ROSA PERESTRELO NOIA
— Sr. Padre! Sr. Padre! Acorde, Santo Deus!
Subiram as escadas que iam do adro para a casa do vigário, no primeiro andar por cima da igreja, e bateram à porta. Cinco pancadas compassadas, repetidas por duas vezes. Sem esperar que o padre assomasse, abriram-na. Todos os paroquianos sabiam onde estava a chave do salão paroquial. Atravessaram por entre as cadeiras de madeira onde descansavam os bandolins, os bandoloncelos e as violas de arco, tropeçaram em livros e jornais, e empurraram devagar a porta que ligava o salão à casa do padre. Do lado esquerdo, a cozinha, vazia, e, em frente, a porta do quarto, fechada.
— Padre Martins! Acuda-nos, Sr. Vigário!
Sabia-se que o Sr. Padre não abria a porta do quarto a ninguém. O povo da Ribeira Seca, como o de qualquer aldeia, era dado a falar, mas o quarto fechado do padre, que conhecia todas as casas da aldeia — e nelas sempre mesa posta, à sua espera —, não despertava qualquer curiosidade.
Para mim era um mistério cuja revelação chegou em 2024 quando, num regresso à Ribeira Seca, enchendo-me de coragem e embaraço lhe pedi para ver, enfim, o seu quarto. Seis anos antes, estava já nessa altura a viver em Perpignan, no sul de França — casado com a minha segunda mulher e reformado da Universidade de Hertfordshire, onde dei aulas de Cinema e Narrativa —, tinha começado a escrever um guião com a história do Padre José Martins Júnior para um novo documentário a estrear pelos 50 anos da Revolução dos Cravos.
O povo da Ribeira Seca queria lá saber o que havia por detrás daquela porta, fechada, de um homem que se aproximava quase sempre de braços abertos, entoando uma melodia, uma graça qualquer ou uma provocação. Talvez pela distância secular entre os camponeses e a Igreja, ou porque a maioria deles nunca tivesse sequer tido um quarto seu.
Nessa noite, como era hábito, Martins tinha ido tarde para a cama. Era noctívago, gostava do silêncio e do escuro da noite — nessas horas compunha as músicas, pensava os sermões e escrevia alguma poesia. As missas da alvorada, as das sete da manhã, a que nunca faltou, custavam-lhe. Ia cheio de sono, enrolando um pouco mais as palavras, já desmaiadas pela pronúncia de Machico.
Ainda na cama ouviu o chilrar do melro preto. Assim se diz na Madeira do gorjear deste pássaro negro, que começava a cantarolar em fevereiro, no fim do inverno. Desfrutava da companhia do pássaro, que poisava no parapeito da sua varanda. Lembrava-se do poema de Guerra Junqueiro, uma alegoria ao obscurantismo da Igreja Católica em Portugal.
O melro cantava uma sinfonia discreta, que serve de corte nupcial e demarcação do território do ninho, erguido em forma de taça de vinho. De rama em rama, o melro compunha árias que oscilavam entre o grave, intenso, e um agudo, desassossegado.
— Sr. Padre! Acuda já, Santo Deus!
Levantou-se e foi à porta. Abriu-a com uma calma apressada, como só ele sabia fazer, em dois andamentos sobrepostos. Nunca era por boas razões que vinham chamá-lo de madrugada. Era a Maria Perestrelo Noia e mais dois homens, com uma lanterna, numa ânsia.
— É a Rosa, Sr. Padre! Despache-se!
Envergou a batina e acompanhou-os. Saltou os barrancos, foi por poios, veredas, ribeiros, por ali acima. Não havia estrada nenhuma na altura, levou três quartos de hora. E andava bem. Iam com lanternas de óleo, usadas para alumiar a rega nas levadas. A saltar um barranco tropeçou na batina. Tinha já tropeçado naquela maldita saia algumas vezes, e voltou a cair naquela noite. Levantou-se e seguiu.
— Abeirei-me da casa — recordou mais tarde o Padre Martins —, entrei pelo terreiro; a cozinhita ficava à direita e logo a seguir, do outro lado, havia dois quartos. Num deles estava a Rosa. Rosa Perestrelo Noia, deitada. «Já está morta, Sr. Padre...», alguém disse. Uma palidez funérea, o sangue manchava todo o centro da cama. E junto dela, um de cada lado, dois gémeos, vivos. A mãe morta, os filhos vivos. O contrário da Pietà. Nada de escultórico ou poético, pensei. Só a vida servida a cru. As pessoas a gritar, a chorar. Nesse dia senti tudo, senti-me tão manietado pela emoção!
Quando cheguei à Madeira em 1975, à procura do Padre Martins, era eu estivador havia uns cinco anos no sul de Londres, na Doca Real, à beira do Tamisa. O império britânico, onde o sol nunca se punha e o san- gue nunca secava, do qual eu era oficialmente cidadão, foi um dos fabricantes deste Portugal, um país onde a humanidade se esvaía em sangue pelas pernas de uma mãe. Lutávamos em Londres contra a ditadura de Salazar e Caetano, rejubilávamos com cada vitória dos movimentos de libertação nas colónias africanas portuguesas — Guiné, Moçambique, Angola e Cabo Verde —, mas nunca tinha sentido o peso dos cadáveres daquelas mulheres, que eu tinha descarregado em Londres na forma de vinho Madeira, bordados artesanais e cachos de bananas.
Algumas casas menos miseráveis do arquipélago ainda tinham uma rede de pano robusta, com as pontas amarradas por um pau, carregado por dois homens, fazendo lembrar o Império Romano e o Antigo Egito, que levavam os enfermos pelas veredas até à estrada. No fim do caminho, um carro, muitas vezes um táxi pago pelos camponeses — cada um dava o que podia —, levava os doentes ao hospital na capital, o Funchal, que ficava a hora e meia de caminho ou mais.
Essa hora em busca da vida, ali, no Sítio da Noia, era a morte no reino da terra — nem uma rede de pano havia, nem estrada e, claro, nem médico.
Um ano depois, o povo da Ribeira Seca versejou a tragédia:
Nossos caminhos são tristes
De inverno ou de verão
Que não podemos andar
Sem se levar um bordão
A Rosa Perestrelo Noia
Há um ano falecida
Foi por não haver estrada
Não lhe salvaram a vida
Aterrei em Lisboa em maio de 1974, para ver e fazer a revolução. Tinha visto as barracas e a pobreza nas ruas da capital; ao redor do Aeroporto da Portela, o bairro das Galinheiras albergava milhares de seres humanos sem acesso a água potável num país onde a guerra colonial tinha engolido em treze anos 30% do orçamento do Estado, com a bênção da Igreja Católica. Esgotos a céu aberto, uma torneira de água potável para mil e setecentas pessoas, lama em vez de passeios, crianças com fome plasmada nos olhos pequenos e letárgicos. Adultos pequenos, muitos com metro e meio, analfabetos e com falta de dentes. Mesmo vindo do porto de Londres, filho e neto de estivadores, nunca tinha visto miséria assim.
Na Madeira, ilha no meio do Atlântico onde cheguei meses depois, em fevereiro de 1975 — no ano em que os EUA tinham admitido que a seguir ao Vietname o seu maior pesadelo era Portugal, país que a maioria dos norte-americanos nem sequer saberia localizar no mapa —, deparei-me com um cenário ainda pior do que o que encontrara em Lisboa. Que país era este? E que ilha era esta, onde o meu avô Luís tinha nascido?
Na Ribeira Seca, Paróquia do Padre Martins, um enclave no alto do vale compacto de Machico composto por pequenos aglomerados camponeses espalhados por sítios, o nome popular dos lugarejos rurais, trabalhava-se do sol à lua — regando às seis da manhã, cavando à hora do sol, bordando pela madrugada dentro, até chegarem as cataratas nos olhos ou a morte no parto. Morria-se sem dinheiro para comprar uma rede de pano... Fuck me blind!
Nesse dia de fevereiro caía uma chuva suave, vinda da montanha. Pequenas gotas de água borrifavam a pele como areias finas.
O táxi levou-me do aeroporto a Machico pela única estrada, junto à costa, onde dois azuis, o do céu e o do mar, ocupavam quase toda a vista. Ao longe, à minha direita, desvanecidas, as ilhas Desertas erguiam pequenas formas basálticas, negras, no meio do mar. A janela da frente do carro mostrava, soberana, a Ponta de São Lourenço, uma língua que entra pelo mar com cores ocres. O extremo oriental da ilha da Madeira.
O carro seguia a estrada entre o morro de rocha vulcânica e a linha de água quando virou à esquerda, para Machico. O palco abria-se à nossa frente. O longo vale rodeado de montes, a sul uma baía de mar sereno, um pequeno núcleo de casas de pescadores, desde a praia construções de pedras, cinzentas, que iam até à Capela dos Milagres, erguida no local da antiga Capela das Misericórdias, a poucas dezenas de metros da praia. A estrada seguia junto ao morro descendo ligeiramente. Passámos pelo cemitério, à nossa esquerda, e entrámos na vila, pelo meio das casas. Andámos não mais de meio quilómetro, deixando a baía para trás, e começámos a subir o estradão rumo à Ribeira Seca. Agora o casario era mais disperso, estávamos rodeados de campos agrícolas, vinhedos e canaviais, e a vista já alcançava os terraços, os poios, aqui e ali ocupados por casas de telhados de colmo e paredes de pedra. Um fértil tabuleiro de xadrez abraçado pelas montanhas, uma paisagem medieval.
Azul, verde e negro, as cores intensas da vila de Machico. Tantas vezes, em casa em Londres, a tinha visto em fotografias a preto e branco. O carro subiu o vale até à Ribeira Seca. O taxista parou junto do adro da igreja, um edifício de dois pisos, branco, esbatido. Tinha em baixo um alpendre e em cima um andar, a casa paroquial, com uma varanda larga e comprida, da qual se avistava todo o vale, os montes de ambos os lados e a baía, lá em baixo. A igreja era o maior edifício da Ribeira Seca. Parecia-me um armazém, não fosse a pequena torre com um sino. Tudo humilde e precário. As portas estavam fechadas.
Saltei do táxi, um velho Ford Cortina verde e preto, larguei o dinheiro dizendo «fique com o troco», e despedi-me.
Segui, a pé pela vereda, as vozes que me chegavam da parte de cima da igreja. Sempre por terra batida, cheguei junto do aglomerado de camponeses, vestidos com pouco mais que trapos, que conversavam com entusiasmo junto de dois casebres. No meio reconheci um homem pequeno, cujas fotografias vira escarrapachadas nas capas dos jornais de Lisboa. Estava idêntico ao poeta Allen Ginsberg, da geração Beat, figura de proa na luta contra a guerra do Vietname. Aproximei-me.
— As terras são para se construir a estrada. Como vamos ter médico se nem um carro aqui chega?
— E onde vou plantar semilhas para comer, como vou alimentar seis bocas, Sr. Padre? — respondia o lavrador.
— O que perdes em semilhas e couves ganhas em estrada para a vila, para o Hospital, para o Funchal. Os vivos não podem viver atados às leis dos mortos.
— Mas se eu dou a minha terra quem me garante que o Governo vai mesmo construir a estrada, Sr. Padre Martins?
— O Governo agora somos nós, eu, tu, o povo da Ribeira Seca, quem trabalha aqui. Somos nós que construímos a estrada.
— Sem este espaço para as semilhas, como vamos viver?
— E como vamos morrer? — respondeu Martins com sarcasmo e gestos ternos, afáveis. — Lembras-te daquela vez em que até o caixão caiu ribanceira abaixo porque a vereda era estreita para os dois homens passarem com o defunto?
Era o Padre Martins.
Eu tinha chegado ao fim do mundo, para ver o começo dele.
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