Cortar a água

Claro que eu quis saber o que se tinha passado. O que afinal se tinha passado antes de, no pátio, Edi ter levado uma sova. Ela estava deitada na relva, com os cabelos descolorados e sujos. A minha mãe estava ajoelhada junto dela, a tia Lena berrava com ambas. Gesticulavam as três, como se andassem a espantar espíritos. Quando me viram, desataram a chorar, uma a seguir à outra, como uma espécie de matrioscas: das lágrimas de uma resultavam as lágrimas de outra e assim por diante. A minha mãe foi logo a primeira, deu o mote, a seguir as outras duas afinaram o tom e juntaram-se-lhe; tal era o rol de lamúrias que não consegui sequer distinguir o que cada uma dizia.

Bem, para mim é clara a razão pela qual os olhos da minha mãe se humedeceram quando ali me viu, tendo em conta o silêncio que desde há algum tempo mantínhamos. As outras duas, porém, pareciam ter uma disputa qualquer por resolver. Mãe e filha, uma deitada no chão, como se fosse a sombra que a outra projetasse. Inversamente, uma parecia erguer-se e crescer a partir dos pés da outra, qual arbusto com ramos quebrados. A tia Lena trazia vestido um conjunto de calça e casaco verde que, por lhe ficar largo, parecia agitar-se e baloiçar, tanto que quase não a reconhecia. Usei os babygros da filha dela, foi na mesa da cozinha dela que marrei para testes e exames, era à porta dela que batia a meio da noite, quando já não aguentava a situação em casa, mas tudo isso foi há muito tempo e, por instantes, não consegui ter a certeza de que era efetivamente Lena que, aos berros, se dirigia à filha, ali deitada, enrolada sobre si mesma:

– Porque estás aqui fora a vadiar? Que andas tu a fazer?

Edi tinha um aspeto maltratado, mas não parecia alcoolizada; no entanto afiançou, muito séria, ter visto uma girafa no pátio entre os edifícios pré-fabricados. Esta teria andado por ali a passear, levara o focinho à erva para mordiscá-la e pusera-se a espreitar pelas janelas dos apartamentos próximos. Está bem que isto é o Leste, mas tanto quanto sei não temos cá girafas: bichos desses é coisa que aqui não há.

Edi não aparecia por ali há bastante tempo, percebia-se pelo seu cabelo, mas também pelas roupas, sobretudo por estas. Em todo o caso, eu dava-me pouco com ela, mesmo quando Edi ainda vivia com os pais; e isso apesar de, nessa altura, ser costume eu fazer os trabalhos de casa na mesa da cozinha da casa deles. Para Edi eu era demasiado miúda, além de que, quando eu lá estava, ela nunca entrava na cozinha – nem sequer para ir buscar uma fatia de pão para comer ou até um mero chá. A porta do seu quarto tinha um painel de vidro fosco, de aspeto leitoso, graças ao qual conseguia aperceber- -me de como ela acendia e apagava a luz, sem motivo, durante o dia ou mesmo à noitinha, liga, desliga, liga, desliga. A dada altura, vi que o vidro estava partido e já só havia uns quantos estilhaços que se projetavam do caixilho de madeira, ninguém disse nada a esse respeito, eu também não perguntei, e o vidro não tardou a ser substituído, como se nada tivesse ocorrido. Nessa altura, Edi dava muito pouco nas vistas: cabelos pretos, calças de ganga pretas, T-shirt preta. Cruzasse-me eu hoje com ela na rua e prosseguiria sem sequer a reconhecer, tais as cores garridas que entretanto adotou e com que agora se veste. Reconheci-a apenas por estar junto da sua mãe, que berrava com ela. E por ser a minha mãe quem tentava apaziguar a contenda. Novas rodadas de acusações iam sendo servidas, uma e outra vez, e a tia Lena também se pôs a ralhar com a minha mãe:

– Porque mo escondes? Não sabes que…?

Ao que a minha mãe respondeu:

– Se e quando eu morrer, é coisa que não diz respeito a mais ninguém.

Que altura mais estúpida para ali aparecer, a meio daquela conversa. Ainda ela não terminara a frase quando os seus olhos se fixaram em mim; então, o seu corpo retesou-se subitamente, como se o tempo tivesse parado. No mesmo instante. Ela olha para mim, eu olho para ela.

O seu cabelo tornara-se grisalho, havia qualquer coisa nela que dava a impressão de ter sido arrasada e esmagada, ainda que tentasse continuar a mostrar-se elegante. Há já uns tempos que pintava o cabelo, de certeza que ao fim da tarde ainda o teria arranjado, só que naquele momento as madeixas estavam já despenteadas e viam-se as raízes prateadas. Parecia ter papos nos olhos, mas isso também poderia ser por eu estar a olhá-la de cima; dessa perspetiva qualquer um tem sempre um aspeto enviesado. Dava a impressão de ser pequena. Depois de observar o alto da sua cabeça, pousei o olhar sobre as mãos: na rede de linhas das suas palmas notava-se a sujidade, devia ter estado a tentar que Edi se levantasse.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Não fiquei surpreendida por a minha mãe estar na cidade, o tio Lev revelara-me que ela iria estar presente na festa da congregação judaica; bem, na verdade, ele veio comunicar-mo com toda a formalidade e exigir uma reconciliação, uma solene reunião da família. Veio de camisa lavada, as narinas alargadas, e tinha a melhor das intenções, mas tive de desiludi-lo. Quando se apercebeu de que as suas tentativas não resultariam em nada, quis incutir-me um certo peso na consciência, disse-me que não se corta relações com a própria mãe, que a nossa obrigação é amá-la, aconteça o que acontecer; mas eu acho que não tenho de amá-la nem de desamá-la, ela é minha mãe e, a esse respeito, nada mais há a dizer. É como é.

Nesse fim de tarde, por acaso, decidira sair de casa para observar as pessoas que passeavam a essa hora, nada de especial. O cheiro das ruas altera-se com o crepúsculo, torna-se mais acidulado, coisa que aprecio, mas naquela noite apercebi- me do odor a açúcar queimado, escutei gritos e decidi ir ver o que se passava.

Num primeiro momento, fiquei contente por não ser a minha mãe que ali estava, estendida sobre a relva, sovada, mas depois dei-me conta de que nada mais sentia para além disso. «Vive a tua vida. Deixa-me em paz.»

Parecia que, instantes antes, teria ali havido uma pequena fogueira a arder, estávamos junto a uma pilha de papel queimado, maços de jornais atados com cordel, as folhas já onduladas e agora cobertas de fuligem; na verdade, o cheiro era até bem agradável, a Coca-Cola ou a qualquer outra coisa caramelizada mas amarga, um cheiro que fazia cócegas no nariz, de tal modo que a tia Lena desatou a espirrar. Fosse quem fosse que entre os prédios tivesse tido ideia de fazer um piqueniquezinho, deve ter sido escorraçado ou teve de se ir embora à pressa. E de que modo Edi estava relacionada com aquilo e por que razão metade daquela mischpoche, daquela gentalha da congregação judaica, ali estava – debruçada à janela do segundo andar, embasbacada a olhar para nós cá em baixo –, nada disso se conseguia adivinhar nas expressões daquelas três mulheres. Elas choravam, mas mesmo assim tentavam não expor as suas fraquezas. Maneiras socialistas… no que toca a sentimentos, mostra-se ao mundo inteiro o quanto se está magoado, mas tenta manter-se a coisa controlada.

Estávamos rodeadas de varandas em cujos parapeitos esvoaçava invariavelmente a mesma bandeira, como se os respetivos donos pudessem esquecer-se de onde se encontravam se não tivessem aquele pedaço de pano hasteado lá fora, ao vento. Acho piada assistir àquilo, sobretudo porque no caso de muitos dos habitantes daquelas casas, pelo menos os que eu conheço, a bandeira presa ao corrimão nada tem que ver com o emblema na capa dos seus passaportes.

Nenhuma das três queria voltar para a festa, mas também não se podia deixá-las ficar ali no pátio: uma, de cabelo descolorado, estava toda suja e amassada; a outra, com os olhos inchados de chorar; além delas, ainda havia a minha mãe, que tinha o cabelo despenteado e acabara de afirmar que a altura em que morresse não dizia respeito a mais ninguém senão a ela. Perguntei-lhes se queriam ir até minha casa para se recomporem. Pareceu-me adequado oferecer-lhes a possibilidade de descansarem um pouco sentadas à mesa da minha cozinha. Caminhávamos apressadamente, em silêncio, como se receássemos que alguém nos seguisse; conseguia ouvir o ruído da borracha das solas dos meus sapatos sobre o asfalto.

Já em casa, a tia Lena dirigiu-se de imediato ao lava-loiça, molhou um pano com água fria e pousou-o sobre a testa de Edi. Carreguei no botão do fervedor de água e ignorei os olhares da minha mãe, o modo como examinava o meu sofá, de olhos esbugalhados, como detinha o olhar em cada racha da parede, como parecia tentar gravar tudo aquilo na memória. Era a primeira vez que ali estava, e até mesmo os pacotes de batatas fritas vazios que havia espalhados pelo chão ela olhava com uma espécie de desvelo. Ignorei a voz na minha cabeça que me censurava e dizia que o apartamento estava imundo, que era pequeno e escuro. Na única parede livre afixara um enorme póster do videojogo Path of Exile, com um céu sombrio e os salpicos de sangue a esvoaçarem. Cheirava ao molho de barbecue das asas de frango que deixara junto ao teclado, os cortinados estavam corridos, o computador ligado, no monitor havia povos que se matavam a tiro, o rumorejo do ar da ventoinha preenchia-me os pulmões.

Ficámos algum tempo sem dizer nada. Foi na superfície do líquido que me apercebi de que as mãos da mamã tremiam: o chá formava pequenas ondas, como se ínfimos seixos ali ressaltassem, a cortar a água rente à superfície. O rosto dela tinha uma expressão calma, os olhos estavam muito abertos, como se não acreditasse que estava a ver-me. E eu também não acreditei. Que ela estivesse a ver-me.

Livro: "No Ser Humano Tudo Tem De Ser Belo"

Autor: Sasha Marianna Salzmann

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 11 de julho de 2023

Preço: € 22,20

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«Não se pode censurar as pessoas por não serem heroicas», dissera-me ela aquando da nossa última discussão. Ou talvez não tivesse sido a última, as nossas altercações não tinham princípio nem fim, eram uma incessante cadeia de ofensas. Nem sequer eram recriminações, mas tão-só ruído. Assim sendo, se não se podia acusar as pessoas de não serem melhores do que aquilo de que eram capazes, perguntara-lhe por que razão ela esperava então que eu fosse alguém que não era capaz de ser. Não quis responder-me. Não quis dar-me fosse que resposta fosse. Ou então não era capaz. E também não tinha perguntas para me fazer, nem mesmo agora.

Estava ali sentada, com os cabelos da cor da madeira de faia mas grisalhos. E Edi, descolorada, com a sua mãe, de verde- -esmeralda, ao seu lado. Balançavam as três a cabeça, muito ligeiramente, quase não se dava por isso, era como se uma ondulação lhes atravessasse os ombros, como se uma corrente subisse e fluísse em redor dos seus pescoços. Sobre a superfície do chá que ia arrefecendo continuavam a ressaltar seixinhos, ora mais depressa, ora mais devagar, consoante o tamanho, mais um salto a cortar a água e eis que submergiam.

Fizemos um esforço, conversámos um bocadinho, perguntámos pelas coordenadas dos dias de cada uma, palavras deveras cautelosas, desengonçados passos de dança, mas no geral correu bem.