíssima, igual a tantos milhares de portugueses que andam na rua. É igual. Eles também se divorciam, têm filhos, acidentes de automóvel, vão tomar café ou vão cinema. Igual. Têm problemas e alegrias; virtudes e defeitos. O que acontece é que eu tenho uma visibilidade maior, então existe uma grande curiosidade. Mas é a minha vida é igual à vida das outras pessoas, eu não sou uma excepção. O que as pessoas deviam querer saber da minha vida são as vitórias que trago para Portugal, como levo [lá para fora] a cultura deste país ou como canto a língua da minha gente. Isso é que é importante, não é importante se eu escorreguei, se me separei... obviamente que é importante para mim. São factos da minha vida pessoal, não são para andar nos jornais. Para andar nos jornais são os prémios, os discos, os palcos que piso. Isso é que é importante, o resto são fofocas.

Que conselho daria à Mariza de “Fado em Mim”. Ou, recuemos, à Mariza que cantou pela primeira vez “Os Putos”, de Carlos do Carmo, na taberna dos seus pais?

Hum. Diria: "Não te esqueças nunca de que tens de ser feliz". 

[Na Eurovisão] Portugal portou-se à altura de qualquer país. Mas há quem tenha sempre de dizer mal

Já subiu aos maiores e mais importantes palcos por esse mundo fora, como foi subir ao da Eurovisão, para cerca de 200 milhões de espetadores?

Eu tremia que nem varas verdes. Fiquei muito nervosa. É muito pouco tempo para se cantar e para se mostrar o que de bom se faz neste país. É uma responsabilidade gigante. Mas havia ainda outra coisa em cima das costas, é que durante anos o sonho foi que o Festival da Eurovisão fosse feito em Portugal. 

Costuma assistir?

Desde pequena. O país parava para ver tanto o Festival RTP da Canção como a Eurovisão. Lembro-me de muitas músicas e muitos artistas portugueses que por lá passaram. Foi, por isso, um sonho tornado realidade ver o festival ser feito em Portugal com uma super-produção como esta. Maravilhosa. Nunca vi uma produção destas feita em Portugal, nunca vi as pessoas tão concentradas em querer fazer bem. Aquele era um palco como eu nunca vi e já vi muitas coisas e já estive em vários programas de televisão. Portugal portou-se à altura de qualquer país. Mas há quem tenha sempre de dizer mal. 

E por falar em programas de televisão, ir ao da Ellen ainda é um sonho?

Acho que na vida tudo é possível e não digo mais nada. 

O que podemos esperar dos concertos de apresentação nos Coliseus, do Porto e Lisboa?

Serão muito baseados neste último disco. Muito. Acho que também gosto, de vez em quando, abanar uma estrutura ou outra. Faz parte da minha forma de estar. Assim, acho super engraçado as pessoas chegarem e verem um concerto baseado num disco que pouco ou nada conhecem, que é muito o que vai acontecer. Mas nos últimos tempos tenho recebido mensagens geniais sobre os meus temas, mas mais tristes, outras mais alegres. Aliás, uma das coisas que perguntei ao Matias, numa das vezes em que estivemos juntos, foi se ele tinha noção de como é que a sua música podia influenciar as pessoas. E ele respondeu-me de uma forma muito engraçada, disse-me que nós não temos noção: muitas vezes as nossas músicas ficam bandas sonoras das vidas das pessoas e não temos noção de como as atingimos. Tenho recebido muitas mensagens que me têm mostrado como muitos dos meus temas fazem parte das vidas das pessoas, nos momentos mais diversos. Pessoas que estão a fazer quimioterapia e escolhem "Melhor de Mim" para as acompanhar, pessoas que se vão casar e escolhem o "Chuva", pessoas que se vão assumir e escolhem "Há Palavras que nos Beijam". É inacreditável o número de mensagens... agora não sei que me limitaram o acesso.

Nós nascemos para ser felizes e para dar felicidade aos outros. Se a minha música traz um bocadinho disso, eu já ganhei metade da vida

Respondia?

Respondia! Ficava até às cinco-seis da manhã, era uma loucura. E é por isso que há fados que não podem deixar de ser cantados e que vão estar nos Coliseus.

A história mais incrível que acompanhei foi a de uma menina que recebeu um coração novo, a Maria Eduarda. Conhecia-a através da Terra dos Sonhos, porque o maior sonho dela era conhecer-me. Ela não queria fazer tratamentos, então sempre que podia ia falar com ela. Era muito arisca, fazia-me lembrar quando eu tinha a idade dela. O tema que ela mais gostava era o "Rosa Branca" e prometi-lhe que se portasse bem e fizesse os tratamentos todos que a levava ao concerto do Coliseu. Estava numa digressão nos EUA e há um dia que toca o telefone e vejo que era o nome da Maria Eduarda. Estranhei porque normalmente era eu que lhe telefonava. "Sou eu, lembrei-me de ti. Era para te mandar um beijinho”, disse-me. Quando cheguei falei com a médica dela para saber como é que a podíamos levar ao concerto. "A Maria Eduarda não pode ir", disse-me a médica, justificando isso com retrocessos na sua saúde. Então peguei nos músicos e disse: "Vamos nós fazer um concerto para o hospital". E fomos, horas antes do Coliseu. Tudo a assistir [no hospital] às músicas que ela mais gostava. Depois... no Natal... a Maria Eduarda morreu. E foi o meu maior baque. Agora tento resguardar-me. Porque aproximo-me das pessoas, adoro-as, fico ali... e vivo intensamente o problema delas. Depois... ainda tenho o número da Maria Eduarda. 

...

E há mães que falam comigo diretamente. Nós somos todos humanos... Não me falem das fofocas, que a vida é muito mais real que tudo isso. A música que faço tem muitas vertentes, porque é que não se fala sobre isso? Nós nascemos para ser felizes e para dar felicidade aos outros. Se a minha música traz um bocadinho disso, eu já ganhei metade da vida.

É melhor do que os prémios?

Ah, para que é que eu quero os prémios? Já disse, não me dêem mais.... Obviamente que há alguns que adoraria ter porque fazem parte do percurso de ser cantora, artista, músico... Um Grammy. As nomeações são maravilhosas, mas não quero do roxo, quero do preto! Não é o latino, quero à séria. Se vier o latino também já fico contente. Mas quero o preto que eu sou africana. Não se esqueçam disso. 

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