Qualquer fã dos Beatles sabe isto: não se é mesmo fã dos Beatles até se fazer uma peregrinação até aos estúdios Abbey Road, em Westminster, Londres, apenas e só para tirar uma fotografia enquanto se atravessa a mais famosa das passadeiras existentes no mundo – com um cigarro na mão, de pés descalços, de mãos nos bolsos, ou apenas a sorrir e a acenar como os pinguins de “Madagáscar”, é indiferente. Interessa pisar aquele chão e registar o momento para a posteridade, percorrer os mesmos escassos metros que os Beatles percorreram numa manhã de agosto, há meio século (e, para quem não consiga viajar até ao Reino Unido, há uma webcam a transmitir a vida desta passadeira, em direto, 24h sobre 24h).
Meio século é também a distância que vai entre o lançamento de “Abbey Road”, o disco que foi o penúltimo editado pela banda britânica, a 26 de setembro de 1969, e os dias de hoje. O penúltimo editado, mas o último a ser composto; as sessões de “Let It Be”, que só seria editado no ano seguinte, aconteceram bem antes, mas sob um clima de tensão tal que o grupo não teve escolha senão abandonar momentaneamente o trabalho (que até esteve para se chamar “Get Back”).
A tensão tomou a tomar conta do quarteto, até que Paul McCartney teve uma ideia – e partilhou-a com o produtor George Martin: fazer um disco “como dantes”, com todos os membros dos Beatles em estúdio, a trocar impressões, a corrigir erros mútuos, e a mostrarem-se coesos e disciplinados. “Abbey Road” começava assim a tomar forma, em fevereiro de 1969, poucas semanas após abortarem o plano “Get Back” / “Let It Be”. Com algumas pausas pelo meio, devido a compromissos vários, “Abbey Road” foi completado em agosto – e foi a 20 desse mês que os “Fab Four” partilharam um estúdio pela última vez nas suas vidas.
Mais que “Let It Be”, é “Abbey Road” o verdadeiro “canto do cisne” dos Beatles, o disco que mostra que a banda merecia de facto o estatuto de “melhor do mundo”, o mesmo que teve ao longo dos anos 60 (nas décadas subsequentes, “só” conseguiram o estatuto de “melhor de sempre”, ainda que isso seja – como tudo na música – subjetivo). O disco que prova que, estando no mesmo comprimento de onda, Lennon, McCartney, Starr e Harrison eram capazes de fazer coisas espantosas, como 'Come Together', a faixa que abre o disco – o baixo, a cadência de Lennon ao cantar, o piano, a simplicidade do refrão...
O que não significa que essa alegria fosse constante; a mesma tensão das sessões anteriores ainda ia mostrando, aqui e ali, a sua cara feia – tendo como foco a figura de Yoko Ono, cuja omnipresença no estúdio deixou todos os Beatles em polvorosa, exceção naturalmente feita ao seu marido, John Lennon. Aliás, nem quando a artista japonesa sofreu um acidente de carro os demais membros se conseguiram “livrar” dela; Lennon mandou prontamente instalar uma cama nos estúdios, para que ela pudesse continuar a acompanhar o processo enquanto recuperava.
Não foi o único caso; Lennon deixou bem claro que queria as suas composições todas juntas na primeira metade do disco, com as de McCartney na segunda, o que acabou por não se verificar. E, em setembro, após o fim das gravações e a formação dos Plastic Ono Band, o músico comunicou a sua decisão aos colegas de deixar os Beatles, com o anúncio a ser feito meros seis dias antes do lançamento de “Abbey Road”. A confirmação oficial de que os Beatles já não existiam só seria dada em abril do ano seguinte, quando McCartney revelou que também abandonaria o barco.
Talvez tenha sido essa tensão o que levou os críticos, à altura, a considerar “Abbey Road” um álbum “inautêntico” - como John Lennon, que chegou a dizer que o disco não tinha “canções a sério”. Ou isso, ou a inclusão de um sintetizador Moog, que tornou “artificial” a sonoridade dos Beatles. Ou o facto de não se vislumbrar o nome da banda, na capa – algo que nem era necessário, já que, citando John Koch, diretor criativo da Apple Records, «eles eram a banda mais famosa do mundo».
As opiniões negativas, ao contrário de “Abbey Road”, não resistiram ao teste do tempo. Em muitos círculos, o disco é hoje considerado como uma das obras-primas dos Beatles, talvez não tão inovador como “Sgt. Pepper's...”, mas a roçá-lo; Neil McCormick, do jornal britânico The Daily Telegraph, chamou-lhe “a última carta de amor dos Beatles ao mundo”. “Let It Be” já não seria então o amor, mas a despedida final, o fim da relação. E o passo em frente – já que, como dizia o poeta Alfred Tennyson, «é melhor ter amado e perdido que nunca ter amado».
Sabe-se, no entanto, agora que isto não era de todo verdade; após “Abbey Road”, os Beatles já estavam a pensar num novo álbum, como o comprova uma gravação em cassete de uma reunião entre Lennon, McCartney e Harrison na sede da Apple Records. Na cassete, cujo conteúdo foi recentemente revelado, os Beatles discutem abertamente a possibilidade de lançar um disco ou um single novos por alturas do Natal, e até quantas canções cada membro contribuiria para o mesmo. Foi sol de pouca dura, um sinal de trânsito vermelho na carreira dos Beatles: não mais os quatro atravessariam aquela estrada juntos. Ou qualquer estrada que fosse.
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